As pessoas brancas precisam reconhecer seu racismo e assumir a sua responsabilidade nessa engrenagem e no seu enfrentamento, defendem Ynaê Lopes, da UFF, e Aline Najara, da Uneb.
O movimento negro tem avançado de forma irreversível no combate ao racismo, mas a população branca, inclusive a que se pretende antirracista, ainda está longe de despertar para a gravidade do problema no país, onde o negacionismo persistente da sociedade tem mantido há séculos sua estrutura de privilégios.“É um debate que, cada vez mais, deve ser encarado com o tamanho que ele precisa ter”, afirma Ynaê Lopes, mestre e doutora em História Social na Faculdade de Filosofia Letras e Ciência da USP (FFLCH-USP), professora no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense – UFF. “Estamos concluindo, numa escala maior da população, que o racismo é algo que nos estrutura, mas também é preciso fazer com que as pessoas brancas, de fato, comecem a encarar esse assunto. O que significa não só reconhecer a existência do racismo, mas tomar para si a responsabilidade dessa engrenagem, entender como funciona e que fazemos parte dela, mesmo que a gente não queira; não faz parte da nossa vontade, do nosso desejo, está posto, faz parte da forma como a sociedade brasileira está estruturada.”
Aline Najara, mestre em Estudos de Linguagens na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde coordena o Laboratório de Estudos Africanos e do Espaço Atlântico (Leafro), ressalta que uma das características mais fortes da violência racial “é a sua capacidade de se reinventar e continuar operando”. Cita a escritora e psicóloga portuguesa Grada Kilomba, que, no livro “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”, definiu o racismo como “uma realidade violenta”, constatação que parece óbvia, mas “da qual muita gente não se deu conta”, diz Aline. Para ela, a autonegação é hoje uma das principais violências praticadas no país.
As duas pesquisadoras participaram, no dia 6, do Soberania em Debate com o tema O racismo e a falsa democracia racial no Brasil, promovido pelo SOS Brasil Soberano, movimento patrocinado pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), com mediação do historiador Francisco Teixeira. Segundo elas, a tomada de posição das pessoas brancas significa, na prática, reconhecer de forma profunda o seu lugar de privilégio baseado na cor da pele, adotar uma postura de extrema atenção a gestos, palavras, omissões, repetições de padrão, reagir objetivamente às injustiças, aprender a ouvir, buscar conhecer e ler autores e histórias de negros e negras.
“É preciso que esses aliados mostrem a que vieram, se vão nos dar as mãos ou vão querer apontar os caminhos; porque a gente não precisa de voz, precisa de ajuda no sentido de reconhecimento do problema, de entender que, quando uma pessoa negra está falando do racismo, ela precisa ser escutada”, diz Ynaê. “É fundamental que a gente entenda isso, sobretudo a população branca que está se inserindo de forma mais recente neste debate. Perceber que é um problema de todos mas que afeta de forma desigual pessoas brancas e negras; que cria lugares de privilégio para uns e de exclusão, de marginalidade, em alguns casos até de não existência, para a população negra.”
Crime perfeito
Uma das grandes barreiras para o combate ao racismo, diz Ynaê, é a dificuldade, ainda hoje, de a população brasileira se assumir racista. “Kabengele Munanga [antropólogo brasileiro-congolês] já havia pontuado isso: que o racismo é um crime perfeito no Brasil – não deixa pistas. E uma das grandes armadilhas e estratagemas desse crime é o mito da democracia racial.” A professora da UFF explica que o mito tem raiz no século 19, anterior à República, quando a intelectualidade brasileira buscava uma narrativa de fundação nacional na mitologia das três raças, que, vai utilizar depois, para se desenvolver, os elementos da análise de Gilberto Freyre, no livro, não por acaso, intitulado “Casa Grande e Senzala”, da década de 1930.
“O lugar está posto. É um autor que defende a presença africana na sociedade, desde que se atenha à senzala. Isso não mudou”, destaca Ynaê. O mito das três raças, partindo da ideia de uma formação nacional harmoniosa entre negros, índios e brancos, não permite o deslocamento dos grupos sociais de seus lugares de poder ou de subalternidade.“Quando alguém muda desse lugar, ascende socialmente, parece movimentação de placas tectônicas, o racismo aparece e a questão do lugar fica muito evidente. O racismo está nas universidades públicas e privadas, na praia do Rio de Janeiro, no Congresso, nas empresas, em todos os lugares.”
Ynaê observa, nesse sentido, que o mito da democracia racial vai diluir historicamente o racismo das relações sociais, e fazer com que não se reconheça a sua violência no país, embora ela possa ser reconhecida em outros lugares, como nos EUA. A exemplo do que se viu na explosão das manifestações contra o assassinato, em maio, do jovem negro norte-americano George Floyd, por um policial branco, em Mineápolis. “O movimento do Floyd recebeu uma repercussão imensa na mídia brasileira.Claro é algo bárbaro, mas acontece no Brasil todo dia e a postura da mídia não é, em momento algum, de repercutir essas notícias. Ou há silenciamento sistemático ou apresentam como algo muito pontual”, critica a pesquisadora.
Antes do assassinato de Floyd, Aline lembra que ocorreram, no Brasil, muitos casos brutais: a morte de João Pedro, no Rio de Janeiro, o caso do menino Joel, vítima da polícia baiana, o corpo de Cláudia Silva Ferreira, arrastado por um carro da PM, a menina Agatha, atingida dentro de uma VAN por bala disparada pela polícia, ou o corpo do pedreiro Amarildo, nunca devolvido à família. E, mais recente, a morte do menino Miguel, em Recife. “Todos os casos de racismo não têm conseguido tirar o véu que encobre os olhos a sociedade”, afirma. “Quando o branco que violenta é desmascarado, ele chora, publica notas, pede desculpa.”
Nesse sentido, diz Aline, “a sociedade patriarcal que chama a empregada de ‘menina’ e diz que ela é como se fosse da família, é a mesma que brigou e briga até hoje contra o direito dessas mulheres receberem por um trabalho digno, inclusive de manter a saúde a vida durante um processo pandêmico, quando a empregada doméstica vira uma atividade fundamental, porque [as pessoas brancas] não conseguem lavar a própria louça ou o próprio banheiro. A gente ainda precisa limpar a merda do branco, ainda precisa limpar toda essa sujeira. O racismo é isso, uma grande sujeira. A mão da limpeza ainda é a nossa.”
Uma nova historiografia
Uma nova historiografia está sendo escrita por homens e mulheres negras, atacando dois elementos chaves do racismo fundador e estrutural da sociedade brasileira: o negacionismo, que tenta esconder a brutalidade motivada pela cor da pele, e o silenciamento da ação poderosa da população negra na história do país. Uma reação que não tem volta. “Não há passo atrás possível, quando o movimento é de identidade, de reconhecimento do eu”, avisa Ynaê. “Um passo importante nessa direção é repensar as narrativas fixadas, recontar as histórias”, diz Aline.
É fundamental, nesse aspecto, dar visibilidade e relevância a figuras como o escritor e jornalista Luís Gama, ou a sua mãe, a guerreira Malê Luiza Mahin, a escritora Maria Firmina dos Reis, primeira romancista negra brasileira, do psiquiatra Juliano Moreira – que a imensa maioria pensa que era branco –, entre outras personalidades negras, apontam as pesquisadoras. E questionar referências e cânones que representem o pensamento racista, seja na história, na literatura ou na filosofia, os três eixos de conteúdo da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história da África e das culturas africana e afrobrasileira no currículo da educação básica. Ler Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, Cristiane Sobral.
O contraste de abordagens é o objeto da dissertação de mestrado de Aline, que analisou a forma como Luisa Mahin foi “retratada por um homem branco, de uma família aristocrática, descendente de senhores proprietários de escravizados”, comparando-a com a representação feita pela escritora Ana Maria Gonçalves, autora do livro “Um defeito de cor”. O trabalho foi publicado pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), adaptado para leitura em sala de aula, e transformado em história em quadrinhos.
“A população branca precisa se informar, se formar, para uma sociedade mais igualitária e mais justa, o que está muito longe de acontecer”, diz Ynaê. “É um caminho longo e vem sendo feito há muito tempo pela população negra. Estejam abertos a aprender com essa população.” Adotar práticas racistas, aponta Aline, implica conhecer a historiografia e a literatura dos homens e mulheres negras, pesquisar. “Para encarar e enfrentar o racismo, precisa ter olhos e querer ver.”
> O Soberania em Debate faz parte da agenda do Movimento SOS Brasil Soberano, que é uma realização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Por meio de eventos, debates e produção de conteúdos temáticos, a iniciativa tem o objetivo de recolher subsídios para colaborar na construção de um projeto de desenvolvimento nacional com empregos, soberania e justiça social.
Assista ao debate na íntegra: