As Frentes Brasil Popular, Povo Sem Medo e o Projeto Brasil Nação realizaram na sexta-feira (27) ato unificado de resistência ao desmonte do Estado brasileiro e em defesa da garantia de direitos – inclusive das eleições diretas –, da soberania e de um modelo de desenvolvimento nacional. Presente à manifestação, o embaixador Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa, acusou o sistema financeiro de atuar para destruir a democracia e a autonomia do país. “O que estamos vendo é que o capital financeiro, que comandou a globalização, não quer saber de democracia; a democracia atrapalha.”
Tanto o embaixador, quanto o desembargador Lédio Rosa de Andrade, de Santa Catarina, alertaram para a associação do Poder Judiciário ao Ministério Público e à Polícia Federal para perseguir adversários políticos. Ao descrever a violência da Operação Ouvidos Moucos, da PF, que levou ao suicídio o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, o desembargador comoveu os cerca de 300 presentes ao auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), no Largo do São Francisco, no Rio. (Leia aqui o relato do desembargador.)
“Se essas coisas acontecem e ninguém é punido, isso não é corrigido de alguma forma, é porque já estamos vivendo num Estado de exceção”, afirmou Amorim, para quem democracia, soberania e desenvolvimento – entendido como aquele voltado à redução da desigualdade – são “indissolúveis”. “Se o Estado não é livre, se é dependente, o povo não é livre e é dependente, não só do seu governo mas de governos estrangeiros.” No eixo dos ataques em curso no país a essas três dimensões, ele apontou a Emenda Constitucional nº 95, que congela os investimentos públicos por 20 anos e promove a degradação de projetos na saúde, na educação, na área de defesa – como o programa do submarino com propulsão nuclear –, na proteção de recursos naturais na Amazônia e na camada pré-sal, entre outros.
“Não há jabuticaba mais absurda do que essa Emenda Constitucional que congela os recursos públicos em termos reais, mas que vão diminuindo em relação ao PIB; não há país no mundo que tenha feito isso, e por Emenda Constitucional”, afirmou o embaixador. “Qualquer que seja o [próximo] presidente – e é claro que queremos que seja um presidente progressista, e lutaremos muito por isso –, mas qualquer que seja ele, não vai poder governar. E para desmanchar isso, vai ter que entrar nos mesmos conchavos, que são, em grande parte, responsáveis pela situação que o Brasil vive, porque a maioria [do Congresso] não representa nada, mas os seus interesses próprios.”
Por isso, além de garantir que a próxima eleição seja “direta, livre e irrestrita”, Amorim espera que ela permita realizar uma reforma política capaz de restaurar a representação popular no parlamento, atualmente dominado por forças econômicas, com raras exceções. “Foi o poder econômico que derrubou a presidenta; foi o capital financeiro internacional, aliado à grande mídia brasileira, que derrubou a presidenta Dilma.”
Unidade e eleições sem subterfúgios
Contra o golpe e na mobilização a favor de pautas que continuam pendentes desde os governos petistas – “não conseguimos acabar com o genocídio da juventude negra, as mortes por aborto, não diminuiu o feminicídio …” –, Nalu Faria, da Marcha Mundial de Mulheres e da Frente Brasil Popular, defendeu a construção de uma unidade dentro do movimento social. “Mesmo que a gente se organize como movimento estudantil, sindical, de mulheres, é preciso que a gente se organize nesses espaços, na Frente Brasil Popular, na coalização com outras frentes”, disse. Essa articulação, segundo ela, foi que permitiu aos movimentos detectarem cedo o aumento do conservadorismo, da lesbofobia, da transfobia, da gayfobia.
Este momento de “agudização do conflito capital x vida” exige, de acordo com Nalu, “uma profunda reflexão sobre qual projeto a gente quer construir”. E no Brasil, diz, isso “passa por recuperar a democracia; não só representativa, mas construída em cada território, desde as nossas diversidades, para dar sustentação ao processo mais amplo de um novo governo, de uma nova democracia, porque a gente não quer ficar refém das alianças, dos acordos. A gente quer, de fato, avançar na construção de uma democracia e do poder popular.”
Várias conquistas brasileiras – matérias constitucionais, mas não só, como os direitos trabalhistas – estão sendo ameaçadas e desfeitas por essa força política que alia fascismo e poder financeiro transnacional. “Que vergonha ser embaixador do Brasil neste momento”, lamentou Amorim, referindo-se à tentativa do governo federal de descriminalizar o trabalho análogo à escravidão. “A simples intenção de fazer isso é espantosa.”
Além das ações do governo federal serem ruins em si, muitas delas estão sendo tomadas “por motivos sórdidos”, nas palavras de Amorim. “Essa medida do trabalho escravo, obviamente, precisa fazer parte de uma ideologia, mas veio para comprar voto”, disse, referindo-se ao esforço de Temer para assegurar maioria na votação que poderia autorizar sua investigação pelo STF, com base na delação e nas gravações do empresário Joesley Batista, do grupo B&F. Com objetivo idêntico, o governo promoveu o perdão de multas ambientais. “Destruir a vida humana e a natureza passa a ser uma coisa corriqueira.”
A jornalista Eleonora de Lucena, do Projeto Brasil Nação, observou que, no mesmo dia do ato unificado, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realizara o primeiro leilão desde 2013 de áreas do pré-sal, desta vez sem a exigência da Petrobras no controle das operações. “Hoje tivemos o leilão do pré-sal, por um governo subserviente aos interesses externos, que entrega riqueza em pontos estratégicos”, afirmou. “Tudo que foi construído desde 1930, quando o país se enxergou como nação, está sendo destruído.”
A solução para deter o rolo compressor do retrocesso, na opinião de Celso Amorim, deve ser “dentro da democracia”. Nesse sentido, o Projeto Brasil Nação, liderado pelo ex-ministro Luis Carlos Bresser-Pereira, está coletando assinaturas para um manifesto curto e direto a favor de eleições diretas e irrestritas (confira aqui o manifesto). “Isso é absolutamente fundamental, para que não criem artifícios impedindo as candidaturas que representam camadas populares”, disse o embaixador. “A opção mais realista é a das eleições diretas, sem subterfúgios, sem outro golpe parlamentarista, como houve contra João Goulart, sem barrar ninguém artificialmente. Deixem o povo julgar.”
Defesa e Forças Armadas
Além das perdas nos marcos legais dos direitos sociais, Amorim apontou fraturas no sistema de Defesa brasileiro. Ele criticou a condenação a 43 anos de prisão do almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear, considerado o ‘pai’ do programa nuclear brasileiro, e o risco de as Forças Armadas ficarem sem patrocínio político, ideológico e financeiro para atuarem na defesa dos recursos e do patrimônio brasileiro, incluídas aí riquezais nacionais em água doce, biodiversidade, energia, petróleo. “Não sabemos se, no futuro, a disputa por recursos naturais não pode levar alguém a querer lançar mão dos nossos recursos. E é por isso que precisamos de um submarino com propulsão nuclear.” O Prosub, um dos principais programas de desenvolvimento tecnológico da Marinha brasileira, sofreu cortes drásticos em seu orçamento.
Da mesma forma, os caças suecos, segundo Amorim, foram sempre os preferidos da Aeronáutica, porque, ao contrário dos modelos estadunidenses, permitiriam aos brasileiros domínio da sua tecnologia. “Porque não adianta você ter aqui um avião de último tipo – o que não é, no caso americano – e que, para mudar uma arma, seja preciso pedir licença a eles [ao país fornecedor]. O Brasil tem que ser um país soberano. É tristíssimo ver o que tem acontecido na Amazônia.”
O governo Lula criou, nessa direção, o Conselho de Defesa Sul-Americano, consolidado na gestão de Dilma Rousseff. O que era impensável, lembrou Amorim, na década de 60, durante o governo Kennedy, quando os EUA definiram para a América Latina uma atuação militar restrita à perseguição interna aos comunistas. “Essa era a visão. E as nossas FFAA estavam, aos poucos, recuperando a ideia de que era preciso defender a nação com caças modernos, sistemas de informação modernos para proteger a Amazônia, uso de submarino nuclear. E isto está tudo sendo posto a perder.”
O blog Tijolaço transmitiu trechos do evento: http://www.tijolaco.com.br/blog/direto-do-rio-ato-pela-soberania-e-pela-democracia/