Sergio Muylaert*
1. Ouviram do Ipiranga às margens plácidas um hino e múltiplas versões. A sinfônica do ódio e da homofobia rege ocasiões, por vezes, que semeiam os ventos da intriga. É quando se tem a notícia do fato no qual a pessoa máxima da Ordem dos Advogados do Brasil presencia o Chefe da Nação, alguém desprovido do suficiente recato e o necessário decoro, lança o desafio à ética pública e instiga animosidades, no intuito de atingir de cheio a cidadania e todos os demais membros que honram e dignificam a tradição dessa instituição profissional. Ao realçar a messiânica sentença, expele a peçonha do juízo final: “Eu posso contar como o pai dele desapareceu…”. Tudo mais estará permitido, se o delírio oculto da felação se deita sobre o corpo inerte da memória adormecida, para que a sorte e as arbitrariedades sejam a regra do arbítrio. E diga o verde-louro dessa flâmula.
2. Para exercitarmos razoavelmente o uso da memória, talvez a medida do tempo seja enganosa em demasia. Além do mais, há o surgimento de novos casos, alimentados no breu do anonimato, e os precários registros da memória coletiva. Tomem-se alguns dados nas origens, como foi o fuzilamento do sacerdote da Ordem dos Carmelitas, Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca (1779-1825), por ordens do sórdido regime português colonial, instalado no Nordeste brasileiro; o enforcamento do Alferes Joaquim José da Silva Xavier (1749-1792) devido ao movimento dos Inconfidentes, posteriormente esquartejado para exemplo popular, cujos restos mortais foram sendo atirados nas estradas, do Rio de Janeiro até Minas Gerais; como ignorarmos o trágico assassinato do assessor de dom Helder Câmara, padre Antônio Henrique Pereira Neto, nos arredores do Recife, com apenas 29 anos de idade? Igualmente cruel o crime de pistolagem que se deu contra Josimo Morais Tavares (1953-1986), um religioso coordenador da Comissão Pastoral da Terra, que defendia a causa dos trabalhadores rurais da região de Xambioá (GO); nada menos que isso tirou a vida a Chico Mendes, por sua liderança entre os seringueiros do Estado do Acre. Por assim, as mortes de trabalhadores rurais e lavradores, estudantes, religiosos, intelectuais, seguem às centenas ou aos milhares, diante da sistemática ordenação de uma política oficial, inclusive, forjada para investir contra as etnias e tribos indígenas, dizimando-as nas suas próprias aldeias e localidades.
3. À guisa deste sucinto comentário, colacionamos valiosa contribuição da Ordem dos Advogados do Brasil: “Violência no Campo” (1964-1986), obra produzida coletivamente, cujo teor revela a fúria e a ganância fundiária, o seu ódio implacável contra os despossuídos, na conturbada região do Araguaia-Tocantins. Reiterem-se as arbitrariedades preexistentes e a continuidade inimputável para além das normas jurídicas e da função precípua do Estado brasileiro. Diga-se que regras, propositalmente mal traçadas, aderem aos pleitos de seus senhores (expropriantes e grileiros), tanto quanto sejam as políticas agrícolas ou subsequentes planos para a ocupação das terras. As normas sobre agrotóxicos violam, sem ressaltos, o princípio da precaução, fundamento do direito ambiental. Os mecanismos disponibilizados na lei nº 4.504, de 1964, desde as origens do Estatuto da Terra, jamais superaram os protocolos senhoriais contidos no direito civil clássico. As mesmas normas, no entanto, asfixiam quaisquer pretensões das imensas camadas populacionais relacionadas aos mais elementares direitos humanos. Tais confrontos, inevitavelmente, cederam lugar ao gigantesco êxodo rural. Vestígios, indícios, probabilidades, pistas, rastros, pegadas, suspeitas, zum-zum-zuns, os diz-que-diz, raramente dão assento aos contornos desses casos contra as vítimas da perseguição do poder político-econômico. Isso é facilmente explicável pelo motivo de que a realidade se apresenta, sempre, confusa e indeterminada. Sob o efeito direto desses fatores das políticas públicas seletivas, a proliferação indescritível dos problemas causados pelo caos urbano e pelo desordenado inchaço das cidades brasileiras.
4. Em nossas mentes, pulsa o inexorável da submersão no poço secular e exponencial da tragédia das populações desterradas. Seria o pleno conhecimento da realidade perversa a solução imaginada? Ou a redutora síntese dos desastres econômicos e sócio-político-ambientais, para explicar a necessária monta de ações repressivas? Pequeninas propostas memorialistas se devem aos efeitos imprecisos dos contornos da maioria dos casos, cujos pontos de partida exigem lucidez de penas talentosas e o pioneirismo de um José Godoy Garcia, em seu épico Caminho de Trombas e Formoso. A memória nada possui de saudosismo. Ela é o aguilhão que vence a verborreia e destrói o azedume da fala, anula a cúspide da insanidade e, quem sabe, faz desaparecer a malignidade do cetro de Netuno. Em síntese, ela é o ferrão da consciência sobre a sociedade. Narcotizados por um modelo de ordem jurídica e econômica, fincado na tradição primitivista, os poderes da “onipotência dos pensamentos” são trilhados, na ingênua ilusão de identificar o deserto sem conhecer-lhe o outro lado das lonjuras. O provérbio poético Catalão nos lembra: “Bem sabem todos que campo aberto não existe para retorno nem sulcos no mar na hora de perigo”.
5. Aos fatos históricos, portanto, não se anteponham dúvidas, desnecessariamente. Eis os fatos ao longo dos tempos, que repetem os preceitos do Malleus Maleficarum considerados os mais aptos para analisar as formas de apropriação da mente. Historiadores insistem em falar da Idade Média como o período em que mais a humanidade sofreu penúrias e outros horrores. Com efeito, O martelo das feiticeiras, escrito por dois expoentes da Inquisição (Kramer e Sprenger), em 1484, em matéria de sociedade humana, representa o detalhamento no mundo da pesquisa. O prefácio da 12ª edição conta com os comentários de Rose Marie Muraro, com a seguinte explicação:
“O poder disperso e frouxo do sistema do feudalismo para sobreviver é obrigado, a partir do fim do século XIII, a centralizar, a hierarquizar e a se organizar com métodos políticos e ideológicos mais modernos. A noção de pátria aparece mesmo nessa época (Klausewitz).”
6. E diga-se, mesmo, que o propósito do tempero ao vinagrete dos ideais Iluministas não expulsou os antigos dogmas e rituais. O anunciado amanhecer da espécie humana cuidou de preparar as mentes para o novo estágio de aperfeiçoamentos e mudanças sociais. Diante da situação drástica, das pessoas perseguidas, leiam-se, os hereges e bruxos, bem souberam as religiões, naquela época, apoiarem as novas regras, cujos valores recepcionavam os critérios para o adequado “saneamento”. Por esse perfil, configurada estava a necessária fórmula de urgência para conquistar a peça indispensável, ou seja, a mão de obra alienada, conhecida como “corpo dócil”. (Foucault. A história da sexualidade). Estes foram os preparativos para imediata construção das bases das revoluções industriais. Com elas, desgraçadamente, a disseminação das estruturas plásticas e a geração dos contingentes de uma nova classe social (o operariado) e do correspondente exército de reserva. Nesse ponto específico, do nosso tema, ressaltamos a inegável contribuição da obra “Totem e Tabu”, de Sigmund Freud (1912-1914). Refira-se ao que ele denomina “onipotência dos pensamentos” e a respectiva influência nas ações humanas:
“Se aceitamos o referido curso que obedece a onipotência dos pensamentos, para o mundo na história humana”, diz Freud, “em que a fase animista é sucedida pela religiosa e esta pela científica, não nos será difícil acompanhar as vicissitudes da ‘onipotência dos pensamentos’” através desses estágios.
E prossegue:
“Na fase animista o homem atribui a si mesmo a onipotência, na religiosa, ele cede aos deuses, mas não a abandona seriamente, pois reserva-se a faculdade de influir sobre os deuses de maneiras diversas. Na concepção científica do mundo não há mais lugar para a onipotência do homem, ele reconhece a própria pequenez e submete-se resignadamente à morte e às outras necessidades naturais.” (Ob. Cit. 1ª e. 5ª reimpressão. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das Letras. 2012)
7. Na confluência dessas ideias, no escopo de reduzirem, ou eliminarem, as probabilidades de erros ou repetições, a memória assume função de guardiã dos precedentes no processo histórico. Para que seja ela, sobremaneira, o fio condutor desta segurança, imprescindível na construção memorial. O passo certeiro pede que ela seja, ainda, a conversão do objeto pesquisado no sujeito autêntico. À guisa de exemplos, vejamos o tempo de duração e a intensidade do sofrimento humano, no solo brasileiro, com as mutilações e os extermínios de vidas, aos milhares: a batalha dos Guararapes (1648-1649), Canudos (1896-1897), Contestado (1912-1916), Revolta de Trombas e Formoso – GO (1950-1957), as tentativas e golpes de Estado de Jacareacanga (1955-1956), Aragarças (1957-1959), cujos atos obtiveram o beneplácito da Anistia Política, ou, ainda, as ocupações e assentamentos de terras em Sarandi-Nonoai, RS (1960), as fracassadas investidas do Caparaó (1966-1967), os conflitos do Araguaia (1967-1974), os atentados terroristas, tais como, em 1968, atribuído a um grupo de sicários ligados ao Parasar, para explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, a desastrada aventura de explosão criminosa, maquinada nos subterrâneos da ditadura militar, para impedir uma festa popular no Riocentro, em abril de 1981 (RJ) et caterva. Imprescindíveis são, ainda, os registros do livro A vez e a voz dos Vencidos, do historiador Hélio Silva, editado pela ed. Vozes, 1988, onde o autor expõe sobre os expurgos dos militares perseguidos, cassados e presos pelo regime de 1964. No ponto central das denúncias, ele avalia a total fragilidade e a insensatez daquelas imputações: “variam de certa pusilanimidade à pobreza intelectual, reduzidas a pouco menos do que rigorosamente nada.” (p. 162). De tudo quanto se pode concluir, a natureza preservacionista jamais deve se dissociar da memorabilia. Por outro lado, não recusar o mais amplo espectro da coleta. A soma total das fontes contributivas representa um inestimável conjunto, material e moral, da catalogação e seus respectivos originais. Por todas as razões, não deve o nosso rudimentar depoimento induzir a precipitações conclusivas. O caráter investigativo sobre os momentos transformadores da história nos recorda que os fatos não se passam nem se revelam de forma indolor.
* Sergio Muylaert é advogado e escritor. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros; ex-procurador-geral da Universidade de Brasília; foi vice-presidente da Comissão Nacional de Anistia do Ministério da Justiça; fundador e presidente da Associação Americana de Juristas (Brasília).