Cresceu o apoio a Lula dentro dos setores cristãos evangélicos, em comparação ao cenário das eleições de 2018, afirma o teólogo e historiador Fábio Py, professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), estudioso das relações entre religião, política e movimentos sociais. “O jogo está mais equilibrado”, avalia. Ele aponta cerca de 38% das intenções de voto no pré-candidato petista entre os evangélicos, principalmente nas igrejas de periferias e nos movimentos sociais, onde as mulheres teriam papel estratégico, levantando pautas concretas relacionadas à sobrevivência: fome, violência, terra, moradia.
De acordo com Py, o plano principal da campanha do Lula nesse campo é se aproximar de evangélicos de esquerda ou de periferias. Nessa estratégia, uma ampla reunião online, em outubro do ano passado, reuniu 700 lideranças de diferentes igrejas. À frente do movimento está, em primeiro lugar, a deputada federal Benedita da Silva, ligada à Igreja Presbiteriana Betânia, de Niterói. E também Ariovaldo Ramos, pastor e missionário importante no setor progressista, Neuza Valério, que faz a interlocução com os evangélicos no MST, e Valéria Cristina, representativa no movimento em defesa da igualdade entre os gêneros.
A ideia é construir comitês populares evangélicos, que aprofundem as conversas sobre religião e política nas periferias. Participam dessa mobilização, na sua maioria, igrejas periféricas, como igrejas Batistas locais ou a Assembleia de Deus, em geral de menor porte, mas que representam, de fato, o maior número de evangélicos no país, explica o estudioso.
As grandes corporações religiosas cristãs, por outro lado, como a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), a Congregação Batista ou a Igreja Presbiteriana do Brasil, estão com o bolsonarismo, desde os primeiros movimentos para o golpe que afastou a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, diz Py. O suporte religioso dessa nova forma de fascismo, contudo, destaca o teólogo, vai além dos pentecostais, formado, na verdade, por uma tríade: “são os pentecostais, que têm uma atuação mais midiática, estridente, visível; e também os protestantes tradicionais, com formação universitária e intelectual, que estão operando dentro Estado, por exemplo, no Ministério da Educação; e o catolicismo tradicional e conservador”.
Colonização missionária liberal
Por isso, o professor e teólogo rejeita análises que atribuem a responsabilidade pela eleição de Bolsonaro apenas aos pentecostais. Argumenta que há diferentes formas de atuação dos evangélicos, e outras correntes religiosas conservadoras. Mesmo o lavajatismo, afirma, foi gestado nas comunidades evangélicas de batistas presbiterianos de Curitiba (PR), corrente cristã bastante tradicional. Segundo Py, a Convenção Batista Brasileira subsidiou viagens do procurador Deltan Dallagnol a várias igrejas pelo estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, etc., para defender a operação Lava Jato e atacar o ex-presidente Lula.
A ênfase do papel da religião na política coincide com o que o historiador chama de “transição religiosa instracristianismo”. Ele cita previsões segundo as quais, em 2034, os católicos deixarão de ser maioria na população, caindo para baixo dos 50%, em um processo gradativo de perda de hegemonia.
Essa migração cristã, conta o historiador, começou na década de 70, quando a CIA e outras agências americanas passaram a enviar missionários ao Brasil. “As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), de esquerda, se expandiram para os interiores do país, organizando sindicatos e associações. O governo militar reagiu com as tradições. Consultou agências norte-americanas, que financiaram a chegada de uma leva de missionários”, lembra Py. Entre eles, cita Billy Graham, falecido em 2018, que era membro da Convenção Batista do Sul, conselheiro de vários presidentes e políticos dos EUA, e reuniu mais de 200 mil pessoas no Maracanã, em 1974.
A partir dos anos 1980, expande-se rapidamente a quantidade de missionários no Brasil, vindos principalmente do Sul dos EUA. “Isso faz parte de um amplo processo para influenciar os países das Américas”, afirma o historiador, lembrando que o mesmo aconteceu em outros lugares do continente, como a Argentina, onde desembarcaram em especial muitos batistas. “Começam a fomentar esse ímpeto missional, trazem técnicas midiáticas, radiofônicas, televisivas, em consonância com o boom eletrônico que vivia o Brasil. Estão acostumados com a caminhada midiática e fazem parte de um grande projeto de influência dos EUA.”
Líder de uma das maiores corporações cristãs, Edir Macedo, da Iurd, teria sido discípulo de outro norte-americano famoso nas pregações de massa, o reverendo James Farwell. “Ele que ensinou que é importante produzir políticos que defendam a pauta da igreja”, diz Py. Esse projeto de evangelização, de inspiração liberal e com repercussões políticas e econômicas, adverte o historiador, continua em andamento e inclui uma abordagem específica para a juventude. O que significa que deve se ampliar ainda nos próximos dez ou quinze anos.
“Existe um projeto de evangelização: o que os EUA fazem mandando missionários para cá, incentivando coisas como o conceito de ideologia de gênero, escola sem partido, é uma nova expressão do liberalismo americano”, explica Py. “Não invadem o país, mas usam o mais importante. Nas periferias brasileiras não tem esporte, não tem nada, mas tem quatro igrejas por quarteirão dando assistência. Esses símbolos religiosos dizem muito para as periferias. E isso deve se aprofundar.”
Não por acaso, observa o teólogo, o bolsonarismo usa fortemente a linguagem cristã, presente nas expressões e nos gestos do presidente, da ministra Damaris Alves, no gestual dramático da primeira-dama Michelle Bolsonaro, entre outros. “Uma das poucas coisas que o governo Bolsonaro ensinou: a religião não pode ser desprezada como meio de ação política direta. Ele usa textos bíblicos em cada discurso. Não se pode desprezar essa inteligência, não do Bolsonaro, mas mas da brasilidade, que diz muito para periferia.”
Propostas de ação
Para Py, essa “sensibilidade religiosa é fundamental para o Brasil”. Ele destaca que, dentro dos movimentos de esquerda, no MST, há muitas mulheres evangélicas, que lutam por pautas urgentes. “A pauta da prosperidade é a sobrevivência: comer no dia seguinte, o filho não ser espancado, terra, moradia. A esquerda tem que escutar a pauta dessas mulheres evangélicas.”
O historiador chama a atenção para o fato de que os atores religiosos ainda são relevantes no Brasil contemporâneo. “A religião nunca foi desencantada no Brasil, que sempre usou a linguagem religiosa nas relações sociais e políticas: ‘vai com Deus, fica com Deus, Deus te acompanhe’… Na festa de família, sempre tem alguém que pede para fazer uma reza. A religião é uma forma de se comunicar e de aconchego para as pessoas.”
A saída, defende Py, é discutir a sério essas relações entre religião e política, ampliar os espaços de debate democrático, “em que se ouça o diferente”, sem desqualificar o evangélico a priori. Também recomenda fortalecer a indústria de checagens de mensagens, construir redes para combater as fake news, gerando massa crítica, e dar maior atenção às pautas relevantes para a vida diária das pessoas, como as políticas de renda complementar, o preço do gás, da gasolina, discutidas com linguagem simples e direta, que possa sensibilizar mais pessoas.
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o historiador e teólogo Fábio Py, entrevistado pela jornalista Beth Costa e pelo advogado e cientista político Jorge Folena, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano