Segundo Daniel Hirata, estamos “nos aproximando de um ponto de não retorno a partir do qual vai ficar difícil fazer a distinção de onde termina o Estado e onde começa o crime”
O relatório de inquérito da Polícia Federal sobre o caso da execução de Marielle Franco ajuda a explicar a importância do voto nas próximas eleições em todo o Brasil e, especialmente, no Rio de Janeiro. A cena apresentada é emblemática: temos um vereador flexibilizando regras para a regularização fundiária em favor de milícias, um miliciano, executor do crime, que seria pago em terrenos e o ex-chefe da polícia civil, Rivaldo Barbosa, envolvido no crime, também tinha relações com o mercado imobiliário.
O caso foi usado como exemplo pelo professor Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense/UFF, no Soberania em Debate do último dia 04 de julho. No programa “Segurança pública: entre o tráfico e as milícias”, o sociólogo alertou para o perigo de manter as coisas como estão e da importância do voto para dar início a uma mudança profunda e necessária.
“Parece fácil dizer isso, mas não há outro caminho. As pessoas precisam votar melhor. É claro que estamos falando de uma relação antiga, de um clientelismo político já bastante conhecido, mas neste momento, a relação do Estado com o crime vai muito além da ‘política da bica d’água’. Envolve a construção de bairros inteiros, a própria infraestrutura urbana, coisas que são absolutamente centrais na vida das pessoas”, destacou Hirata.
O setor imobiliário, uma das bases que sustentam as milícias, é só um dos muitos espaços onde o crime encontrou parceiros no Poder Público e nas próprias forças de segurança para explorar mercados irregulares. O combate, em muitos desses setores, acaba sendo comprometido, uma vez que os responsáveis por impedir o crime, na verdade, estão envolvidos. “
Precisamos urgentemente regular o mercado imobiliário urbano, mas aqueles que deveriam fazer isso, zelando pelo bem público, agem em favor de interesses privados e criminosos. Estamos nos aproximando de um ponto de não retorno, a partir do qual vai ficar difícil fazer a distinção de onde termina o Estado e onde começa o crime”, alertou o professor.
Caminho traçado
Enquanto as milícias prosperam, a estratégia de combate segue a mesma, representada pela absoluta ineficácia das operações policiais – atividade reativa, repressiva e altamente letal -, que não resolvem nada do ponto de vista da segurança pública, mas que funcionam como espetáculo midiático e transmitem a sensação de que “algo está sendo feito”. O que realmente deveria ser feito, no entanto, não acontece, apesar de exemplos práticos – e bem-sucedidos – do passado recente.
Hirata lembra que em apenas um período as atividades das milícias foram refreadas no Rio de Janeiro: “Durante a CPI das milícias, em 2008, tivemos mais de 200 pessoas citadas em relatórios, pessoas importantes que estabeleciam as mediações políticas que permitiam o crescimento destes grupos no Rio de Janeiro. Mas ela não teve continuidade. Não atacou as bases políticas e econômicas das milícias. Ali tivemos um esboço do que poderia ser uma orientação mais geral e efetiva do enfrentamento desses grupos, sem troca de tiros, matança etc. Quando falamos de atuar de forma estratégica sobre as bases desses grupos, é disso que estamos falando. Enquanto não fizermos isso, a coisa não vai melhorar”, aponta Daniel.
Pautas para soluções municipais
Para as eleições que elegerão prefeitos e vereadores este ano, Daniel destaca a importância de, principalmente em tempos de polarização e enfrentamento do fascismo, não permitir que o debate sobre a segurança pública em âmbito municipal gire em círculos sobre o único tema que tem dominado o debate: armar ou não a Guarda Municipal.
“O debate da segurança pública no município tem girado em torno de armar ou não a Polícia Municipal. É repetitivo e monótono porque é apenas retórico. Armar a guarda não vai resolver o problema. É inócuo. Nem vale a pena entrar neste debate, mas vamos ver muito disso nas campanhas. Será que conseguimos propor coisas diferentes e sair desse debate inútil?”, propõe o professor.
A regulação dos mercados urbanos, uma atribuição municipal, seria um bom começo, segundo Hirata. A sugestão do sociólogo é buscar caminhos para libertar a questão habitacional de políticos e policiais mal-intencionados. O mesmo pode ser pensado em relação ao transporte e ao lixo, dois setores de responsabilidade municipal e que também são explorados pelo crime organizado.
“Isso teria um impacto sentido diretamente pela população. Seria imediato, porque é da vida cotidiana. E quando o cotidiano muda para melhor, impacta na percepção de segurança. Não é algo abstrato. É tangível. Mas, para isso, não basta ter a presença do estado e município nesses mercados. Eles precisam exercer efetivamente as suas capacidades e prerrogativas regulatórias. Seria importante que candidatos propusessem ações concretas sobre a regulamentação desses setores”, apontou.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.
Rodrigo Mariano/Senge RJ | Foto: Governo do Estado do Rio/Carlos Magno