Cristina Chacel*
(reportagem publicada originalmente no site #Colabora**)
O anúncio chegou embalado para presente com papel de seda e laço de fita. Em clima de euforia, o Brasil sombrio, que há dois anos arrasta correntes, sob forte perturbação política, brutal recessão econômica e perplexidade institucional, festeja a volta do Eldorado. O governo com 3% de aprovação popular, sem consulta, oitiva ou debate, passou nos cobres seis de oito blocos de petróleo depositados em camadas profundas da Bacia de Santos, as famosas áreas do pré-sal. Inaugura, assim, um novo ciclo de exploração, desta vez global, com a participação de grandes petroleiras do mundo.
A notícia que sai no jornal é alvissareira. Promete fortuna e esperança no curto prazo. No prato do governo na balança estão mais de R$ 100 bilhões em investimentos, a criação de 500 mil empregos, R$ 25 bilhões em royalties na próxima década, à razão de R$ 2,5 bi ao ano, entre outras vantagens. No outro prato da mesma balança, o da sociedade, estão valores que caíram em desuso, como democracia, soberania, transparência, participação, modelo de desenvolvimento, sustentabilidade e preservação ambiental. Está também uma joia nacional, há muito esquecida e abandonada: a Baía de Guanabara.
Mas que diabos a Guanabara tem a ver com isso?
Dizem que o diabo, assim como Deus, mora nos detalhes. E o detalhe diabólico que esse Eldorado esconde é a ameaça de mais degradação e mais saturação desta valente baía, palco da nossa história, território público de inestimável biodiversidade, sede da maior floresta de manguezais do Estado do Rio de Janeiro, lugar de gente simples, que ainda vive da pesca artesanal, berço de espécies marinhas, dentre elas os simbólicos botos, em extinção, e paisagem de identidade e afeto da população brasileira.
Logística
A resposta está na ponta da língua de quem estuda e vive a Baía de Guanabara. Como o biólogo Breno Herrera, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que por nove anos chefiou a Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim:
– Embora as áreas de exploração direta do pré-sal não sejam próximas à Baía, a estrutura de suporte logístico em grande parte está ali. A Baia virou um estacionamento de grandes barcos e a tendência é isso aumentar muito. A perspectiva é preocupante. Menos espaço para a pesca artesanal, impacto ambiental produzido por rastros de óleo e trepidação de motores que afugentam cardumes, e assoreamento crescente.
Ninguém desconhece ou nega que o principal problema da Baía é a falta de saneamento básico nas 16 cidades de seu entorno, um passivo social que data do século 19. Mas o advento do pré-sal adicionou uma nova e perversa ameaça ao equilíbrio do estuário. O levantamento é da própria Petrobras. Em relatório produzido em 2015, para o Ibama, como condicionante da Licença de Operação aos campos de Lula e Sapinhoá, a estatal identifica a Baía de Guanabara como área de maior densidade de navegação na Bacia de Santos. Os índices, superlativos, surpreendem: já em 2014 a Guanabara servia de estacionamento para 91,38% de todas as embarcações envolvidas na exploração do pré-sal e era o atracadouro de 89,68% desses navios.
Não por acaso. A bacia hidrográfica da Guanabara, de quatro mil km², é locus da Petrobras há mais de 50 anos. Reúne, no espelho d’água de 380 km², os terminais da Ilha D’Água, da Ilha Redonda, da Ilha Comprida e de GNL, que movimentam petróleo, derivados e gás natural, por terra e por uma rede de dutos submersa, que ninguém vê, mas está ali, desafinando a orquestra ambiental. Soma-se a este ativo flutuante, os empreendimentos em suas margens – a Refinaria de Duque de Caxias (Reduc) e o Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí, cujas obras paralisadas já estão sendo retomadas. Mas isso é outra história.
Áreas de exclusão
A geógrafa Carla Ramôa Chaves, em sua dissertação de mestrado para a UFRJ, compôs um mapeamento participativo na Baía de Guanabara, usando como fonte quem mais conhece suas águas: os pescadores artesanais. A conclusão merece atenção e reflexão. A indústria do petróleo, entre ativos fixos, flutuantes e em rotatividade, ocupa 44% do espelho d’água da Baía, sendo, portanto, sua maior usuária. O assédio faz da Guanabara um território de disputa desigual, interditado por zonas de exclusão, restando para a atividade da pesca 12% do espelho d’água.
– A baía é um porto de petróleo. A retomada do pré-sal com certeza vai aumentar a quantidade de navios e áreas de fundeio, produzindo um forte impacto para os animais e também para a população que vive da pesca artesanal – adverte a geógrafa.
Como a geógrafa, o oceanógrafo José Lailson Brito Júnior, do Laboratório Maqua, da Uerj, que monitora os botos da Baía, uma população que hoje não chega a 30 indivíduos e que há 20 anos somava 400, chama a atenção para a gravidade do uso da Guanabara como estacionamento para o fundeio de grandes embarcações:
– Nós, que navegamos diariamente pelas águas da baía, vemos navios de atendimento à indústria do petróleo estacionados por longos períodos, até quatro meses, e, mesmo parados, eles mantêm os motores funcionando, porque precisam de energia, produzindo um ruído subaquático ensurdecedor para os botos, que se comunicam pelo som. Sabemos que não há controle da entrada e saída dessas embarcações, que pagam valores irrisórios para estarem ali, menos que a diária de um hostel. Então, estamos tratando com grandes empresas privadas que usam um espaço público sem nenhuma regulação e fiscalização. Não há licenciamento de fundeio na Baía de Guanabara.
Zoneamento
Por essas e outras, o deputado Flavio Serafini, do PSOL, que mora e tem uma base eleitoral fiel em Niterói, decidiu realizar nova audiência pública para mapear os pontos críticos da Baía de Guanabara, agora à luz do pré-sal. Presidente da Comissão Especial da Baía de Guanabara instalada na Alerj há dois anos, ele defende a urgência de um zoneamento econômico-ecológico para regular usos e superar conflitos:
– Com a ampliação da atividade, é urgente regular o uso e a ocupação de toda a orla do Rio de Janeiro. O que temos é uma disputa, com repercussão séria em degradação social e saturação ambiental, sem um zoneamento econômico-ecológico para regular isso. Hoje, quase 50% do espelho d’água da Guanabara estão ocupados pela indústria do petróleo, com impactos inclusive na reprodução de golfinhos, ameaçados de extinção. A retomada do pré-sal vai significar o aumento do conflito. É preciso estabelecer limites para a indústria, sob pena de consolidarmos a Guanabara como pátio industrial do petróleo.
* Cristina Chacel é jornalista e escritora, atuou nos principais jornais do Rio de Janeiro. Há 20 anos trabalha como freelancer, com criação de textos jornalísticos e institucionais e projetos sociais e solidários. É autora de dezenas de livros, entre eles Rio de Cantos Mil, com fotos de Custódio Coimbra.
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