Apesar da forte reação da comunidade internacional contra a continuidade do genocídio do povo palestino, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, segue impulsionando sua política de extermínio de civis, especialmente em Rafah, na fronteira com o Egito, último refúgio de palestinos removidos dos territórios ao norte da faixa de Gaza. Desde 7 de outubro, 30 mil palestinos, entre eles, mulheres, crianças e idosos, já morreram nos ataques que destroem igualmente alvos militares e hospitais, escolas e centros comunitários.
Quando todos os limites impostos pelo entendimento global civilizatório expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos já haviam sido ultrapassados, o Brasil, por meio da fala do presidente Lula, subiu o tom, verbalizando o que já era discutido pelos corredores da diplomacia mundial.
“As declarações do presidente Lula na Etiópia expressaram o que grande parte da comunidade internacional pensa e sente, nesse momento, sobre a política de genocídio de Israel em Gaza. Muitos governos evitaram se posicionar explicitamente como Lula fez, mas o acompanharam no significado da sua fala e se somaram na cobrança por um pedido urgente de um cessar-fogo permanente, que permita a reconstrução de Gaza, da Palestina e o reconhecimento do Estado palestino e de seus direitos no âmbito internacional”, destacou a cientista política Monica Bruckmann, convidada do programa Soberania em Debate, do projeto SOS Brasil Soberano, do Senge RJ, em 29 de fevereiro.
Monica destaca que, apesar de fortes críticas por parte da mídia hegemônica, o posicionamento contundente do presidente Lula, que comparou o genocídio em Gaza ao extermínio de Judeus na Alemanha nazista, não colocou o Brasil em posição delicada em relação a seus parceiros geopolíticos.
“A fala do presidente colocou o Brasil na vanguarda da mobilização internacional pelo cessar-fogo e do debate sobre a criação e o respeito à Palestina como um Estado na esfera internacional. Isso aconteceu justamente em momento em que o Brasil abrigava a primeira reunião de chanceleres dos países do G20. Na ocasião, ficaram evidentes as declarações cautelosas. Tanto os EUA, quanto a União Europeia se limitaram a discordar da fala, mas endossaram a posição do Brasil que, na verdade, fez desabrochar uma conjuntura que já estava posta em relação ao conflito”, explica Monica.
Conjuntura desfavorável
A definição de genocídio, segundo a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio é “matar e submeter intencionalmente um grupo de pessoas à condição de existência capaz de ocasionar destruição física total ou parcial”. O conceito já vem sendo usado no contexto do processo de colonização israelense na palestina há décadas.
Embora a completa destruição da Faixa de Gaza tenha como motivo alegado a retaliação aos recentes ataques terroristas do Hamas, a guerra é mais um capítulo de um processo de ocupação sistemática e violenta que vem sendo imposta ao povo palestino há sete décadas.
“O processo de colonização na Palestina chegou a um ponto insustentável no final do ano passado. Ela reflete algo que não só a Palestina está vivendo, mas todo o mundo: a quebra de valores fundamentais que são conquistas históricas da civilização humana na construção de bases para a convivência. No caso da Palestina, esse entendimento vem sendo quebrado há muito tempo”, destaca Bruckmann.
A compreensão de que limites de respeito à vida humana não devem ser ultrapassados não é a única força que vem pressionando a mudança no posicionamento diplomático de diversos países. O mundo, neste momento, não tem interesse no conflito, também por questões financeiras e domésticas dos países envolvidos.
Monica, que também é professora e coordenadora do Núcleo de Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial da UFRJ aponta três atores importantes nesse momento de crise: a China, os EUA e a União Europeia.
Liderando um projeto de integração comercial ambicioso, a Nova Rota da Seda, a China tem todo interesse na manutenção da paz na região. A guerra é um obstáculo para o avanço de convênios de cooperação científica, tecnológica e de infraestrutura e à criação de cadeias de valor euroasiáticas que passam também pela África e pelo Oriente Médio. O projeto inclui 147 países do mundo, englobando toda a Ásia Central, o Sudeste Asiático, a maioria dos países africanos e diversos países da Europa.
Nos Estados Unidos da América do Norte, principal aliado de Israel, a opinião pública começa a se voltar contra a política norte-americana de apoio ao conflito. “Enquanto toma conhecimento da atuação de Israel na Palestina, graças à instantaneidade dos meios de comunicação digitais, a opinião pública é diretamente impactada. Isso acontece em um ano eleitoral, no qual Biden enfrentará um candidato que continua muito forte. Eles precisarão analisar o custo de acordos internacionais na política interna. E não vai ser fácil”, aponta Monica.
Já na Europa, os resultados práticos do envolvimento em outra guerra, na Ucrânia, têm causado graves impactos econômicos. O aumento colossal no preço das fontes de energia, como o petróleo e o gás, evidenciou a enorme dependência dos países do bloco de combustíveis fósseis da Rússia. “A Alemanha, maior economia do bloco, está em processo inflacionário e recessivo. A estimativa para o crescimento, em 2023, não passa de 1%, com altas taxas de desemprego. Essa situação se agrava com uma nova frente de guerra, limitando o acesso às fontes de petróleo e gás que dependem do equilíbrio na região do Oriente Médio”, aponta a professora.
Oportunidades para um mundo multipolar
A história prova que um mundo em convulsão e ameaçado costuma emergir da barbárie com a construção de fóruns e ferramentas progressistas, como a própria criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, após a Segunda Guerra mundial.
“Os momentos de crise têm dois lados. Por um lado, ele tira de cena as aparências. É nesses períodos que vemos movimentos e processos em seu aspecto mais substancial. Por outro lado, eles podem ser também uma oportunidade de fortalecer projetos democráticos, progressistas, capazes de apontar uma saída razoável para o conflito. A crise que Israel, com sua política de extermínio em Gaza, fez desabrochar no mundo, coloca à prova todo um conjunto de valores e de debilidades do sistema internacional. O conflito em Gaza colocou o ocidente no limite da credibilidade, da legitimidade. É um planeta novo que está emergindo, uma nova ordem política, econômica, internacional onde o ocidente e os EUA não têm o peso que tinham há 40 anos”, ressalta Monica.
É nesse contexto de reconstrução do mundo em bases multipolares que o Brasil e todo o sul global se inserem. Atores emergentes têm demonstrado força política, com uma atuação mais enfática, inclusive com capacidade de conduzir alternativas que podem viabilizar um mundo em circunstâncias mais racionais. Monica destaca que, no caso do massacre na Palestina, os países do sul, eles mesmos vítimas do colonialismo, emergem como vozes importantes.
No Brasil, o desafio geopolítico acontece em momento de retomada do papel do país na esfera internacional. O país, analisa Monica, tem reconstruído as bases que o colocam em posição de participar das esferas decisórias da conjuntura mundial e da construção do que será da economia mundial.
“Estamos lá como força cultural, como um país que se reconhece como representante de toda uma região. O governo tem plena ciência de que, de alguma maneira, representa a participação da América Latina nesses espaços. É uma pena, porém, que na recuperação da integração regional, não haja avanços. Seguimos na contramão do planeta. A África está se integrando como jamais fez nas últimas décadas, a União Europeia segue sendo o maior fórum de integração da região, a Ásia está se configurando. Nós abandonamos o processo de integração latino-americana há seis ou sete anos. Conquistas importantíssimas do século XXI seguem paralisadas. Espero que as mudanças no mundo ajudem a colocar em perspectiva a importância de retomarmos os esforços para a integração regional na América Latina”, finaliza Monica.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.
Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ
Foto em destaque: Rovena Rosa/Agência Brasil