A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está concluindo um Plano de Convivência em Defesa da Vida, conjunto de materiais para orientar o distanciamento social ou sua flexibilização e o retorno com segurança às atividades, até que esteja disponível em escala uma vacina contra o novo coronavírus, prevista para meados do ano que vem, na projeção mais otimista. A informação é de Carlos Machado, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes), da Fiocruz, que anunciou parceria com a Universidade de Oxford na pesquisa para porodução de uma vacina. Para evitar novos desastres derivados de pandemias no Brasil, diz o especialista, será urgente reforçar as estruturas sociais e o sistema de saúde, pego pela covid-19 em estado precário, subfinanciado e sob ataques sistemáticos há anos.
Machado participou do Soberania em Debate nesta sexta-feira (26), com o tema “Pandemia no Brasil – Onde estamos?” Segundo ele, há cerca de cem estudos para uma vacina em desenvolvimento, dos quais dez têm boas perspectivas de chegar a um resultado, e duas iniciativas estão mais avançadas: da empresa chinesa parceira do Butantã, em São Paulo; e da Universidade de Oxford, com a Astra Zêneca, associadas no Brasil à Fiocruz (leia aqui sobre a parceria). Uma vez descoberta em laboratório, o que se espera para o segundo semestre, a vacina vai precisar de investimento alto para produção – pelo menos cerca de 100 milhões de unidades para atender aos brasileiros, num projeto que entenda a importância da industrialização local –, além de importações complementares, priorizando a aplicação em profissioanis de saúde, equipes de segurança, grupos de risco.
“Até lá, temos que nos preparar para conviver com os critérios de distanciamento social; eles farão parte da nossa vida”, diz Machado. “Temos que pensar na produção de máscaras laváveis e reaproveitávies, porque as descartáveis geram um lixo imenso – como aconteceu no Reino Unido –, aumentar a produção de máscara de duas camadas; não é possível mais não ter álcool gel na bolsa; não é possível voltar a trabalhar em lugares fechados, sem considerar a redução do número de pessoas nesses espaços. Vamos ter que aprender a usar máscara toda vez que sairmos, aprender a manter distanciamento físico de parentes próximos e amigos, aprender a encontrá-los de outro modo.”
Ele reconhece que não é possível manter o isolamento por tempo indeterminado – medida que impacta a saúde mental e física dos confinados. Por isso é tão importante, diz, que os governos sinalizem claramente os critérios para fechamento ou abertura das atividades, e cumpram rigorosamente as etapas definidas, de forma coerente e com credibilidade. O coordenador do Cepedes/Fiocruz lamenta em especial a falta de gestão da crise no Rio de Janeiro, com grande quantidade de pessoas na rua, muitas sem máscara e sem as proteções adequadas, e também a falta de coordenação central e de critérios pactuados entre estados e municípios.
Como se preparar para o futuro
O fundamental, alerta Machado, é que o Brasil enfrente as condições de vulnerabilidade e fragilidade que agiram para fazer da covid-19 um acidente de grandes proporções, se não uma crise humanitária no país. “Os efeitos dessa pandemia vão criar mais vulnerabilidades, com as quais vamos conviver nos próximos cinco ou dez anos”, avalia.
O diretor do Cepedes se preocupa, em especial, com o avanço da pandemia para o interior, onde municípios têm menor capacidade de resposta, porque os recursos hospitalares estão concentrados nas regiões metropolitanas ou capitais. “Vivemos isso no Amazonas. Estar distante às vezes era estar três dias de barco. E com a proibição a circulação de barcos, houve grande impacto nas economias locais que dependem dos barcos para acesso a bens e serviços. Em maio, já tínhamos comunidades passando fome.”
Sem fortalecer o sistema de saúde, adverte, o país será incapaz de responder à pandemia, tornando-se vulnerável, e sem capacidade de resiliência para enfrentar novos desastres ou epidemias. “Imagine se ocorrer um deslizamento de terra nesse período, ou uma epidemia de chicungunha”, diz.
Por isso, o coordenador do Cepedes rejeita a expressão novo normal. “A ideia de um novo normal pode fazer parecer que o tínhamos antes era normal. Ônibus lotado não era normal. Essa situação de anormalidade, com a pandemia, vira uma fratura exposta. Não é normal ter milhões sem acesso à água na periferias; ter 40 milhões de pessoas vivendo na pobreza. A reconstrução, no pós-pandemia, deverá, então, reconstruir de modo melhor e mais seguro do que antes. Porque, se reproduzo o que havia antes, reproduzo as condições de vulnerabilidade que propiciam o desastre – sobre as quais tenho que atuar.”
Ou seja, enfrentar a pandemia e preparar o país para os riscos futuros de novos surtos ou ondas é resolver problemas crônicos: ampliar o saneamento, atacar a discriminação, melhorar o transporte público, parar com o subfinanciamento da saúde. Vários países da Europa, aponta Machado, já estão buscando formas de reduzir a assimetria social, que se ampliou muito com a crise da covid-19.
As medidas de distanciamento e flexibilização vão fazer parte da vida das pessoas. Mas é preciso que inspirem credibilidade e venham acompanhadas de medidas que assegurem condições àqueles que terão e já têm dificuldades para se manter – pessoas sem renda e em trabalho. Nas favelas cariocas, nas comunidades de maior densidade populacional, onde o vírus se propaga mais rapidamente e onde muitas vezes não é possível fazer o isolamento em casa, Machado defende que se garanta aos mais vulneráveis instalações com isolamento assistido por profissionais de saúde, de modo que se impeça o contágio por familiares assintomáticos de idosos ou pessoas com comorbidades, quando a doença poderá evoluir a estágios mais críticos, demandando mais dos serviços de saúde e expondo-os ao risco de morte. “Isso exige vontade política e ampla moblização da sociedade. Soberania envolve não só governos mas sociedade ativa, participativa, que demande seus direitos.”
55 mil mortos é um desastre
As equipes da Fiocruz trabalham a pandemia no Brasil como um “desastre” global. As características de um desastre incluem um evento disparador – por exemplo, um terremoto, que gera uma tsunami, que atinge uma usina nuclear, como em Fukushima; ou uma chuva forte, que, dadas as condições de ocupação não planejadas, produz um desastre como o que houve na Região Serrana do Rio. “O vírus, por sí só, não gera uma pandemia”, explica Machado. “Para que um desastre ocorra, preciso que haja um vírus e as condições de vulnerabilidade, muito relacionadas às condições de vida. Um estudo em São Paulo mostra que há maior mortalidade por covid-19 nas periferias do que nos Jardins. A depender de onde você mora, as chances de morrer são maiores.”
Além disso, influem as doenças preexistentes, as chamadas comorbidades e a capacidade de o sistema de saúde responder à demanda. “Na Alemanha, boa parte da resposta dada à pandemia se relaciona ao sistema de saúde bem estruturado e à capacidade de testagem”, afirma o diretor do Cepedes. “Com isso, o número de casos foi bem menor do que aqui. Estamos vendo a pandemia voltando a ter algumas ondas na Europa, que serão enfrentadas rapidamente.”
Já no Brasil, contudo, os ataques e o subfinanciamento do SUS podem comprometer o poder de reação do sistema. Machado cita, por exemplo, a existência de vários hospitais federais, com mais de mil leitos, que poderitam ser habilitados, receber novas equipes contratadas, para que essa infraestrutura ficasse como patrimônio para enfrentar uma nova pandemia, que pode vir em dois ou cinco anos. “Um desastre requer um evento disparador, mas não acontece se não há fragilidades –
55 mil óbitos é um desastre.”
Comparando maio e junho com os mesmos meses em anos anteriores, a média de mortes no Brasil dobrou. Isso inclui doentes de covid-19 mas também de outras enfermidades, devido ao comprometimento do sistema de saúde, que já vinha funcionando de forma precária. “O SUS vinha sofrendo um subfinanciamento, que se reflete claramente na pandemia”, diz Machado. “Temos óbitos relacionados à desassistência: dos 10 mil óbitos, quase 1,2 mil morreram em casa, sem receber qualquer assistência.”
O Plano de Convivência em Defesa da Vida, produzido pela Fiocruz, terá linguagem clara, pedagógia, com diretrizes baseadas em princípios e medidas adotadas internacionalmente. Uma das inspirações para o plano foi o trabalho feito no semiárido, onde mais de mil organizações se mobilizaram desde a década de 80 para mudar as políticas de enfrentamento à seca. Em vez de combatê-la, a abordagem passou a priorizar a adaptação e a convivência com o fenômeno, que é cíclico, de modo a garantir condições de vida principalmente às populações rurais. Uma concepção bastante conhecida pelas unidades da Fiocruz no Nordeste (Bahia, Ceará, Pernambuco, Piauí), que convivem com essa prática.
A tragédia do Rio de Janeiro
“Critérios para uso dos transportes, para fechar atividades econômicas, para lockdown… Essas medidas não são populares mas são necessárias”, explicou Machado. “É preciso, contudo, uma coerência, que não houve no Rio de Janeiro. Vimos medidas adotadas apenas no papel, alguns bairros do Rio, como Santa Cruz, Campo Grande, com grande movimentação de pessoas, desde o início. O governo do estado, junto com as prefeituras, particularmente da cidade do Rio, abriram mão de governar, de proteger a saúde da população.”
Em todos os países, a diretriz de segurança manda manter pelo menos um metro de distância, com máscara, ou dois metros, sem máscara, conta Machado. “O que se vê nos ônibus do Rio”, compara, “é a falência do Estado em definir critérios, do ordenamento do transporte público, porque era mais preciso colocar mais ôninbus em circulação, fazer um planejamento”. Da mesma forma, a decisão de retomar as atividades demandaria um plano, que também não foi elaborado: “Aí se faz essa abertura meia boca, um desrespeito com a vida das pessoas.”
No Rio Grande do Sul e em São Paulo, o pesquisador afirma que os governo estaduais assumiram um crompomisso com um modelo de governança, envolvendo muncípios, estabelecendo critérios comuns, mesmo com divergências. Já no Rio, na sua avaliação, “é uma tragédia: faltou governo e governança”, com estado e municípios adotando diferentes critérios para as medidas sem nenhuma articulação entre eles. “Não estou dizendo que um é o mais correto, mas, se não tenho sistema de governança pactuando critérios comuns, não tenho governabilidade sobre isso”, critica Machado.
A mesma desarticulação ele identifica no governo federal. “Vale [a crítica] para o país, que deveria pactuar com os governadores, como fizeram outros países desde o início. Esse trabalho de casa não foi feito aqui. Vimos tentativas muito produtivas, como o consórcio do Nordeste, que tem um comitê científico e vem tentando uma ação conjunta, mas que não teve nenhum apoio do governo central.”
> O Soberania em Debate faz parte da agenda do Movimento SOS Brasil Soberano, que é uma realização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Por meio de eventos, debates e produção de conteúdos temáticos, a iniciativa tem o objetivo de recolher subsídios para colaborar na construção de um projeto de desenvolvimento nacional com empregos, soberania e justiça social.