Não há ainda retomada do crescimento, muito menos a tal recuperação em V – como o ministro da Economia, Paulo Guedes, chama a perspectiva de que, após a recessão, a economia dê um salto. Essa é a conclusão dos economistas Luiz Carlos Prado, professor no Instituto de Economia da UFRJ, e Juliane Furno, doutora em Desenvolvimento Econômico na Unicamp e militante do Levante Popular da Juventude. Eles analisaram o PIB do terceiro trimestre, que registrou crescimento de 7,7% em relação ao trimestre anterior e queda de 3,9%, na comparação com o mesmo período no ano passado.
“A variação de um trimestre para o outro diz muito pouco”, alerta Juliane. “Em uma economia que chegou quase ao fundo do poço, crescer no período posterior é algo bastante esperável, já que partimos de um nível muitíssimo baixo.”
Para Prado, a queda do PIB em relação a 2019, em particular, sinaliza o mau desempenho econômico, porque, há um ano, a economia já estava em crise, mesmo sem pandemia: o PIB do ano passado cresceu apenas 1,4% (somando R$ 1,891 trilhão). “A economia estava parada, e o que houve agora foi uma retomada da atividade puramente estatística, em relação ao período desacelerado; não um cenário de recuperação e crescimento”, explica. “A queda só não foi pior graças à política de transferência de renda, concedida por pressão da oposição. Foi isso que salvou o país de um desastre maior.” No ano que vem, ele acredita que a desaceleração voltará a ser sentida, mantendo o quadro de baixo crescimento.
Pior, além de não indicar recuperação, o governo já ameaça cancelar em 2021 o auxílio emergencial responsável pelo escasso desempenho alcançado, e que só foi pago por pressão intensa das oposições no Congresso. Juliane lembra que 65% do PIB brasileiro é consumo, reflexo da demanda reprimida dos trabalhadores mais pobres, que têm necessidades prementes, não conseguem poupar e por isso dinamizam o mercado.
O que aconteceu com a economia brasileira, segundo a especialista, pode ser resumido da seguinte forma: “O total acumulado entre a queda do PIB do primeiro e do segundo trimestre chegou a 11,2%. O crescimento de 7,7% no terceiro trimestre significa que, embora positivo e extremamente elevado para os padrões de normalidade, ainda assim, a economia brasileira segue 3,5% menor do que era no último trimestre de 2019. Ou seja, não existe o tal crescimento em V que o Paulo Guedes tanto apregoa.”
Em vez de V, “raiz quadrada invertida”
O estilo de performance da economia brasileira, diz Juliane, está mais para uma “raiz quadrada invertida” – “a queda brusca nos primeiros dois trimestres, seguida de um crescimento importante, ainda que não suficiente para recompor as perdas, seguida de uma estagnação, um ‘platô’ de estabilização em um patamar de baixo crescimento, como já indicam os dados que avaliam os meses de novembro e dezembro.”
O que possibilitou o crescimento do terceiro trimestre, ressalta, foi uma base de comparação muito baixa, o auxílio emergencial e as políticas de crédito, então com os dias contados.
Juliane alerta para a necessidade de combater a falsa analogia criada pela mídia entre orçamento doméstico e de Estado, e o mito de que austeridade em política pública é a única virtude. “Somos bombardeados com a ideia de que o Brasil está muito endividado, mas a noção de endividamento de uma família é muito diferente”, diz. “O Estado, quando gasta, esse dinheiro retorna. É o chamado multiplicador fiscal. Os mais pobres gastam tudo o que ganham. Cada real gasto pelo Estado em uma política de transferência de renda, por exemplo, adiciona R$ 1,25 no PIB.“ Por isso, ela ressalta que mesmo entidades tradicionalmente fiscalistas, como o FMI, estão recomendando aos países que gastem e invistam para fazerem suas economias andarem.
Nesse sentido, Prado compara os movimentos internacionais, bem diferentes daquele pretendido por Guedes. A União Europeia aprovou orçamento de 17,1 trilhões de euros para 2021, e de 74 bilhões de euros em investimentos novos para a recuperação econômica. Já o programa de Joe Biden, eleito presidente nos EUA, prevê aplicação de US$ 2 trilhões em infraestrutura, mesmo caminho adotado pela China, que programa recursos na casa dos trilhões. “Enquanto isso”, critica o professor da UFRJ, “a única política que nós temos no Brasil é corte de direitos e de gastos. E a crença de que, por meio de alguma mágica, um grande volume de investimento viria para o Brasil. Mas eles não explicam como. Não há nem arremedo de projeto de desenvolvimento.”
Privatizações e 5G
Mesmo o programa de privatizações, um dos carros-chefes do projeto ultraliberal do governo, não dá nenhuma garantia de novos investimentos. “Comprador para um patrimônio como a Eletrobras, certamente tem, mas é patrimônio sendo transferido a custo baixo”, explica Prado. “A questão é se vai ter investimento novo, ou se vão comprar as empresas e apenas gerir esse patrimônio e cobrar mais pelos serviços.”
Na energia, por exemplo, ele observa que o Brasil tem um sistema nacional que se beneficia dos diferentes climas no território. Uma vez desmembrada essa rede, o país perde a margem de manobra e a gestão do sistema se torna mais custosa. Ou seja, instaura-se uma barreira de custo a mais para a retomada econômica. “A ideia de que o setor privado será mais eficiente… já vimos como é na prática, lá no Amapá”, diz Prado, referindo-se ao apagão que atingiu o estado por 23 dias, devido a falhas de manutenção em uma subestação de controle privado.
No saneamento, o professor da UFRJ argumenta que, embora possam surgir empresas interessadas em assumir a estrutura pública do serviço para atender áreas de alto poder aquisitivo, não se tem garantia de que vão investir nas periferias, cidades ou bairros pobres. Cita, por exemplo, as áreas dominadas por milícias no Rio de Janeiro: “Se o setor privado não conseguir se apropriar do lucro, ou se tiver que compartilhá-lo com criminosos, não faz sentido para ele investir. Dizer que a privatização vai trazer novos investimentos nessas regiões é um discurso vazio por parte do governo.”
Na verdade, o maior potencial para atrair novos investimentos privados estaria, diz Prado, nas telecomunicações, devido à introdução da 5G (quinta geração da tecnologia de transmissão de dados). “Uma retomada de investimento importante passa pela 5G na área de telecomunicações. Mas nesta área o governo sinaliza que vai criar uma série de dificuldades”, afirma, mencionando as restrições que Bolsonaro tenta impor à China, na figura da maior fabricante do setor, a Huawei, obedecendo diretrizes dos EUA.
Para Prado, além da 5G, outras áreas capazes de estimular a economia envolveriam investimentos em transportes públicos, logística para escoar o agronegócio ou a construção civil, com um programa habitacional. “Mas quando a gente analisa as ações do governo, não vê nenhum projeto consistente, mesmo do ponto de vista liberal. Não encontro estratégias sólidas.” O que há, diz o economista, é um potencial de grandes negócios para atender a grupos específicos, não à sociedade. “O argumento é sempre vender o futuro. Quando não acontece [o crescimento], dobra-se a aposta. O fracasso é sempre explicado pela insuficiência no tamanho do remédio.”
Resgate do Estado
Em 19 de novembro, durante Soberania em Debate promovido pelo SOS Brasil Soberano, ação do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), os dois economistas discutiram sobre caminhos para superar a crise. Será preciso “retomar o Estado brasileiro”, sintetiza Juliane. Ou seja, diz ela, acabar com a regra do teto dos gastos, resgatar o controle do Banco Central para que preze, junto com a política monetária, também pelo emprego; recuperar as empresas privatizadas, a cadeia de setores estratégicos, levar adiante uma política de industrialização, seja por meio de preços macroeconômicos, câmbio, juros, mas também por mecanismos que permitam inserir produtos em cadeias de maior valor adicionado, que tragam qualificação de mão de obra, desenvolvimentos tecnológicos.
“Teremos um mundo para edificar no próximo período, que parte de uma ação central do Estado, fortalecendo estatais estratégicas e fazendo a reforma tributária para recompor a capacidade de o Estado levar adiante o investimento público, a reforma política, do Estado, do Judiciário”, explica a economista. “O Estado planejando a atividade econômica é fundamental para retomar o crescimento econômico, com o emprego e distribuição de renda.”
> O Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). O encontro dos economistas Juliane Furno e Luiz Carlos Prado com Jorge Folena, advogado, cientista político e integrante da coordenação do SOS Brasil Soberano, está disponível no link abaixo.
https://www.youtube.com/watch?v=jf_SzS4zoQE