Em um cenário de incertezas e transformações profundas no mundo do trabalho, a subsistência financeira dos sindicatos emerge como um debate crucial para o futuro da representação dos trabalhadores no Brasil.
A discussão, reacesa pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a contribuição assistencial e pela subsequente busca por uma nova legislação no Congresso Nacional, coloca em xeque não apenas a capacidade de atuação dessas entidades, mas também a defesa de uma pauta de reivindicações que se estende da valorização salarial à adaptação às novas tecnologias e à crise climática. A questão central, como aponta o sociólogo e professor Clemente Ganz Lúcio, coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, é garantir a autonomia e a operacionalidade dos sindicatos para que possam enfrentar os desafios de um novo momento da classe trabalhadora, profundamente impactada pela reforma trabalhista de 2017.
A entrevista com Ganz Lúcio, concedida ao programa Soberania em Debate no simbólico Dia do Trabalhador, lança luz sobre a complexa teia que envolve o financiamento sindical, a atualização da pauta dos trabalhadores e a árdua batalha por direitos em um Congresso Nacional frequentemente hostil às demandas laborais. “Qualquer organização precisa de financiamento. O sindicato não é diferente”, ressalta o especialista, sublinhando que a reforma implementada sob o governo Temer não apenas extinguiu o imposto sindical compulsório, mas também impôs severos limites ao apoio financeiro dos trabalhadores às suas entidades representativas, criando uma dificuldade inédita de sustentação.
Pauta Atualizada para novos tempos
A “Pauta da Classe Trabalhadora”, um documento robusto que congrega as propostas das centrais sindicais, serve como um farol para as negociações e reivindicações junto ao poder público e ao setor empresarial. Elaborada inicialmente em 2022, com 66 itens entregues aos então candidatos Lula e Alckmin, a pauta tem sido um instrumento dinâmico, constantemente atualizado para refletir as prioridades emergentes. Segundo Ganz Lúcio, uma parcela significativa dessas demandas, entre 60% e 70%, já obteve algum tipo de encaminhamento por parte do atual governo, seja através do atendimento integral ou do envio de projetos ao Congresso. A política de valorização do salário mínimo, uma vitória emblemática, é um exemplo concreto desse avanço.
Para o horizonte de 2025 e até maio de 2026, as centrais sindicais elencaram 23 prioridades. Entre elas, destacam-se propostas de grande impacto, como a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais e o fim da escala 6×1, ambas dependentes de deliberação do Congresso Nacional. Essas reivindicações espelham a busca por melhores condições de trabalho e mais qualidade de vida, ecoando um anseio crescente da classe trabalhadora por um equilíbrio mais justo entre vida profissional e pessoal.
Negociação Coletiva e autonomia financeira

O projeto de lei não se limita ao financiamento, mas articula três dimensões: o fortalecimento da negociação, a autorregulação sindical e um financiamento coerente, que possa ser repartido com federações, confederações e centrais, sustentando a estrutura vertical de articulação regional, setorial e nacional. “É uma lei simples, mas importante, pois daria uma centralidade a fazer uma organização da negociação, um fortalecimento que a legislação em 2017 não fez, e daremos portanto uma segurança jurídica para os sindicatos de trabalhadores e das empresas de que aquela contratação coletiva vale”, conclui Ganz Lúcio, destacando a importância de reduzir a dependência da Justiça do Trabalho para a resolução de conflitos.
Práticas Antissindicais e a Blindagem dos Acordos
Um dos pilares da proposta de fortalecimento da negociação coletiva é o combate às práticas antissindicais, atitudes empresariais que visam minar a organização dos trabalhadores. Isso inclui desde a pressão em assembleias e a coação para não apoiar pautas ou greves, até a criação de obstáculos para o financiamento autônomo das entidades. “A legislação prevê que práticas antissindicais sejam penalizadas e que aquilo que for consignado em um acordo seja cumprido pelas partes, inclusive no que tange ao financiamento”, afirma Ganz Lúcio. Ele lembra que acordos e convenções coletivas são documentos jurídicos públicos, com validade de lei, e seu descumprimento pode levar a ações na Justiça do Trabalho com ganho de causa para o trabalhador.
A importância do sindicato, nesse contexto, transcende a mera negociação salarial. É a união organizada dos trabalhadores que garante não apenas pisos salariais dignos e reajustes, mas também uma vasta gama de direitos e benefícios, como melhores condições de transporte, assistência médica e jurídica. “Se você não tem um sindicato, a empresa teria a obrigação de pagar um salário mínimo. A partir daí, o que vai definir um piso salarial maior são os sindicatos”, exemplifica o sociólogo. Ele recorda a luta histórica das centrais sindicais pela política de valorização do salário mínimo, que resultou em um ganho real significativo para os trabalhadores ao longo dos anos. “Essa diferença entra no salário do trabalhador em função de um trabalho sindical de representação e conquista real de valorização do salário mínimo.”
Congresso Conservador e desinformação
O cenário político, no entanto, impõe obstáculos significativos. “O mundo do trabalho não tem sido muito bem visto no Congresso Nacional”, admite Ganz Lúcio. Ele descreve um ambiente polarizado, onde o debate é frequentemente desqualificado por narrativas simplistas e, por vezes, mentirosas, que tentam reduzir a complexidade das relações de trabalho a clichês como “todo trabalhador é empreendedor” ou “ninguém mais quer CLT”. As redes sociais, infelizmente, muitas vezes amplificam essa desinformação, dificultando um diálogo construtivo.
Diante desse quadro, a estratégia sindical se desdobra em duas frentes: a qualificação e conscientização do debate junto aos trabalhadores e o diálogo persistente com os parlamentares. “Não tem outro caminho que não seja fazer o trabalho de base, de diálogo parlamentar e de pressão parlamentar”, afirma o sociólogo. Ele cita como exemplo um projeto de lei para regulamentar o trabalho mediado por plataformas, que propunha um piso de remuneração para motoristas. Nas redes sociais, a proposta foi distorcida, apresentada como um teto salarial, gerando uma onda de desinformação que paralisou a tramitação.
“Existe um desafio da gente voltar a qualificar o debate público. A gente não consegue fazer um debate público virtuoso, de ter um processo deliberativo, se a gente não for capaz de tratar com a verdade”, lamenta Clemente.
Horizontes da Luta Sindical
A pauta da classe trabalhadora não se esgota nas questões imediatas de salário e condições de trabalho. Ela se projeta para o futuro, incorporando eixos estratégicos como o desenvolvimento produtivo com geração de emprego de qualidade, a promoção da justiça social e a urgente transição ecológica. “Esses itens apontam para a necessidade de se ter uma estratégia de desenvolvimento produtivo, portanto, inovação tecnológica, elemento de produtividade, com foco na geração de emprego de qualidade”, explica Ganz Lúcio.
A inovação tecnológica, com a inteligência artificial e a digitalização permeando todos os setores, e a emergência ambiental são vistas como transformações que exigem um protagonismo sindical. É preciso, segundo ele, pautar e negociar os impactos dessas mudanças sobre os empregos, as condições de trabalho e a jornada, sob o risco de precarização e intensificação laboral.
“São mudanças que vão afetar o mundo do trabalho de forma radical e os trabalhadores vão precisar de sindicatos fortes para defender seus direitos, sua visão de mundo e como eles imaginam que essas transformações vão impactar nas condições de vida, da proteção social e da proteção ambiental”, alerta.
Ao final, a mensagem de Clemente Ganz Lúcio é de resiliência e convocação à ação coletiva. Ele recorda que as conquistas históricas dos trabalhadores só foram possíveis através da organização sindical. “Eles podem ter um monte de defeito. Todos nós temos. Mas o que ele s mostram é que quando a gente se junta, somos capazes de vivenciar uma coisa nova que é a solidariedade, união, pauta, uma demanda, imaginar uma forma de luta e entender que temos uma longa caminhada pela frente”, conclui. “As mudanças são profundas e mais uma vez os trabalhadores precisam reconhecer a força da sua união e o nome dessa união é sindicato. Que a gente siga lutando pelos direitos que são parte da essência da classe trabalhadora.”
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra.
O programa também pode ser assistido pela TVT, Canal do Conde, e é transmitido pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.