Mayrinkellison Peres Wanderley* ͞
A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres aos ricos. A ela se soma a discriminação que pesa sobre índios, mulatos e negros.͟ (Darcy Ribeiro, em ͞O Povo Brasileiro͟)
Apesar da constatação do saudoso antropólogo e escritor brasileiro, a história do Brasil é permeada de golpes e alianças que se alinham a ideologias de cunho fascista. Desde a destituição da Assembleia Constituinte em 1823 até o golpe empreendido contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, podemos citar uma dezena golpes impostos à sociedade brasileira, muitas vezes com apoio daqueles que serão vítimas dos usurpadores do poder.
Mas o que ocorre de comum a todos eles? Primeiramente, há um descrédito na ͞democracia͟ em vigor pelo povo; depois, uma série de alianças sórdidas e interesseiras das classes dominantes; e, finalmente, a contraditória e efêmera união entre ambos. Como cimento que mistura e dá consistência a essa amálgama, as ideologias fascistas – perdoem-me o anacronismo quanto aos golpes anteriores ao século XX –, que criam uma falsa imagem de sensatez e ilusão de esperança. Os golpes ocorridos no período imperial sempre foram perpetrados pelas elites aristocráticas e que detiveram o poder político e econômico desde a Colônia. Sempre que os meios de produção estiveram em risco, ainda que em colapso pela sua própria contradição, vozes se levantaram para manter o status quo de uma sociedade pura, branca, próspera e dominadora.
A Noite da Agonia em 1823 contou com o apoio de militares e dos setores mais conservadores da antiga ͞elite͟ da então ͞recente͟ nação brasileira, outorgando a primeira Carta Magna que não legitimava a representação popular, em 1824. Não seria diferente com a antecipação da maioridade do príncipe D. Pedro, em 1840, apoiada pelo Clube Maiorista, coroando, mesmo contra a Constituição, aquele que viria a ser o segundo imperador do Brasil: D. Pedro II, visto que os interesses dos grandes proprietários de terras e escravos estavam ameaçados por revoltas populares por todos os lados, numa desestabilização causada pelo caótico período regencial. Sufocados os movimentos, seus líderes – predominantemente das minorias – eram exemplarmente punidos, para silêncio geral da sociedade e alívio daqueles que se sentiam ͞bons cidadãos͟.
A deposição de D. Pedro II e a instauração da República igualmente refletem a insatisfação da elite econômica pela perda da mão de obra escrava, mas sinaliza uma mudança de rumos em que as armas devem falar mais alto que a razão tão propagada pelas ideias positivistas da época. Ora, nos primeiros anos da jovem República, o Clube Republicano, os ͞salvadores da Pátria͟ e ͞Pais da República͟ mal promulgam uma Constituição em 1891 e, num ato infame de ilegitimidade, causada igualmente por levantes populares por igualdade e garantia de direitos, prometem ͞salvar a Pátria de novo͟, afirmando, nas palavras do ex-presidente Marechal Floriano [de Ferro] Peixoto: ͞Amigo, quando a situação e as instituições correm perigo, o meu dever é guardar a Constituição em uma gaveta, livrá-la da rebeldia e, no dia seguinte, entregá-la ao povo, limpa e imaculada͟. Resultado: aristocracia se revezando no poder até 1930.
E mal o Brasil se recuperava de outro golpe em 1930, o ex-presidente Getúlio Vargas, com apoio militar e de grande parte da sociedade brasileira, instaura o Estado Novo em 1937 e impõe uma Constituição autoritária e alinhada com as ideologias fascistas e populistas europeias. Nesse período, há praticamente o absoluto controle do Estado, dos estados federados, dos sindicatos, dos meios de produção e da sociedade como um todo. Embora tenha recebido o título de Pai da Pátria e tenha trazido inegáveis benefícios para o fortalecimento da unidade nacional e a autonomia econômica do Brasil, Getúlio Vargas, à época, representava a visão messiânica e paternalista que se assemelhava mutatis mutandis a alguns líderes contemporâneos como Hitler, Mussolini e Stalin. Censura, eugenia, fascismo, religiosidade aliada ao Estado, populismo, perda de direitos individuais e a forte influência militar caracterizam a Era Vargas, com um silente apoio da sociedade civil, subserviente a uma ilusão de estabilidade política que de longe era democrática. Fazendo um salto para 1964 (e não faltaram golpes nesse ínterim, claro), encontramos a sociedade brasileira ͞preocupada͟ com a ascensão do comunismo em todo o mundo, a renúncia de Jânio Quadros e a presença de um presidente de esquerda no poder. O pré-golpe do parlamentarismo era o ensaio de uma peça arquitetada para emocionar o público e fazê-lo viver a fantasia de que o Brasil precisava de ordem… e progresso (Comte, que Deus o tenha bem longe daqui).
Sob o lema ͞Deus, Pátria e Família͟, mais uma vez os setores mais conservadores da sociedade brasileira se unem com o povo e ambos saem às ruas pedindo proteção dos ͞céus͟, mas a ͞proteção͟ vem dos poderes da terra: das armas e da tortura, como de costume! E como a voz do povo é a voz de Deus, e o desejo do povo é uma ordem, o menu é entregue, mas com algumas alterações, porque o cardápio seria alterado sensivelmente: Deus fica lá na cruz, a Pátria é entregue a messias assassinos e a família brasileira vê seus pais, filhos e irmãos irem ao cárcere, enquanto o povo, nas palavras de Aristides Lobo, mais uma vez bestializado, via ͞a banda passar tocando coisas de amor͟. Foram mais de vinte anos de opressão, aparente ͞prosperidade econômica͟, retrocessos e silêncio… Sim, profundo silêncio, menos dos gritos oriundos dos calabouços do regime, daqueles que ousaram falar contra os milagreiros da ditadura. Mais um atentado à democracia.
Finalmente, após esse pesadelo que não parecia acabar, em 1988, o Brasil promulga uma nova Constituição, e, em 1990, tem empossado seu primeiro presidente eleito democraticamente desde 1960. Por pouco tempo, pois renunciou em 1992. Seguem-se mais quatro presidentes civis, sendo os dois últimos representantes do que se convencionou chamar de ͞esquerda͟ no Brasil. A primeira década do Século XXI é marcada pela prosperidade, por avanços sociais, conquistas constitucionais das normas programáticas e participação popular maciça. No entanto, desde 2013, sob a pecha da corrupção institucionalizada, inicia-se mais um levante conservador por pureza moral na política, na sociedade, na família e no poder. Contraditoriamente, aqueles que gozavam da participação do poder ou que silenciados pela melhoria da condição e vida da sociedade, voltam-se para um discurso moralista e violento e, num arroubo de emulação e pérfida infâmia, mobilizam-se para depor a ex-presidenta Dilma Rousseff, culminando com o golpe travestido de processo de impeachment, em 31 de agosto de 2016. Era impedida a primeira mulher a exercer democraticamente a liderança máxima do País.
E agora, o que se vê? A mobilização em torno de uma purgação da sociedade e política brasileiras é reflexo desse rasto de sangue e disseminação de ideologia fascista que mancha a história do Brasil, numa sucessão de golpes e alucinações populares que privilegiam a estética à ética. É sempre fugaz participação dita popular em movimentos que, como resultado, solidificam o ódio e a perpetuação de uma classe opressora, dominadora, discriminadora, mitigadora de direitos e violenta, que não se conforma em ser alijada do poder, mas quer impor a todos o seu próprio plano de ordem e progresso, afastando-se dos ideais republicanos e solidários.
Às vésperas das eleições presidenciais mais tensas da histórica recente do Brasil, a nostalgia por governos autoritários e o inconformado ódio à esquerda brasileira capitaneados por um novo messias militar revelam o estado patológico a que chegou a sociedade, que está disposta a abrir mão de suas liberdades a tanto custo conquistada e ceder a desejos de uma minoria abastada que, oferecendo o céu da ordem e do progresso, tem por cardápio o pão que o diabo amassou. Mas não se deve provar do menu no inferno. A sociedade organizada precisa acordar do seu torpor causado pela miragem pintada pelos movimentos reacionários iniciados em 2013 e dar um NÃO ao fascismo, ao autoritarismo, ao saudosismo da ditadura e a toda forma de discriminação, como se vê ascender nos dias atuais. Chega de atentado à democracia, não precisamos de mais retrocesso.
Chega de golpes!
* Mayrinkellison Peres Wanderley é historiador pela UFRN, mestre em Teologia, professor e advogado.