O cientista aponta um aumento fora do normal, em janeiro e fevereiro, nos óbitos por pneumonia e septicemia, que podem ter sido causados pela ômicron. Para ele, o fim da obrigatoriedade das máscaras é uma jogada de “marketing semiótico”.
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O médico e neurocientista Miguel Nicolelis, professor titular do Departamento de Neurobiologia da Duke University (EUA), acusa gestores governamentais e veículos da mídia de estarem sonegando dados sobre o crescimento no número de mortes relacionadas à Covid-19 no Brasil. Segundo ele, pesquisa nos dados de Registro Civil mostra que houve um aumento importante e não noticiado de óbitos em janeiro, especialmente os relacionados à pneumonia e à septicemia, que devem refletir casos derivados da variante ômicron. Por isso, o cientista critica duramente o que chama de “marketing semiótico”: a decisão dos governos de suspenderem a exigência de máscaras em locais fechados, sem que ainda se possa medir o impacto do carnaval na curva de contágio.
“É uma estratégia semiótica. Se você remove a máscara, remove o símbolo da pandemia. As pessoas dizem _opa, não tem ninguém de máscara na rua, a vida voltou ao normal, acabou a pandemia. Mas não acabou. Minha única explicação é o marketing semiótico. A situação ainda é extremamente grave, mas a realidade não é mais reportada pela mídia nem pelos gestores dos governos – e não só o federal.” O cientista estima uma taxa de subnotificação no país de dez a 20 vezes mais do que o reportado, nas semanas anteriores ao carnaval.
A pesquisa de Nicolelis no Registro Civil identificou, em janeiro de 2022, o que ele considera “uma anormalidade que não foi explicada”: 126 mil óbitos – considerando o total de causas de morte –, no janeiro mais letal dos últimos sete anos. “O número de casos registrados no Registro Civil por Covid não explica esse total”, diz. “Então, se observa o item pneumonia, que era por volta de 12 mil, 13 mil [mortes no período], em média, em 2021, e um pouco abaixo nos anos sem pandemia, de repente passa a 25 mil, 26 mil mortes este ano.”
Ao verificar os óbitos atribuídos à septicemia, outra doença que pode ser causada pela Covid, o cientista se deparou com outro número alto de casos. “Quando você soma os óbitos informados por Covid, mais pneumonia, mais septicemia, além de outras causas que cresceram, explica-se o aumento absurdo se óbitos em janeiro de 2022. Ou seja, pelo menos como hipótese de trabalho, a gente tem que considerar a possibilidade de vários casos de Covid, que geraram pneumonia terminal ou septicemia, foram causados pela pandemia. Essa análise vai ter que ser feita. Quando você vê causa primária [no atestado de óbito] ‘pneumonia’, precisa saber a origem: se é bacteriana, viral, Covid.”
Agora, Nicolelis está realizando a mesma análise com os registros de óbitos em fevereiro. Dados preliminares já apontam 121 mil mortes no período, apenas 5 mil abaixo do total em fevereiro do ano passado, quando houve uma explosão de casos de Covid no Brasil. “E eu acho que esse número vai ficar ainda mais próximo [do ano passado], porque, até o final de março, é muito provável que a gente tenha 5 mil óbitos a mais registrados em fevereiro, porque há um gargalo burocrático para subir o atestado de óbito para o Registro Civil.”
Por isso, a situação da pandemia no Brasil é ainda “extremamente preocupante”, na avaliação do cientista. “Agravou-se no começo de janeiro, principalmente pela narrativa que começou a ser vendida, inclusive por alguns cientistas brasileiros, de que a ômicron era leve, que era o começo do fim. A sociedade comprou essa narrativa, porque também a mídia a comprou e começou a disseminá-la e, cada vez mais, a cortar a cobertura da pandemia, e cercear vozes que não eram condizentes com essa narrativa de que a pandemia estava acabando. E tivemos um desastre nestes últimos dois meses, continuando numa situação extremamente delicada.”
Quebra do excedente demográfico
Nicolelis também questiona a percepção geral de que o Brasil tenha passado ileso pela variante delta. ”Algumas semanas atrás, eu consegui ter acesso aos dados de internação no Rio de Janeiro – estado e cidade. Entre meio de agosto e começo de setembro, houve um pico que foi totalmente mascarado, ignorado, não mencionado. Muito provavelmente foi o pico da delta, que passou completamente despercebido, porque estávamos com uma subnotificação tremenda. Os dados começaram a ficar estranhos naquela época. Você olha outros estados do Brasil e vê esses picos. Não só tivemos um efeito da delta, que foi diminuindo pela vacinação ter aumentado em junho e julho, pela imunidade que muitos brasileiros tiveram por um tempo curto, como cinco meses depois você descobre que tinha um pico escondido.”
Embora o total oficial de mortes por Covid esteja na casa das 650 mil, Nicolelis acredita que o número seja bem maior. Segundo o cientista, considerando o excedente de mortalidade do período, ou seja, as mortes que ultrapassam a média dos anos anteriores, chega-se a algo entre 800 mil e 1 milhão.
A pandemia impactou tão duramente o Brasil, que contraiu o excedente demográfico histórico do país. “Entre março e abril do ano passado, vários estados, e também a cidade de São Paulo, tiveram mais mortes do que nascimentos”, afirma. “Mas o número total de nascimentos no ano passado também caiu, e teremos repercussões a longo prazo estruturais da pandemia.”
SUS no limite da “envergadura da árvore”
O cientista adverte, ainda, para os efeitos crônicos da Covid na saúde das pessoas. Na sua forma crônica, interfere com sistema nervoso central, coração, pulmão, basicamente todo o organismo, inclusive o sistema reprodutor. E os recursos nacionais estratégicos para combater a pandemia estariam no limite.
“A tragédia nacional não foi ainda mais grave porque temos o SUS e um dos maiores sistemas de universidades públicas do mundo, que produz ciência, tem hospitais universitários, e forma uma ponte com o SUS”, explica. “Essa máquina de ciência e de infraestrutura de saúde, que desde 2015 está sendo dilapidada a níveis que causam espanto em todo o mundo civilizado, está com níveis de investimento voltando ao começo do século, de 20 anos atrás. Sem essa estrutura, tínhamos perdido 2 milhões, 3 milhões de brasileiros.”
Tanto o sistema universitário público, quanto o SUS, contudo, estariam no “limite da envergadura da árvore”, ou seja, tão vergada, a ponto de ser arrancada da terra, se enfrentar mais uma ventania. “E se arrancar a raiz do sistema, levaremos décadas para recuperá-lo. O êxodo de talentos brasileiros deve ser comparado ao final dos anos 80 ou dos 60, depois do golpe de 1964.”
Recuperar o respeito à vida humana
Além de retomar financiamentos e programas relevantes, como o Ciência sem Fronteiras, Nicolelis recomenda, para o futuro, que os governos – em todas as instâncias – passem a contar com comitês científicos permanentes. Ele ressalta a importância de os comitês serem ouvidos, numa interação entre política e ciência que, na sua avaliação, atualmente não tem sido fácil. “Dissociados de quem ocupa o poder, os comitês precisam ter autonomia, orçamento e palavra complementamente livre.”
Um futuro governo progressista deve, na opinião do cientista, “ouvir outras vozes”, além daquelas do seu próprio campo político. “Em um pais como o nosso, quem quer que seja o presidente – e eu espero que seja o presidente Lula – tem que ouvir quem não é da ‘corte’ e está disposto a dizer o que talvez essas pessoas não queiram ouvir. Porque o futuro do Brasil talvez vá depender disso.”
Há dois anos no Brasil – depois de 30 anos vivendo nos EUA –, Nicolelis se horroriza com os casos de violência no país, como o recente espancamento até a morte do congolês Moïse Kabagambe, ou o assassinato da vereadora Marielle Franco, do Psol, em 2018. Por isso, considera prioridade do novo governo o resgate civilizatório do país.
“Neste estágio atual, a vida humana no Brasil não vale nada”, afirma. “Temos que recuperar, enquanto sociedade, enquanto civilização, o respeito máximo à vida humana. A sociedade brasileira tem uma doença grave, profunda, que inclui o racismo, a perseguição às minorias, a perseguição a toda sorte de pessoa diferente, às pessoas mais humildes – só por serem mais humildes –, ou quando olho pela janela do meu prédio em São Paulo, numa grande metrópole, e vejo pessoas se alimentando das latas de lixo na rua… Qual é o nível mais baixo a que podemos chegar de falta de respeito à vida humana? Quando pega um táxi para se vacinar e olha para São Paulo, parece uma cidade que foi bombardeada, com milhares de pessoas morando em condições de rua, em tendas, nas pontes… Temos que parar, sair do frenesi das nossas vidas, e recuperar o respeito à vida humana, essa é a primeira coisa.” A partir daí, diz Nicolelis, tentar construir afinal um projeto de nação.
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o cientista Miguel Nicolelis, médico e professor titular do Departamento de Neurobiologia da Duke University (EUA), entrevistado pela jornalista Beth Costa e o advogado e cientista político Jorge Folena, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano