O sociólogo Michel Misse e o urbanista Carlos Fernando Andrade, ambos carnavalescos de blocos cariocas, reclamam apoio direto da Prefeitura ao Carnaval de rua, e não repressão ao evento, que consideram fundamental para a economia da cidade
As tentativas da Prefeitura do Rio de amordaçar e desidratar o Carnaval representam um ataque à economia da cidade e do Estado, que já enfrenta decadência aguda e enorme desemprego, alertaram os participantes do Soberania em Debate, realizado nesta sexta-feira (14), pelo Movimento SOS Brasil Soberano. “Não se mata a galinha dos ovos de ouro, num momento em que ela é um pintinho”, afirmou o urbanista Carlos Fernando Andrade, carnavalesco e um dos fundadores do Bloco de Segunda, que sai há 33 anos em Botafogo. “É um suicídio”, concordou o sociólogo Michel Misse, professor na UFF e na UFRJ, um dos criadores do bloco Maracangalha. O debate contou, ainda, com a mediação do historiador Francisco Teixeira, coordenador do Movimento SOS Brasil Soberano.
Atualmente, nenhuma outra atividade tem o Rio de Janeiro como centro relevante, capaz de gerar empregos, estimular a geração de receitas, além do Carnaval, avalia Carlos Fernando. “É importante entender que a festa tem uma centralidade imensa para a economia da cidade”, destacou, lembrando que, nos últimos anos, o empobrecimento urbano foi ainda mais drástico no Rio. “A informalidade na cidade é grande, e o Carnaval consegue canalizar uma grana do asfalto para o morro. É o momento de encher o isopor de cerveja e sair vendendo três latões a dez reais. São os blocos dos ambulantes, o bloco dos catadores.”
Economia criativa, para o Estado do Rio, não é uma novidade, ressalta o urbanista e carnavalesco. “Queria que os nossos governantes tivessem um pouco dessa visão. Ir contra o Carnaval numa economia decadente como a do Rio é um tiro no pé.”
Para os debatedores, a Prefeitura deveria assumir o apoio efetivo às atividades carnavalescas, o que reduziria em grande medida os transtornos inevitáveis da festa na rotina da cidade. “O papel da Prefeitura é oferecer banheiro químico, segurança, apoiar; e não, atrapalhar”, criticou o sociólogo Michel Misse. Na avaliação dele, os problemas começaram com a exigência de inscrição dos blocos na Riotur, para que tivessem autorização para desfilar. “A anarquia está em exigir inscrições e com isso produzir não inscrições. O tipo de regulação burra, e que não oferece nada em troca.”
Carlos Fernando lembra que o Bloco de Segunda chegou a tentar desfilar em um 7 de setembro, mas decreto do ex-prefeito Eduardo Paes proíbe blocos fora do Carnaval. O exagero de obrigações impostas aos blocos acaba por transferir às agremiações, muitas de pequeno porte, responsabilidades que seriam do Poder Público — como segurança, transporte, serviços de saúde. “Lógico que a Prefeitura tem um papel: a engenharia de trânsito, especialmente com os blocos grandes, que todo mundo sabe quais são”, explicou. “Faz-se isso para as paradas de 7 de setembro, para procissões, para o Réveillon — existe ciência e técnica para isso. É dever da Prefeitura. Quando passa para os blocos o papel de contratar profissionais de trânsito, por exemplo, é péssimo. Mas é preciso querer fazer e dar importância à atividade. E não tratar o Carnaval como atividade marginal, que tem que ser freada, punida.”
Resistência
Para os dois carnavalescos, o Carnaval do Rio não agoniza nem morre, numa referência ao samba “Agoniza mas não morre”, de Nelson Sargento, que deu título a essa edição do Soberania em Debate. Apesar disso, ambos se lembram de tempos não muito distantes em que o Carnaval de rua do Rio era basicamente restrito aos subúrbios, e estão atentos ao contexto político opressivo.
“O carnaval do Rio nunca morreu; não vejo o Carnaval de rua agonizando, nem dando mostras de que vai morrer”, argumentou Carlos Fernando. “Pode haver cerceamento, mas é o maior movimento popular do território brasileiro. E, neste momento, ainda tem um viés cultural e político muito importante. Participar do Carnaval é uma forma de resistência. Até econômica.”
O urbanista, que foi superintendente regional do Iphan, lembra que as matrizes do samba carioca são registradas como patrimônio imaterial do Brasil, mas não são imutáveis, com uma dinâmica própria. O ano de 1985, segundo ele, foi um marco nesse sentido, bastante associado à redemocratização, quando começaram os primeiros passos para o ressurgimento da festa na rua — até então concentrada nos desfiles das Escolas de Samba e nos caros bailes dos clubes. Simpatia é quase amor, Suvaco do Cristo, Barbas… foram alguns dos blocos dessa primeira geração da retomada.
Também para Michel Misse, “não houve nenhum momento em que o Carnaval tenha morrido, ou estado agonizante”. Até 1965, 1970, observou, o Carnaval de rua era fundamentalmente no Centro, o desfile dos blocos na Avenida Rio Branco — Bafo da Onça e Cacique de Ramos, e uma multidão que assistia e desfilava para seu próprio prazer. “O Carnaval, então, era todo organizado pela Prefeitura, a cidade era toda engalanada, havia apoio e incentivo direto do Poder Público, concurso de fantasia no Theatro Municipal, concurso de samba-enredo, música de Carnaval. Pouco antes do surgimento do primeiro bloco fora do esquema oficial, a Banda de Ipanema, vamos assistir a um momento em que ficaram só os desfiles de Escola, e os bailes de Clube. Acredito que haja uma correlação entre a redução dos bailes e o aumento dos blocos, que substituíram no espaço público o que estava no espaço privado.”
Resposta à opressão
Nessa dinâmica, o Carnaval tem sabido contrariar seus algozes.“Quanto mais oprime, mais você cria uma reação igual em sentido contrário”, observou Carlos Fernando. “Estamos atravessando um momento de repressão e o Carnaval tem essa resposta muito rápida. As marchinhas dão respostas imediatas. Alguém aparece, caria um samba, uma marchina. Os blocos são uma resposta vital ao momento político que o Brasil vive.” Em 1984, lembrou Michel Misse, a Tradição, dissidência da Portela, desfilou na avenida Rio Branco com o povo atrás cantando o samba “Vovô Sobral”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, que homenageava jurista, ao mesmo tempo em que fazia um chamado ao Estado de Direito e às eleições diretas para presidente.
Carlos Fernando reconhece que sempre é possível “demonizar” qualquer atividade, utilizando a mídia e discursos repressivos. “É perfeitamente plausível e normal criar uma situação favorável a qualquer coisa, até proibir amanhã o Carnaval porque é do diabo. Estou muito atento a isso, e propugno que todos fiquemos, a esse tipo de perversidade. (…) Eu me preocupo muito. Não estou absolutamente sereno com o que está acontecendo. E no Carnaval é evidente. A gente aparenta que tem muita força, mas há 30 anos não tinha. Lembro do Gilberto Gil olhando o carnaval no sambódromo e dizendo que não tinha carnaval de rua no Rio.”
Apesar de tudo, Michel Misse é otimista. “Carlos Fernando tem razão, já vimos coisas escabrosas, mas sou otimista. O carnaval é a maior movimentação de massas do Brasil. Tentar segurar isso é muito difícil. Faz parte da socialização do brasileiro. Os filhos acompanham os pais… mais do que a manifestação de massa, é uma criação afetiva, constitui nossa identidade, atravessando diferenças de classe, diferenças que tanto produzem preconceito, discriminação.”
- MARACANGALHA
Cobal do Humaitá
Dia: 23 de fevereiro
Início: 17h - BLOCO DE SEGUNDA
Rua Marques, ao lado da Cobal do Humaitá
Dia: 24 de fevereiro
Início: 11HVeja aqui a íntegra do Soberania em Debate com o tema “O Carnaval de rua do Rio agoniza, mas não morre”.