O Soberania em Debate recebeu a jurista Rita Cortez, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e conselheira da OAB, para discutir um tema que volta ao centro da agenda nacional: o direito ao trabalho decente. O ponto de partida foi a audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre pejotização — fenômeno que, segundo a entrevistada, tem sido usado para disfarçar vínculos empregatícios, contornar a CLT e subtrair direitos como férias, 13º, FGTS, horas extras e proteção previdenciária. A prática, lembra Rita, não se confunde com trabalho autônomo legítimo: trata-se de coagir o trabalhador a abrir um CNPJ para burlar a legislação. Quando identifica fraude, o Ministério Público do Trabalho atua, firma termos de ajustamento e busca cessar a irregularidade.
O tema chegou ao STF não só por via recursal, mas pelo uso ampliado da reclamação constitucional, que levou a corte a tratar a pejotização como tese com repercussão geral. Sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, houve a suspensão nacional de processos que discutem reconhecimento de vínculo, o que na avaliação de Rita, “congela” pleitos básicos de centenas de milhares de trabalhadores que dependem de verbas rescisórias para atravessar o desemprego. O tribunal pode fixar decisão vinculante, uniformizando a interpretação para todo o Judiciário. Para a jurista, parte da orientação recente do STF em matéria trabalhista tem sido conservadora, e ajudou a pavimentar mudanças que, na prática, fragilizam a proteção social.
Fraude e retrocesso
A moldura normativa evocada por Rita é clara: o princípio do trabalho decente, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), exige progressão — não retrocesso — nas relações capital-trabalho. O Brasil é signatário de convenções e tratados que reforçam essa diretriz, e a Constituição de 1988 “é avançadíssima” ao constitucionalizar direitos trabalhistas (art. 7º) e ao atribuir à Justiça do Trabalho competência para julgar relações de trabalho em sentido amplo (art. 114), inclusive quando é preciso desmascarar simulações contratuais. Tentar empurrar tais conflitos para a Justiça comum sob a desculpa de “contrato civil” é, diz a advogada, uma falácia que esvazia uma justiça especializada, com histórico de mediação, arbitragem e sensibilidade para a matéria.
Rita também separa conceitos que costumam ser misturados. Pejotização é fraude para retirar direitos e afastar o debate da esfera trabalhista. Terceirização é intermediação de mão de obra para a tomadora; o problema surge quando trabalhadores terceirizados, na mesma função e posto, recebem condições inferiores aos contratados diretos, ferindo a isonomia. Já o trabalho temporário deve ser excepcional — por exemplo, em sazonalidades do comércio —, mas a reforma trabalhista de 2017 ampliou modalidades e, na prática, transformou exceções em regra. A jurista critica, ainda, o precedente do STF que liberou terceirização em atividade-fim, antes vedada pela jurisprudência do TST, por alimentar um ciclo de precarização.
O impacto da reforma, para Rita, foi amplo: um pacote de mais de uma centena de alterações em que “se contam nos dedos” as melhorias efetivas. Além de reduções e eliminação de direitos, houve asfixia financeira dos sindicatos com o fim da contribuição sindical obrigatória, o que fragiliza a defesa coletiva e dificulta cumprir a obrigação legal de assistência gratuita. Nesse cenário, ganham importância as ações coletivas, em que sindicatos substituem processualmente milhares de trabalhadores sem expô-los individualmente — algo crucial num ambiente em que muitos só acionam a Justiça depois de demitidos, por medo de retaliação. O diagnóstico é duro: o Brasil ocupa posição “vergonhosa” no mundo quanto ao descumprimento de direitos trabalhistas, e entidades patronais reagem até a medidas básicas, como a igualdade salarial entre mulheres e homens, recentemente reforçada em lei.
Uma armadilha de ilusão
Há, além do embate jurídico, uma disputa cultural. A propaganda do empreendedorismo vende a fantasia de “ser seu próprio patrão” e tem seduzido jovens, inclusive universitários, à rejeição da CLT. Sem capital para abrir e — sobretudo — manter um negócio, diz Rita, a promessa vira insegurança econômica e empurra à informalidade. Trata-se de um processo de desassalariamento que desvaloriza o trabalho empregado e invisibiliza a teia coletiva de direitos construída por décadas de luta sindical.
Como sair da armadilha? A resposta, para Rita, está em cumprir a Constituição (que no preâmbulo afirma valores de solidariedade, fraternidade e democracia), recolocar a educação no centro, formando uma cidadania crítica contra a desinformação, e humanizar o Direito e a tecnologia: a digitalização e a inteligência artificial devem servir à cidadania, não substituí-la. É crucial também reabilitar a negociação coletiva como via de adaptação setorial — muitos ajustes que viraram lei nasceram de convenções coletivas, como o regime de férias e recesso escolar no magistério.
A audiência no STF, observa a jurista, só se abriu porque há um alerta fiscal e social: se a precarização avançar, “a Previdência quebra”, e o SUS também. O IAB tentou participar formalmente como amicus curiae e elaborou notas técnicas sobre cada item da pauta; o pedido foi indeferido, mas a entidade seguirá entregando estudos ao gabinete e acompanhando os desdobramentos. Nos próximos capítulos, estarão em jogo o alcance da tese vinculante a ser fixada pelo Supremo (delimitando claramente fraude e arranjos lícitos), o descongelamento dos processos suspensos e a recomposição do papel dos sindicatos na proteção coletiva. Em última instância, o veredito dirá quem paga a conta da flexibilidade: se cada trabalhador, isolado, ou a sociedade inteira, via rombos previdenciários e pressão sobre o SUS. Para Rita Cortez, o caminho já está traçado desde 1988 e passa por Estado de Direito, educação, políticas públicas e fortalecimento do coletivo como antídotos ao retrocesso.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra e redação de Rodrigo Mariano.
As entrevistas também podem ser assistidas pela TVT, Canal do Conde, e são transmitidas pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.