O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) entregou à equipe de transição do governo a minuta de uma Lei Geral das Forças de Segurança Pública. O documento estabelece um modelo de governança para polícias, guardas municipais, bombeiros e peritos, e aumenta o poder dos governadores, tirando essas instituições da jurisdição das Forças Armadas. A informação é do advogado Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP, que participou do Soberania em Debate, programa do SOS Brasil Soberano, um movimento do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).
“As polícias precisam ter códigos disciplinares próprios; não podem usar os do Exército”, justificou o advogado. Ele lembra que a lei que rege as polícias é de 1969, regulamentada por decreto de 1983, ambos ainda da época da ditadura. “Esse [decreto] diz que o Exército coordena as polícias, e a Constituição diz que são os governadores. Ambos estão vigentes, numa afronta à Constituição. O anteprojeto limpa isso e refaz a governança, fortalecendo os governadores.”
Segundo o presidente do FBSP, “é uma lei muito simples mas ao mesmo tempo muito ousada, porque joga fora toda essa confusão normativa”. O anteprojeto entende que, como são instituições de força, as polícias “precisam ser valorizadas e fortemente fiscalizadas e controladas”, diz Lima. Isso significa definir como se faz uma abordagem, o que é legal e aceitável, como respeitar os protocolos de uso da força, inclusive dos acordos internacionais de que o Brasil é signatário.
A palavra-chave para a segurança pública, na opinião do especialista, é “governança”, e para consegui-la, será necessário suporte político, institucional e mobilização social. Mudar as regras do jogo , diz Lima, implica conceber segurança como um dos direitos constitucionais da cidadania. E, para assegurá-los, ele considera fundamental promover sinergia de forças e recursos.
Na opinião do presidente do FBSP, a Lei 13.675, que criou o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), em 2018, tentou uma mínima coordenação federativa, mas o governo Bolsonaro não implementou nada nessa direção e a prática tem sido de ineficiência ou desperdício. Ele cita, por exemplo, a situação das cidades de Humaitá e Lábrea, no sul do Amazonas, estado que faz fronteira com Rondônia. A polícia de Manaus não tem uma ligação fluvial fácil com as cidades, exigindo deslocamento aéreo, de custo proibitivo, enquanto a polícia de Rondônia está a menos de uma hora dos municípios. “Mas a polícia de Rondônia não pode atuar no território do Amazonas”, destaca. “É possível pensar em consórcios federativos? Claro que sim, mas Lima lamenta que não tenham sido tentados. E, pelas dificuldades logísticas, os crimes acabam impunes.
Por outro lado, as “megaoperações” das Forças Armadas contra o desmatamento, lideradas pelo Exército com até 20 mil participantes, embora caras, não teriam gerado impactos estruturais. O advogado observa que as apreensões e prisões precisam ser encaminhadas a delegacias da Polícia Federal ou Civil para serem transformadas em inquérito policial, esbarrando novamente nos gargalos do setor. “Roraima tem, em todo o estado, 56 delegados de polícia e 33 distritos policiais. O governo gastou R$ 500 milhões para levar criminosos ambientais para as delegacias, onde temos 50 policiais…não tem como dar certo.”
O narcotráfico, por outro lado, conta com grande poder econômico na área, já que a Amazônia se tornou ponto estratégico para a distribuição da cocaína no mundo. “Para se ter uma ideia, estima-se que a cocaína que passa pelo Brasil e não é apreendida equivale a 4% do nosso PIB”, diz Lima. “O dinheiro injetado na economia da região é maior que o pré-sal brasileiro. E eu vou conseguir combater isso com 56 delegados em Roraima? Nem com os 900 delegados da região toda. Então a grande questão é como fazer a coordenação federativa.”
O que é segurança pública
A própria concepção de segurança divide a sociedade. “Precisamos entender que estamos numa disputa paradigmática, de conceito”, destaca Lima. “Se a gente pensa só na justiça criminal, pode até pensar na prevenção, mas sempre vai pensar no crime. Esse é o grande erro do Brasil, tanto no campo conservador, de direita ou da extrema direita, quanto de governos de esquerda: entender que segurança é somente polícia. É muito mais do que isso. Acredito que esses são os grandes dilemas que teremos daqui para frente, para fazer um projeto verdadeiramente democrático e cidadão, que pense a segurança como um direito fundamental e não como subsistema derivado do sistema de Justiça. Infelizmente, essas questões não são tão simples e muitas disputas serão travadas mesmo no campo progressista que defende os direitos humanos.”
De acordo com a Constituição, segurança pública é um direito social, como saúde e educação, prevista no artigo 6º e também no preâmbulo do texto, apontada como um dos principais direitos a serem protegidos e assegurados à população. Lima acrescenta: segurança é a capacidade de ir e vir, a garantia de viver em liberdade, e não se restringe à ideia de repressão e prevenção da violência. Está associada à soberania sobre o território – aquela soberania perdida, por exemplo, nas áreas dominadas pelas facções do tráfico ou pela milícia.
Para ilustrar as diferentes concepções em jogo, o presidente do FBSP lembra a operação realizada pela Polícia Rodoviária Federal com a Polícia Militar na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro, que resultou na morte de 22 pessoas e na apreensão de uma dúzia de fuzis. “Como efeito colateral, a vida de 70 mil pessoas da Vila Cruzeiro ficou em suspenso até o fim da operação. É isso que se precisa discutir num projeto de país: se fazer segurança é garantir que aquela população se veja livre de milicianos, traficantes e demais criminosos, se mais de 70 mil pessoas importam mais que ir lá e neutralizar 20 pessoas, sem saber se elas são culpadas ou não, e assim por diante. A nossa tradição é simplesmente fazer o enfrentamento, mesmo que às custas da liberdade e da capacidade das pessoas viverem – ir à escola, trabalhar, ter espaço de lazer… Esta é a questão sobre ter segurança.”
O bolsonarismo, na opinião do presidente do FBSP, soube explorar as fissuras desse modelo datado dos anos 60 e que nunca foi atualizado, embora os recursos bélicos e tecnológicos tenham avançado imensamente. “Deu a face real de um monstro que engole a nossa democracia – portanto, o bolsonarismo não é causa, é efeito de a gente nunca ter tido coragem política de botar o dedo na ferida.”
De acordo com Lima, são 86 polícias no Brasil, com culturas organizacionais diferentes. “Uma coisa é a PM do Rio de Janeiro, com seu padrão de uso da força; outra, a PM de SP, coisas completamente diferentes”. A forma como são regidas revela um caos que, na sua opinião, reproduz posições de poder importantes – seja na burocracia, seja para reprodução de papéis e de visões de mundo – como aquela de base fascista que afirma que bandido bom é bandido morto, ou que segurança é subordinada à Justiça.
Nesse sentido, o especialista defende com ênfase a criação de um ministério para a segurança pública. A primeira razão seria operacional, para promover a integração de órgãos que não se comunicam – a Polícia Federal com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, com a Secretaria de Operações Integradas, etc. Num caso prático, ele conta que o Sistema Nacional de Formação em Segurança Pública (Sinesp), desde que foi criado , em 2012, já gastou R$ 474 milhões para ter transparência de dados, mas a equipe de transição não sabe o que está ou não sendo feito na área.
O outro argumento a favor da pasta é político, para sinalizar prioridade ao setor, explica o advogado. “É uma mensagem para 700 mil policiais, mais de 90%, segundo algumas pesquisas, que foram bolsonarizados. No mundo todo, polícia é um tipo de profissional mais aderente a valores conservadores, e isso não tem problema nenhum. O problema é quando esses valores são radicalizados para a extrema direita e para defender a ruptura institucional.”
Finalmente, Lima aponta uma questão “principiológica”: o Ministério da Segurança Pública seria a efetivação de uma prioridade de um direito que é o único ainda sem uma área de primeiro escalão para chamar de sua. “O ministério seria uma forma de mudar essa relação tanto principiológica quanto de priorização, tanto política quanto operacional. Mas o entendimento, segundo a imprensa e as entrevistas do coordenador da equipe de transição do setor, senador Flavio Dino, é que neste momento não será recriado.” O especialista espera, contudo, que o sistema faça essas priorizações, mesmo com a estrutura do atual Ministério da Justiça e Segurança Pública.
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o advogado Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entrevistado pela jornalista Beth Costa e pelo advogado e cientista político Jorge Folena, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano