A Audiência Pública na Assembleia do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que discutiu, no último dia 13, os riscos para o país da privatização da Eletrobras apontou entre os efeitos da proposta o aumento de pelo menos 20% nas tarifas, desemprego em massa e fechamento de empresas, fim da soberania sobre os recursos hídricos e sobre um importante instrumento de execução de políticas públicas para o desenvolvimento do país. Também marcou a reunião de diferentes forças contra todo o programa de venda das estatais brasileiras, numa agenda de ação conjunta que já tem um grande ato programado para o dia 3 de outubro – data de aniversário da Petrobras –, em defesa da soberania nacional.
“Unificar para não privatizar” foi a palavra-de-ordem que saiu das galerias lotadas como síntese dos discursos de parlamentares do Estado e da Câmara Federal, de eletricitários, engenheiros, trabalhadores da Eletrobras, dos Correios, da Petrobras, da Cedae, da educação, de representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens e do Movimento Estudantil – UNE e Ubes –, da CUT, da CTB e da CSP-Conlutas, de órgãos como o Crea-RJ, Instituto Ilumina, entre outros.
“Nós precisamos reagir”, convocou o professor Luiz Pinguelli Rosa (à esq.) mestre em Engenharia Nuclear e doutor em Física, ex-presidente da Eletrobras, presente à audiência. “O Brasil está sendo destruído. O setor elétrico está sendo destruído. Não existe nenhum plano para o futuro do país; existe um governo que reflete declaradamente os interesses norte-americanos.”
Na mobilização social pela soberania, na opinião de Pinguelli, é necessário expor o papel do ministro da Economia, Paulo Guedes, que o físico avalia mais danoso do que o próprio presidente Bolsonaro com suas declarações “tresloucadas”. “O Paulo Guedes está trabalhando em silêncio, destruindo a economia brasileira”, afirmou. “E uma vez destruída, é irreversível. Será muito difícil, caso privatizem a Eletrobras, conseguirmos reestatizá-la, devido à natureza jurídica do país.” Por isso, ele defende a realizações de manifestações frequentes que denunciem o ministro “como o executor do plano norte-americano”.
A Eletrobras tem uma função fundamental na coordenação do sistema elétrico, especialmente em um momento de transição de matriz, em que cresce a participação das energias renováveis, diz Pinguelli, além de atuação relevante na gestão compartilhada com o Paraguai na usina de Itaipu. Segundo ele, “são muitas as razões” para não privatizar a empresa.
Por que a conta vai aumentar
Entre essas razões, o economista Gustavo Teixeira Ferreira da Silva, assessor na Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), destacou três principais dimensões dos impactos que atingiriam o país e o Rio de Janeiro com a venda da estatal: as tarifas, o caráter estratégico na execução de políticas públicas, e as perdas para a economia fluminense.
A privatização da Eletrobras prevê a liberalização das tarifas de diversas usinas que foram renovadas em 2013 e passaram a ofertar energia mais barata à população, com uma redução na conta de luz, em média, de 18%, explicou o economista. Agora, a proposta do governo é liberar o preço dessas usinas, tendo como contrapartida o pagamento, pelas empresas, de bônus de outorga para a União.
“Ou seja, o governo federal, como tem feito com outras usinas hidrelétricas, está cobrando um bônus daquela empresa que vai operar a concessão daqui pra frente”, diz. “No caso da Eletrobras, essas usinas já foram renovadas. O governo quer então se apropriar de uma parte do recurso, cobrando um bônus de outorga, e como contrapartida liberar o preço para o agente privado que levar as concessões.” De imediato, alerta o assessor da FNU, a liberação promoveria um aumento de 20% nas contas de luz, que foi a redução alcançada em 2013. “Mas isso pode ter impacto ainda maior”, observou, “na medida em que o novo acionista vai poder vender a energia no mercado livre”.
Para se ter uma ideia, a Eletrobras oferta energia atualmente, nessas usinas, a R$ 40,00 o Megawatt-hora (MWH), valor que poderia passar para mais de R$ 200,00 o MWH, valor praticado no mercado livre, estimou Gustavo. “Na década de 90, a desculpa para a privatização era a redução da tarifa; hoje, nem essa desculpa existe mais. Ao contrário, o governo está assumindo um aumento de tarifa ao privatizar a Eletrobras, para se apropriar desse recurso para fazer caixa para a União. Isso terá um efeito muito negativo, num momento de taxa de desemprego elevado, tendendo a reduzir o acesso da população mais pobre ao serviço de energia elétrica.”
Quem são os potenciais compradores
Outro aspecto crucial das empresas estatais está na execução de política econômica, com forte caráter contracíclico, ou seja, capaz de reverter ou atenuar cenários recessivos, como o atual. O economista lembrou que as estatais, como a Eletrobras e bancos públicos, sustentaram de forma decisiva a economia brasileira no período que se seguiu à crise internacional de 2008.
Nos últimos dez anos, dados do Banco Mundial revelam que os seis maiores investimentos privados no setor elétrico – da ordem de R$ 30 bilhões – foram viabilizados com a contribuição do BNDES e com a participação de empresas do grupo Eletrobras (Furnas, Chesf, Eletronorte, entre outras). “A estatais são um instrumento de política pública importante e de estímulo ao próprio investimento privado”, afirmou Gustavo.
Por outro lado, quando se observa a nível mundial, o que se vê é a globalização financeira em um contexto de baixo crescimento. O assessor econômico da FNU cita pesquisa sobre a composição acionária dos grandes grupos mundiais que disputam investimentos no setor elétrico, e que identificou três principais tipos de empresa: fundos de pensão/investimento privados; Fundos Soberanos (de base estatal, constituídos pelos países com suas reservas internacionais); e grandes grupos estatais.
No primeiro caso, Gustavo destaca o fundo de investimento norte-americano BlackRock, bastante agressivo, que tem participação na Iberdrola, controladora no Brasil da Neo Energia, na Engie (outra empresa internacional presente no país), na EDP-Energias de Portugal e no Grupo Equatorial. “Esses fundos atuam como um oligopólio e tem um interesse bem claro de rentabilidade no curto prazo nessas empresas: distribuir dividendos e enxugar ao máximo o quadro de pessoal.”
Os Fundos Soberanos com ação intensa no setor elétrico e de infraestrutura são de países em geral com reservas de exportação de petróleo. Em terras brasileiras, por exemplo, está o Fundo Soberano do Catar, presente na EDP e na Iberdrola, como o BlackRock. Com investimento na área de saneamento, há o Fundo Soberano de Cingapura. Nestes casos, também não há uma perspectiva de projeto de desenvolvimento ou universalização de serviços, mas metas financeiras para os investidores.
Finalmente, no terceiro grupo, das estatais, estão as chinesas – as maiores do mundo no setor elétrico –, como a State Grid, que adquiriu recentemente o controle da paulista CPFL, e a China Três Gargantas (maior hidrelétrica do mundo); ou a norueguesa Statkraf, maior geradora de energia limpa da Europa.
Demissões em massa no Rio
A nenhum desses tipos de compradores preocupa o fato de a privatização do Sistema Eletrobras vir a agravar de forma drástica a crise na economia fluminense, com demissões, fechamento de empresas e queda brutal na arrecadação. Gustavo lembra que a estatal chinesa Três Gargantas, que arrematou várias usinas nos últimos leilões, operadas pela Cemig (MG) e pela Cesp (SP), está construindo um centro remoto na região central do Brasil para controlar todas as unidades. “É uma lógica de operação remota que, na privatização, pode levar ao fechamento de Furnas ou a transferência de empresas para outros estados. No caso do Cepel – Centro de Pesquisa de Energia Elétrica da Eletrobras, teríamos uma situação muito mais dramática, que seria importar tecnologia de outros países, em um setor em que o Brasil domina.”
Além disso, as empresas privadas promovem aumento na terceirização. O economista destaca a situação da Celg, distribuidora de Goiás, privatizada. “O novo agente assumiu e já foram demitidos mais de 800 trabalhadores; e a proporção de terceirizados passou de 74%, em 2016, para 85% no ano seguinte.” No Rio de Janeiro, a Enel, antiga Ampla, da mesma controladora da Celg, tem 90% da força de trabalho terceirizada, segundo dados do seu próprio balanço.
O coordenador do Coletivo Nacional dos Eletricitários, Nailor Guimarães Gato, lembrou que no Rio de Janeiro há quatro empresas do grupo Eletrobras – metade da sua estrutura. E que nas negociações em curso para o próximo Acordo Coletivo de Trabalho, a empresa já ameaça com uma redução de 30% no quadro de pessoal.
Na contramão do mundo
A importância estratégica do setor elétrico é reconhecida mundialmente, mesmo nos EUA, referência do ultraneoliberalismo do ministro da Economia, observa o deputado estadual Waldeck Caneiro (PT), presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia na Alerj, que convocou a audiência junto com a Comissão de Minas e Energia,
“A Eletrobras representa cerca de um terço da capacidade de geração de energia no Brasil e possui mais de 40% das linhas de transmissão em funcionamento no território nacional”, afirmou o deputado. “Em um sistema basicamente hídrico, as dez maiores usinas hidrelétricas do país ou pertencem ou têm participação acionária da Eletrobras.”
Segundo Paulo Arthur Pimentel Tavares da Silva, conselheiro de Administração eleito pelos empregados do sistema Eletrobras, a empresa distribuiu R$ 15 bilhões de dividendos nos últimos dez anos, recursos para saúde, educação, segurança, e tem uma relação entre dívida e geração de caixa de 2.0, considerada padrão ótimo para as empresas. Em 2018, o lucro da estatal chegou a R$ 13 bilhões, e o governo quer vendê-la por R$ 12 bilhões.
Os exemplos internacionais indicam o fortalecimento do controle estatal no setor, ressaltou o deputado Waldeck Carneiro. “Em paises como França, Alemanha, EUA, China e Coreia não só se mantém uma presença robusta do Estado no setor elétrico, como tem havido reversões de processos de privatização praticados outrora.” Nos EUA, completou, além do Estado, o controle é feito pelos setores de engenharia do Exército, dado o caráter estratégico desses ativos.
“Quando vivemos no Brasil o maior apagão em tempo de paz conhecido por uma sociedade, nos anos 90, no governo de FHC, houve uma trava nos investimentos no sistema elétrico brasileiro”, lembro o deputado. “As empresas privadas não se interessaram em ampliar seus investimentos. Ao contrário, se interessaram em abocanhar e controlar empresas estatais, aproveitando dos polpudos investimentos já feitos com recursos públicos. Na Eletrobras, nos últimos 60 anos, foram investidos cerca de R$ 400 bilhões.”
Risco nas barragens
Razão por que até representantes do Movimento de Atingidos por Barragens estiveram na audiência pública para defender a estatal. “A empresa consegue nos fornecer energia cinco vezes mais barata do que as empresas que querem comprá-la, e a gente já pagou por esse patrimônio”, afirmou Andrea Livi, da coordenação do MAB. “Defendemos a energia elétrica, porque privatizá-la é o mesmo que privatizar os rios do Brasil, um ataque à nossa soberania. Água e energia não são mercadoria.”
Vítor Costa, diretor-presidente da Associação dos Empregados de Furnas (Asef) e um dos organizadores da audiência junto com Felipe Araújo, da mesma entidade e diretor do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ), criticou o governo pela ausência no debate, apesar dos convites, do Ministério de Minas e Energia, da direção da Eletrobras e do Ministério da Economia. “A Eletrobras tem mais de 40 barragens, algumas sexagenárias, e nunca passamos perto de um acidente como os Brumadinho e Mariana. A dissipação de uma barragem hídrica é muito pior do que uma barragem de rejeitos, é um tsunami”, advertiu Vitor.
Reação nas ruas
Para Olímpio Alves dos Santos (foto), presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ), o programa de privatização do ministro Paulo Guedes é, mais do que um equívoco, um crime. “Como devíamos classificar um sujeito que quer vender a Eletrobras, os Correios, e por aí adiante? Isso é crime de lesa-pátria. Como classificar quem, depois do golpe sangrento no Chile, em 1973, foi ao país destruir os direitos sociais do povo chileno, como fez Paulo Guedes? É um criminoso. Não podemos aceitar em hipótese alguma esse crime contra a soberania do país.”
O principal campo de disputa contra esse projeto, na opinião do dirigente sindical, será as ruas. “A defesa dos Correios, da Eletrobras, do Serpro, do Banco do Brasil, da Dataprev, entre outras, é uma luta pela soberania, da cidadania brasileira, que temos que fazer. Não vamos pedir licença a esses senhores; vamos ganhar essa luta na rua. Nas comunidades, nas igrejas, nos plenários… onde for necessário.”
Na construção dessa mobilização, já está marcada para o próximo dia 24 à noite, na sede do Senge-RJ, plenária de organização do ato do dia 3 de outubro contra as privatizações, parte da agenda da Frente em Defesa da Soberania Popular e Nacional, que está sendo coordenada no Rio de Janeiro pelo ex-senador Lindbergh Farias.
Segundo Lindbergh, a UNE já marcou paralisação para os dias 2 e 3, e está convocando manifestações de estudantes contra os cortes na Educação. “É fundamental todas as categorias estarem juntas: trabalhadores da Casa da Moeda, Petrobras, sistema elétrico, Dataprev e Serpro – que detêm os dados de 34 milhões de aposentados e de todos os trabalhadores na ativa…, todos precisam se unir.”
O calendário de atos no Rio de Janeiro inclui, ainda, o Seminário Internacional contra o Liberalismo, no dia 19 na Câmara Municipal, e 20 e 21 na Uerj; grande ato nacional em defesa da soberania e contra as privatizações, no dia 20, quando acontece o Dia Mundial Contra as Mudanças Climáticas; e no dia 3 de outubro, aniversário da Petrobras, o ato pela Soberania Nacional e Popular.
Estiveram presentes à audiência, ainda, entre outros, os deputados e deputadas federais Jandira Fhegali, Benedita da Silva, Glauber Braga, Marcelo Freixo, Alessandro Molon, os estaduais Max Lemos, presidente da Comissão de Minas e Energia na Alerj, Eliomar Araújo, Carlos Minc, o vereador Reimont, o presidente do CREA-RJ, Luis Antonio Cosenza, representantes da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), do Sindipetro Norte Fluminense, do sindicato do saneamento no Norte Fluminense, do Instituto Ilumina, da Federação Nacional dos Urbanitários, do sindicato e da federação nacional dos Correios.