Pedro Felipe Muñoz*
No livro “Segurança, Território e População” (1) , Michel Foucault mostra que a noção de população substituiu a ideia de coleção de súditos – força produtiva do mercantilismo, propriedade de um soberano (rei absoluto), que detém também um território (seu reino). Mas população precisou deixar de ser um valor negativo e, muitas vezes, associada à noção de depopulação – como em Montesquieu (da diminuição populacional como problema) ou no malthusianismo (pela relação entre população e meios de subsistência) –, para se tornar objeto de saberes – medicina, criminologia, biologia, filologia, economia, etc. – e da gestão do Governo. A população se torna, assim, um sujeito-objeto das relações de poder, que precisa ser vigiado (princípio do panóptico), defendido e administrado, passando a ser pensada como poderio e riqueza do Estado, não mais em termos quantitativos apenas, mas também em termos qualitativos.
O nascimento da população entre os séculos XVIII e XIX ocorreu também com um triplo processo: da inversão da teoria da soberania (isto é, a constituição da soberania popular nas sociedades civis), da invenção das nações modernas e da entrada do povo na arena da política. No século XIX, esse novo ator político passou a ser visto, ora como uma ameaça à ordem e ao status quo, ora como uma massa a ser mobilizada para a ação política – seja pela afirmação do conceito de classes de Marx, seja por sua negação nos fascismos –, através de modernas técnicas de comunicação de massa, como bem observou Marshall Berman. Por essa razão, Foucault inclui na noção de população o surgimento de um público (opinião pública) e um sujeito de desejos a serem geridos.
Portanto, é a partir desse jogo histórico e político ligado à noção de população que podemos entender a constituição dos sistemas nacionais de segurança e saúde. No livro de Foucault, a população surge, assim, como objeto de uma arte de governar (governamentalidade liberal) que centralmente investe nos corpos (biopoder). Trata-se de uma nova forma de Governo dos Homens, que tem por base mecanismos disciplinares e dispositivos de segurança responsáveis, respectivamente, por uma normação (normalização disciplinar) e uma normalização (no sentido mais estrito do termo). Diferentemente da disciplina (cujo fundamento é a norma/lei), a segurança tem o suporte da matemática e é fruto de uma normalização produzida pela estatística moderna, que passou a instrumentalizar diferentes saberes que têm a população e a sociedade (globalmente) como objeto de conhecimento e de exercício de poder. Com o apoio da estatística e de seus cálculos probabilísticos, dados criminológicos e índices de morbidade são produzidos e analisados para se determinar o normal. O fundamento é a prevenção.
Isto quer dizer, é necessário organizar um conjunto de dados através de uma distribuição normal e de uma curva normal-padrão (sendo média = moda = mediana), que transforma algo desconhecido em algo conhecido, generalizável e previsível. E é através dessa veridicção normalizadora que toda a sociedade é organizada, incluindo aí a montagem dos sistemas de segurança e saúde públicos, assim como a produção de vacinas e as estratégias de combate às epidemias.
A curva normal-padrão não normaliza somente os dados e os fenômenos naturais, mas o próprio corpo social globalmente, pois é através dela que são estabelecidos os dispositivos de segurança que norteiam saberes e governos, isto é, procedimentos, protocolos, estratégias de ação e critérios para a mobilização de recursos que são, obviamente, finitos. Em suma, quantidade de hospitais e sua distribuição geográfica. Nesse processo, há todo um cálculo, bem como as noções de caso, crise e risco. Poderíamos dizer, gestão dos riscos.
Foucault logo percebeu que tudo isso, grosso modo, versa sobre a economia – o que explica o fato do seu curso seguinte no Collège de France, “Nascimento da Biopolítica” (2), ter se dedicado ao liberalismo e ao neoliberalismo econômicos. Em suma, podemos dizer que não há como se pensar em saúde sem a economia, ou vice-versa. Ambos fazem parte do mesmo sistema de relações e da mesma teia de exercício do poder.
E o que isso tudo tem a ver com a pandemia da Covid-19 e com o caso brasileiro? Uma epidemia (de grande e rápido contágio, principalmente) altera sensivelmente a taxa de morbidade de um país no tempo, isto é, a curva normal-padrão (um gráfico de mortes/tempo) que previamente instrumentalizou não somente os sistemas de saúde – incluindo os recursos empregados, como a quantidade de pessoal (médicos, biólogos e demais profissionais de saúde) e o número de leitos, de UTIs, de respiradores e de itens de segurança como máscaras e luvas –, mas também a nossa sensibilidade em relação à morte. A adoção do isolamento social (quarentena ou lockdown) visa, assim, não somente o controle do número de mortes – como único recurso de combate à epidemia, tal como ocorria no mundo pré-moderno e pré-pasteuriano –, mas, principalmente, o controle do tempo e o reposicionamento dos recursos empregados no combate ao vírus, no que tange à capacidade de atendimento por infectados (leves e graves) e aos meios de tratamentos, como testes de diagnóstico, fármacos e vacinas.
Se, por um lado, o isolamento social permite a readaptação do sistema de saúde e de segurança (ainda que à custa de um alto impacto econômico no curto prazo), por outro lado, seu objetivo é ganhar tempo para se refazer as estatísticas, achatar a curva epidêmica e reorganizar toda a governamentilidade, incluindo aí a proteção e o replanejamento do sistema econômico no médio e longo prazo. Sendo a população um sujeito-objeto da gestão governamental, isto quer dizer que o seu declínio brusco (depopulação) também gera um impacto significativo para macroeconomia de um país. Portanto, cabe ao Governo defender a sociedade contra todo e qualquer tipo de ameaça. O problema é quando inimigos reais são secundarizados ou substituídos por inimigos ideologicamente criados, como na gestão bolsonarista da Covid-19.
Além do controle do tempo, a crise da Covid-19 toca em outro aspecto que é especialmente caro ao caso brasileiro: nossa relação cotidiana com a morte. Em primeiro lugar, pode-se dizer que a pandemia altera a taxa de morbidade normal dos países, portanto, o que consideramos mortes esperadas por região, por faixa etária e por período de tempo, mas também mortes aceitáveis. Como bem nos mostra Foucault, essa morbidade normal (um número, uma estatística) não tem a ver apenas com a característica inelutável do Homem de morrer um dia. Essa morbidade normal tem a ver com a constituição do monopólio do saber médico, mas, sobretudo, com a nossa sensibilidade em relação à morte, considerando diversos fenômenos, tais como fatores criminológicos, socioeconômicos e endêmicos. Em suma, trata-se da gestão ordinária pelo moderno Estado liberal acerca da população e de seu perecimento.
Na última semana de maio, a Covid-19 já havia vitimado nos Estado Unidos mais de 100 mil pessoas – a primeira morte é de 29 de fevereiro. Embora esse número por si só mostre a gravidade do que estamos nesta crise global, nem todos se mostram sensíveis ao drama dos familiares estado-unidenses que perderam seus entes queridos. No dia 30 de abril, grupos armados se manifestaram contra as medidas de isolamento social naquele país(3). No Brasil, observamos algo semelhante. Ainda que o país tenha se tornado o epicentro da pandemia, muitos brasileiros permanecem anestesiados. Tais pessoas vociferam nas redes sociais e fazem carreatas e protestos de rua com grande aglomeração, pregando o fim do isolamento, o golpe militar e o retorno do AI-5 (ato institucional mais duro da ditadura de 1964-1985). Há no Brasil de Bolsonaro uma revolução conservadora em andamento, que é parte de um movimento internacional maior. E não é a primeira na História – basta lembrarmos do estudo de Annie Dymetman sobre a emergência do nazismo na República de Weimar (1918-1933). Em suma, o trumpismo e o bolsonarismo são faces sombrias do processo descivilizador que estamos vivendo, como parte do que Castells chamou de crise das democracias liberais do século XXI.
Os pronunciamentos de Jair Bolsonaro ao longo da pandemia da Covid-19, mas sobretudo a insignificância dada a ela, mostram-nos exemplos cristalinos da linguagem política operada. Ela tem por base criar uma lógica de desinvestimento no diálogo, através de uma narrativa axiomática. A arquitetura da indiferença e da banalização da morte foi produzida por meio de uma estratégia de comunicação (política e autoritária na Era digital), que estimula o conflito permanente, a crise, a instabilidade, a desagregação, a divisão, a fragmentação, mas, principalmente, provoca o medo e a desesperança nos inimigos ideologicamente criados. A fonte do bolsonarismo é sempre o ódio, a violência e a morte. Não há recuos.
O messianismo de Bolsonaro extrapola o populismo de direita, pois ele precisa corroer diariamente as bases da democracia e perverter a ideia moderna de verdade, que não é mais da ordem das verdades absolutas do mundo da tradição do Antigo Regime, mas sim de conhecimentos produzidos por acordos formalizados e limitados pela ética civilizada, tal como ocorre nos discursos científicos e jurídicos basilares do Estado de direito. O negacionismo bolsonarista busca tornar crível e aceitável a sua visão caluniosa de mundo, fabricando acontecimentos. Mas, ele é, sobretudo, uma estratégia política de ataque à diversidade (política, partidária, sexual, racial, de gênero, etc.) e aos direitos humanos. Portanto, o alvo principal é civilização.
Em seu livro “O processo civilizador”, de 1939, Norbert Elias narra uma longa história para mostrar como ocorreu a transformação da economia pulsional dos homens, que deixaram o livre exercício da violência (nobre medieval) para desenvolverem o autocontrole (homem civilizado). Para Elias, o autocontrole é a introjeção da lei social (penal e cultural), numa fase posterior ao controle social do Estado que detém o monopólio da violência e o poder de polícia. Grosso modo, a história do processo civilizador mostra como e por que nós abrimos mão da satisfação de desejos agressivos (como na paixão pela guerra e pelos duelos). Ela narra o processo de desarmamento de boa parte da população. Em nome de promessas de satisfação, a civilização cobra seus preços: uma acentuada descarga da agressividade no interior do psiquismo, segundo Elias, em claro diálogo com Freud.
O ethos civilizado, composto por um conjunto de valores aparentemente inquestionáveis, está hoje em crise. Elias reconhece que o processo civilizador possa retroagir. Ele fala, inclusive, de anomalias, sem, no entanto, explicá-las profundamente. Em termos marxistas, poderíamos dizer que essas anomalias são as contradições inerentes do sistema capitalista liberal causadoras de suas crises cíclicas. Joel Birman chamou isso de um mal-estar provocado pela distribuição desigual do gozo nas sociedades neoliberais de consumo de massas, sendo a violência em países como Brasil um produto do precário Estado de bem-estar. Trata-se de um país em que tais anomalias têm proporções dramáticas: profunda desigualdade social; racismo (produto histórico de nossa cultura escravista, segundo Jessé de Souza); a omissão do Estado; os excessos policiais e o brutal número de mortes violentas nos centros urbanos. Em um estudo sobre os chamados “autos de resistência”, Orlando Zacon mostrou que o número de pessoas mortas nas favelas do Rio de Janeiro por ano supera os números da Guerra das Malvinas de 1982 (4).
Observamos, assim, um acúmulo de anomalias (avessos da civilização normalizados) que precedem à pandemia. São, muitas vezes, microfascismos cotidianos (uma banalização do mal anterior ao bolsonarismo) que agora foram ressignificados, amplificados e difundidos, por meio de uma gestão dos medos. Portanto, o messianismo de Bolsonaro é um produto senão da profunda crise dos nossos tempos. Nela, os consensos básicos (como valor à vida humana) são pulverizados, tornando “normal” o
que outrora era indizível. Nas palavras de Hannah Arendt, é quando as forças subterrâneas da modernidade vêm à tona. Desde o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil foi dividido e essa divisão – bem representada no filme “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa – transformou os semelhantes em inimigos a serem combatidos e aniquilados, sem compaixão, como no caso do capoeirista Mao do Katendê e da vereadora Marielle Franco.
* Pedro Felipe Muñoz é professor do Departamento de História da PUC-Rio, doutor em História das Ciências e da Saúde pela
Fiocruz, com doutorado-sanduíche na Freie Universität Berlin.
NOTAS
(1) Referente ao curso no Collège de France ministrado entre 1977-1978. Ver sobretudo a aula de 25 de
janeiro de 1978.
(2) Curso no Collège de France ministrado entre 1978-1979.
(3) Sobre isso ver portal G1, 30/04/2020 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/30/com-manifestantes-armados-grupo-protesta-contra-isolamento-social-no-congresso-do-michigan-nos-eua.ghtml
(4) Sobre isso, ver O Dia, 07/06/2015. Disponível em https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2015-06-06/apos-analise-delegado-conclui-que-sociedade-aceita-violencia-policial.html