Chico Teixeira*
Eis que um rio transborda, e ele não se apressa, confiando ainda que o Jordão se levante até a sua boca. Podê-lo-iam porventura caçar à vista de seus olhos, ou com laços lhe furar o nariz?
Livro de Jó, 40:15–24
Aos três meses de governo, o presidente Bolsonaro já acumula um saldo surpreendente de crises e sobressaltos políticos e administrativos. Surpreende desde logo o fato de que o próprio ministério ainda não foi nomeado em sua plenitude para se pôr em condições de trabalho. Enquanto algumas pastas sumiram do mapa, como a importante pasta da Ciência e Tecnologia, outras, fundamentais, não conseguem se colocar de pé, como o caso das Relações Exteriores e da Educação. Nesta última, indispensável para o futuro do país, com um orçamento na casa de R$ 104 bilhões, todo trabalho e projetos – superadas as iniciativas de fachada – continuam parados. Em três meses, o MEC teve três secretários executivos e demitiu inúmeros quadros recém-nomeados, tornando-se palco – e a palavra não foi escolhida à toa – de embates circenses entre fiéis escudeiros de um personagem menor de cena momesca, alçado na maré extremista à posição de conselheiro do “rei”.
O Ministério das Relações Exteriores, um reduto reconhecido mundialmente por sua excelência, tornou-se um centro de teorias estapafúrdias e incoerentes que não seriam aceitas em qualquer exame de primeiro semestre em um curso de Relações Internacionais. Para além da transformação de uma instituição séria e responsável em um adro de igreja, as ações do “novo” Itamaraty, longe de aconselhar, moderar e conter os arroubos do presidente – que por desconhecimento e inexperiência poderia errar –, esforçam-se em competir com ele em formular absurdos, na via de prejudicar os interesses nacionais. A fila de obviedades de caráter contrário aos int eresses mais básicos da Nação já é longa: mal estar nas relações com a China Popular; choque com os países arábes-muçulmanos; fechamento de vias de comércio com a Federação Russa; prejuízo à suinocultura com a importação de carne dos Estados Unidos; assinatura de acordo de livre comércio automotivo com o México; solicitação de integração na OCDE sem debate prévio com os setores produtivos nacionais e análise da situação junto a OMC…
Além disso, um viés ideológico de alinhamento com Donald Trump – note bene, não se trata de uma alinhamento com os Estados Unidos como se afirma, mas com Trump, com declarações descabidas sobre a reeleição do presidente norte-americano, imiscuindo-se no processo político interno do país! –, e com países como Israel, Hungria, Polônia, República Tcheca, sem nenhum evidente ganho para o país.
O mais grave, no entanto, emerge da atuação incontrolável do deputado Eduardo Bolsonaro como um verdadeiro “ersatz” (chanceler), fazendo declarações e visitas, tomando posições, falando e usando bonés, não só em nome do presidente da República, mas do próprio Estado brasileiro. Esse é um caso inédito de um familiar do presidente da República assumir, ou usurpar, funções públicas inerentes de cargo próprio da constitucionalidade e inerentes do arranjo institucional.
Os esforços do vice-presidente general Mourão – independentemente de qualquer posicionamento ideológico, um homem formado através de um vasto e longo “cursus honorum” no Estado brasileiro – para colocar as águas turbulentas de volta ao leito institucional foram tomados como ofensa e esbulho do “pátrio-poder” da Presidência. Mesmo quando esta Presidência roçava o deboche, como durante o carnaval.
Apenas a presença dos homens oriundos das Forças Armadas (FFAA) no Governo Bolsonaro impediu, nestes três meses, que a barca governamental assumisse de vez a configuração do poema de Rimbaud como o “bateau ivre” [barco bêbado] entre as nações.
As relações entre os ministros e o próprio presidente se mostraram, da mesma forma, cruas e ríspidas. O Caso Moro é, sem dúvida, exemplar. O Super-juiz tornou-se rapidamente mais um ministro – o “funcionário do presidente”, na afirmação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia –, depois da exigência de demissão de uma conhecida especialista em segurança pública de um cargo de somenos relevância. O episódio foi uma humilhação desnecessária, gratuita e, mais uma vez, uma exigência colocada – via Twitter – por um dos filhos “presidenciais”.
Na Corte dos Bolsonaros não basta administrar bem. Não basta agradar ao presidente. É necessário agradar aos três filhos do presidente.
Ofendido e diminuído, o ministro-funcionário Moro resolveu falar grosso com o presidente da Câmara dos Deputados, não entendendo que, agora, o deputado Rodrigo Maia não era mais o “Botafogo” dos “vazamentos” acidentais da República de Curitiba. Agora ele era o dono do calendário do ganha-perde do governo. A resposta foi dura e rápida: o funcionário Moro – e também o seu projeto (copiado ou não do ministro Alexandre de Moraes, do STF) – terá que esperar mais por seus minutos no Jornal Nacional, não tendo m ais o poder de pautar a mídia como fazia desde Curitiba.
Na Brasília de traições e rancores, a reação veio em múltiplas frentes. A prisão de Temer e Moreira Franco e Cia (e aqui o “Cia” faz todo o sentido!). A conexão Curitiba-Rio de Janeiro-Gabinete do Ministro (funcionário) da Justiça fervilhou: tratava-se de responder ao Supremo Tribunal Federal de forma clara e dura ao golpe dado no cofrinho dos R$ 2,5 bilhões que se tinha amealhado nos EUA com o dinheiro da Petrobras. Já se tinha a baba e o gozo antecipado da vingança: prender Temer e obrigar o STF a dar um Habeas Corpus televisionado na contramão da Nação. E, como sobremesa, a prisão do “sogro” do “Botafogo” – o ex-ministro Moreira Franco & Cia, só para dizer que podiam, que continuam poderosos e que estavam atentos e fortes!
Demonstração de força! Num só golpe a Lava-jato, o MP, a PF, parte da Justiça da Primeira Instância – toda essa parcela do Estado brasileiro que se autonomizou da vontade popular e da institucionalidade sistêmica, e atua por vontade própria, imbuída por uma ideologia messiânica e salvacionista – buscaram ou emparedar o STJ e por extensão o STF, o Parlamento brasileiro e os partidos políticos. Reafirmar que politica é suja e corrupta, e que só eles, meninos formados nos Estados Unidos, são puros e limpos, e que eles podem, sozinhos, dizer o que é bom e o que não é para o Brasil.
A prisão de Temer – diga-se o que se quiser sobre sua atuação – foi ilegal. Só isso. Desnecessária, espetaculosa, ao arrepio do procedimento processual. Aceitar a prisão de Temer faz a segurança jurídica de qualquer cidadão brasileiro precária e pendurada no arbítrio de um punhado de messiânicos.
Moro participou e, 24 horas antes, sabia de todo o procedimento. Aí resta uma questão: dado todo o impacto sobre os interesses do governo Bolsonaro e a consequente paralisia da agenda legislativa, inclusive a somática Reforma da Previdência do ministro Guedes, Moro atuou claramente contra os interesses do Governo ao qual pertence. O ministro (funcionário) da Justiça avisou ao seu colega ministro-chefe do GSI da prisão do ex-presidente Temer? Avisou sequer ao presidente Bolsonaro?
Na Brasília das intrigas, Moro, funcionário de Bolsonaro, agiu como juiz da República de Curitiba, atacou o presidente da Câmara dos Deputados, paralisou o governo e traiu a agenda principal do governo ao qual diz servir.
Mas não parece ser um pecado capital, posto que o filho do presidente, vereador no Rio de Janeiro – mas que na ausência do pai despacha na Presidência! –, retuitou o ataque ao presidente da Câmara, detonando qualquer esforço do governo em constituir uma sólida base parlamentar no Congresso Nacional.
Nesses três meses de enredo, entre rasteiras e pontapés, passando por alguns vexames e muitas menções às partes do baixo corporal, a popularidade do presidente desaba, de forma inédita, cerca de 15 pontos percentuais. Bolsonaro parece não se preocupar. Num sarau em Washington, ao lado do seu inefável e bastante inútil chanceler, do guru da corte, do globe-trotter do neofascismo Steve Bannon, e de outros tantos, declara singelamente que: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa.”
Parece que o presidente caminha célere para o seu objetivo. O monstro solto ameaça devorar a todos que o libertaram.
Quando quer, move a sua cauda como cedro; os nervos das suas coxas estão entretecidos. Os seus ossos são como tubos de bronze; a sua ossada é como barras de ferro. Ele é obra-prima dos caminhos de Deus; o que o fez o proveu da sua espada.
Livro de Jó, 40:15–24
* Francisco Teixeira integra a equipe de coordenação do SOS Brasil Soberano e é professor titular de História/UFRJ.