Por Jorge Folena*
Neste mês de abril de 2024, o Supremo Tribunal Federal decidiu importantes questões relacionadas aos Direitos Humanos, em favor da população pobre, negra e periférica do Brasil, tendo em vista a ação das polícias que matam indiscriminadamente crianças, mulheres, anciãos e trabalhadores. A seguir, destaco alguns trechos das decisões que, inclusive, fixaram teses jurisprudenciais que devem ser seguidas por toda a magistratura brasileira.
“A busca pessoal sem mandado judicial não pode ser motivada pela raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física da pessoa, sendo vedadas generalizações fundadas em elementos discriminatórios de qualquer natureza para a suspeita policial.”
“O Estado é responsável, na esfera cível, por morte ou ferimento decorrente de operações de segurança pública”.
“…sempre que houver mortes, ferimentos graves ou outras consequências sérias pela utilização de armas de fogo por agentes de segurança pública, o MP deve analisar a possibilidade de iniciar investigação própria.”
É importante lembrar que, no julgamento da medida liminar da denominada “ADPF das favelas”, no Rio de Janeiro, o STF já tinha afirmado que “sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infração penal, a investigação será atribuição do órgão do Ministério Público competente.”
Referidas decisões do STF representam, em certa medida, um enfrentamento ao autoritarismo existente no país desde o período colonial, em que a classe dominante não tem nenhum apreço à vida das classes subalternas, que são descartadas e não respeitadas pelo Estado, que sempre optou pela farsa do “esquecimento”, em detrimento da memória e da verdade.
A estratégia do “esquecimento” possibilitou ao ex-presidente inelegível, defensor da tortura e da ditadura de 1964-1985, chegar ao governo do Brasil e, no exercício da presidência, usou as estruturas sob seu comando como palanques para proferir abertamente ataques à ordem democrática de 1988 e para justificar a existência e a permanência de grupos que fingem desconhecer os malefícios da ditadura no país e negam os horrores da escravização do povo negro e do genocídio indígena.
O governo do presidente Lula, que tomou posse em 1º de janeiro de 2023, enfrenta muitos desafios, tendo em vista a destruição promovida pelos fascistas que estavam à frente da Administração Pública anteriormente; porém, um dos piores problemas a serem enfrentados é o ódio social escancarado que ainda assola o país, herança deixada pelo ex-presidente inelegível, que se dirigia à sociedade brasileira apontando uma arma, símbolo da morte.
Em decorrência disso, as decisões do STF acima mencionadas são importantíssimas para se tentar restabelecer o equilíbrio das forças políticas e sociais no país, totalmente desmanteladas no governo anterior, que, em sua visão deturpada e aproveitando-se de não termos feito uma justiça de transição, estabeleceu como seus lemas os valores da última ditadura de 1964-1985, incentivou a violência e a repressão policial militar sem limites e desrespeitou seguidamente decisões do Supremo Tribunal Federal, como ocorreu na ação de descumprimento de preceito fundamental número 635 (conhecida como “ADPF das favelas”) no Rio de Janeiro.
Em referência à violência policial, importa registrar que, apenas entre maio de 2021 e agosto de 2022, num raio de menos de sete quilômetros no trecho que abrange as comunidades do Jacarezinho, Vila Cruzeiro e Morro do Alemão, na Cidade do Rio de Janeiro, ocorreram três chacinas, que deixaram mais de 60 negros e pardos mortos, em decorrência da política de tolerância aos abusos praticados por policiais, abertamente defendida pelo ex-presidente, cujo governo tentou aprovar a exclusão de ilicitude para policiais, que assim teriam licença oficial para matar.
Nesse passo, traçado pelo fascismo que se espalhou pelo país pelas mãos do ex-presidente, é necessário apontar que “o número de mortes cometidas por policiais militares no estado de São Paulo cresceu 94% no primeiro bimestre deste ano em comparação com o mesmo período de 2023, primeiro ano de Tarcísio de Freitas (Republicanos) à frente do governo de São Paulo”.
Infelizmente, a polícia, a serviço de um Estado controlado por uma classe dominante perversa, é incentivada a promover a matança do maior número de pessoas, vitimando frequentemente mulheres, idosos e até mesmo crianças, de modo muito semelhante ao que está ocorrendo agora na Palestina.
A guerra que se trava no Brasil é contra as vítimas da pobreza periférica e subalterna, integrantes de grupos sociais inteiramente desassistidos de quaisquer direitos fundamentais e essenciais à vida, assim mantidos ao longo de muitas décadas.
O colonialismo, ainda presente na sociedade brasileira, agravado pela ausência de um projeto em defesa da memória, da cultura e da resistência popular, constitui as origens da guerra que todos os dias ceifa principalmente as vidas de cidadãos jovens, pretos e pobres, mas também vitima policiais, paradoxalmente oriundos dessas mesmas camadas historicamente subjugadas, transformados em braços armados da classe dominante contra seus iguais, não para combater a criminalidade, mas sim para impor o conformismo diante das desigualdades e estabelecer controle social.
Há quem afirme, como o agora senador, antes vice-presidente da República de Bolsonaro, o general da reserva Hamilton Mourão, de modo indevido e com desonestidade intelectual, que os brasileiros são preguiçosos como herança dos povos indígenas e malandros como herança dos negros escravizados. Isso é repetido sistematicamente em livros, jornais e meios de comunicação social, sendo esta mentira assimilada por muitos indivíduos pobres, que apenas reproduzem, sem questionar, o que lhes dizem, sendo assim mantidos na ignorância e no preconceito.
A repetição constante dessas falsidades culturais tem o objetivo de marginalizar determinada parcela da população e mantê-la nessa posição de inferioridade e subalternidade colonial em pleno século XXI, de modo a justificar toda a violência estatal que recai sobre ela, a exemplo do que ocorreu nos massacres e chacinas de Vigário Geral, Acari, Parada de Lucas, Candelária, Eldorado dos Carajás, Paraisópolis, Jacarezinho, Vila Cruzeiro, Morro do Alemão etc., todos perpetrados por forças militares contra o seu próprio povo.
A classe dominante promove desde sempre um constante apagamento da memória nacional, ao mesmo tempo em que procura exaltar como heróis homens que violentaram e mataram nossa população no passado; os mesmos que, nos dias de hoje, promovem o extermínio da juventude das periferias e comunidades faveladas, dos camponeses, quilombolas e grupos indígenas que lutam pela manutenção da posse de suas terras ancestrais e preservação da sua cultura.
O proposital e constante apagamento da memória permite que pessoas nefastas como o ex-presidente inelegível naturalizem o racismo e promovam o ódio e a violação à Constituição (que estabelece que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão).
Nesse cenário, ressalto a importância das referidas decisões proferidas pelo STF, em reconhecimento dos Direitos Humanos, impondo-se ao governo do presidente Lula, entre seus muitos desafios, a implantação de uma política nacional de justiça restaurativa, que permita o diálogo permanente, baseada no objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de se construir uma sociedade livre, justa e solidária e de promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos e discriminações.
O processo de justiça restaurativa constitui o caminho para promover a reeducação da sociedade como um todo, podendo ser implementado por meio de ampla política de comunicação social e devendo contar, principalmente, com a participação de todas as forças repressivas, para incentivar a formação de uma nova mentalidade e estabelecer o entendimento necessário de que a população – formadora do Estado e titular final de todas as suas riquezas – é para ser assistida e protegida, e não assassinada, como tem sido feito ao longo da História do país.
*Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ. Apresentador do programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil