A fome no Brasil “é uma decisão política” , afirmou ao Soberania em Debate o agrônomo e professor da Unesp, José Baccarin, que foi secretário Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Programa Fome Zero, no primeiro mandato de Lula na Presidência. Na avaliação dele, o país precisa, como medida mais urgente, retomar políticas de suplementação de renda contínuas para tirar novamente o país do mapa da fome. Também defende o apoio à agricultura familiar e o uso do câmbio e do imposto de importação como mecanismos para garantir o acesso a alimentos baratos e de qualidade no mercado interno, mesmo num cenário de produção exportadora forte.
“A fome não tem justificativa, a não ser o relaxamento político dos governantes atuais em entender que isso é prioridade, está inscrito na Constituição brasileira: a alimentação é direito humano inalienável, as pessoas têm o direito de comer todo dia, com qualidade nutricional”, criticou. “E estamos vendo os índices de desnutrição aumentando nas estatísticas e também no dia a dia”.
Diferentemente de países da África e da Ásia, que precisam adquirir alimentos do exterior e sofrem dupla pressão – com a escassez interna e o aumento de preços no mercado internacional –, o Brasil é um exportador, explica Baccarin. Logo, não há razão para permitir o agravamento da insegurança alimentar e nutricional nos níveis atuais. Ele ressalta que o país exporta carne e derivados, soja, suco de laranja, milho, entre outros produtos, que garantem um saldo positivo na balança comercial de alimentos.
Mas, embora a nação arrecade muito com essas exportações e com o aumento dos preços internacionais, o especialista do Fome Zero observa que a população continua enfrentando o encarecimento desses itens nos supermercados. Desde 2020 até agosto, quando entraram em cena as medidas eleitoreiras – e provisórias – do atual governo para conter os aumentos, os preços dos alimentos vinham subindo acima da taxa oficial de inflação. O que parece uma contradição, mas que se explica pelas políticas que priorizam a rentabilidade do setor agrário em detrimento da demanda dos consumidores internos.
“Mesmo produzindo muito, a população brasileira não se beneficia com isso”, afirma Baccarin. “Quem se beneficia são grandes empresas, fazendeiros, que ganham cada vez mais. Mas não conseguimos que a população tenha acesso à alimentação. O Brasil é o principal fornecedor de proteína animal para o mundo, mas os brasileiros não conseguem comprar carne. Para o agronegócio está tudo bem, estão ganhando dinheiro, podendo desmatar a torto e a direito, sem controle ambiental. Mas para a população, não.”
Essa distorção, critica Baccarin, é uma escolha política, porque a história recente mostra que é perfeitamente possível conciliar o ganho do setor agrícola com abastecimento acessível e de qualidade para os brasileiros. “Precisamos fazer pontes e intervenções políticas para que esse sucesso do agronegócio esteja na mesa do brasileiro, que ele tenha alimentação acessível e adequada.”
O agrônomo lembra que já foi possível acabar com a desnutrição no país em prazo relativamente curto: entre 2003 e 2014, o Brasil saiu do mapa da fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação), para onde infelizmente retornou na gestão atual. “Fizemos políticas públicas que estão sendo copiadas no mundo inteiro. O básico é que a gente tenha uma suplementação de renda permanente. Começaria por aí: pelo acesso, pelo poder de compra das pessoas.”
Atualmente, a perda dos direitos trabalhistas, o desemprego e o encarecimento dos alimentos se juntam no cenário perverso. Nas gestões petistas, Baccarin observa que o governo suplementou a renda dos mais pobres, de maneira continuada, nacional, federativa, consultando governos estaduais e prefeitos, que indicavam quem precisava receber o benefício. “O CadÚnico [Cadastro Único para Programas Sociais] deu muito certo”, ressalta. “Infelizmente, verificamos hoje que está sendo usado para fins eleitoreiros. A política pública tem que ser do Estado.” Além do Bolsa Família, Baccarin destaca, no combate à fome, o papel da política de valorização do Salário Mínimo: um aumento de 74% no período da gestão petista.
Exportação x abastecimento interno
Em outra frente, a garantia de alimento acessível e de qualidade tem a ver com políticas para evitar efeitos especulativos e inflacionários provocados pela priorização da produção destinada à exportação. Segundo Baccarin, o país desenvolveu uma agricultura tropical muito competitiva, capaz de conciliar a produção com cuidados ambientais e de produzir comida barata. Logo, o Brasil pode se tornar um grande exportador, mas sem permitir que o mercado externo canibalize o abastecimento interno.
Ele adverte para o fato de que, quando o país se torna um grande exportador, a sua agricultura se organiza em torno dos produtos que têm grande presença no mercado internacional. No Brasil, no caso dos alimentos, Baccarin cita as carnes de boi, frango e suínos; soja, grão e farelo, e o milho (que alimenta os animais), além de outras exportações, como suco de laranja. Apesar da dependência das importações de trigo, a balança nacional é positiva, resultado de desenvolvimento e aumento da produtividade – que responde por 90% do crescimento dos volumes produzidos.
“Os produtos de exportação ficam muito atrativos para produção e para os investimentos”, alerta. “Quando tivemos aumento de preços nos alimentos agrícolas, cresceram os investimentos e os gastos na produção desses itens para o mercado internacional, com redução da produção de arroz, feijão, frutas, hortaliças, que não têm participação relevante no exterior.” Para evitar esse desequilíbrio, Baccarin acredita em políticas públicas incentivando a agricultura familiar, que assegurariam o aumento da produção para o mercado interno.
Outro efeito perverso na oferta nacional de alimentos é a vinculação entre os preços, uma vez que o frigorífico vai vender no país pelo preço mais alto, cobrado no exterior, em dólar. Na pandemia, por exemplo, o óleo de soja chegou a dobrar de preço. Nesse caso, o ex-secretário do Fome Zero sugere dois instrumentos básicos de controle – o câmbio, uma intervenção direta para neutralizar os especuladores, e o imposto de importação, ainda que por curto prazo, para desestimular a concentração de investimentos nos itens exportáveis.
“Temos que ter uma política efetiva para os preços de exportação do Brasil e de promoção dos pequenos agricultores, propiciando a eles acesso à tecnologia, e impondo controles à emissão de gases de efeito estufa (GEE)”, afirma. “O Betinho dizia: quem tem fome tem pressa. É para ontem. Temos que intervir na realidade, ainda mais na brasileira, que tem tanta produção de alimentos. Dá para acabar com a fome num período muito curto.”
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o agrônomo e professor da Unesp José Baccarin, entrevistado pela jornalista Beth Costa e pelo advogado e cientista político Jorge Folena, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano