Após 40 anos de guerra às drogas, não há solução a curto prazo para controlar a criminalidade no Rio de Janeiro. Caminhos a médio e curto prazo existem e são amplamente conhecidos: investir em inteligência para rastrear e eliminar a fonte do dinheiro que sustenta o crime, aceitar que a guerra às drogas não é eficiente e regular o que não é possível proibir e garantir pleno direito de defesa a todos os cidadãos, bem como o cumprimento das penas dos julgados culpados.
Nada disso é novidade. Poder Público, academias e comandos policiais estão cientes há décadas. Mas, absolutamente nada muda. Por um lado, o Estado não tem mais o controle das forças de segurança. Por outro, a legislação que criminaliza algumas drogas, falha e ultrapassada, esbarra no conservadorismo e se mantém vigente. A população, no fogo cruzado, segue refém. “Tudo isso é dito por especialistas há décadas e não adianta. Nós somos chamados para dar aula, mas isso não serve para nada. Acham que sabem tudo. Então, tudo bem. Fica tudo como está”, lamentou Michel Misse, professor de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista ao Soberania em Debate do dia 1 de novembro.
Em detalhes, Misse delineou o grave quadro de paralisia e ausência de respostas que alimenta o terror crônico com o qual o Poder Público e a população do estado do Rio de Janeiro são obrigados a conviver. Desde o Jogo do Bicho, que nasceu com a República, passando pelo enorme poder das facções de narcotraficantes, até as máfias estabelecidas pelas milícias, o Rio acompanha a evolução histórica de organizações criminosas que, até agora, não encontraram real resistência para suas atividades. A escalada da violência é inevitável.
Guerra às drogas
Para algo ser comercializado, basta haver mercado. Se o produto em questão é legal ou não, faz pouca ou nenhuma diferença: se houver público consumidor, haverá mercado. Nos Estados Unidos da América, onde a guerra às drogas teve início, a falência do modelo já ficou evidente e houve recuo. O Brasil segue enxugando gelo na manutenção da criminalização da população jovem negra.
“Se o Estado criminaliza uma mercadoria para a qual existe grande demanda, ou ele tem a capacidade de impor essa criminalização, ou vai ter que lidar com a legitimidade da demanda dessas mercadorias. As pessoas vão considerar legítimo que elas querem comprar, ainda que a mercadoria seja ilegal. E a cocaína, a maconha, heroína, ópio, drogas sintéticas têm um grande mercado”, aponta o professor.
É na esteira desta grande demanda que agentes públicos – às vezes, eles mesmos consumidores dessas drogas – diante da legitimidade da demanda de mercado, passam a relativizar a criminalização ou tirar vantagem dela. “Essa não é uma questão moral. É política e econômica. A moralidade em questão depende da capacidade do Estado em atendê-la. Se a demanda a superar, o Estado estará com problemas”, explica Misse.
Enquanto a guerra às drogas segue como linha principal das polícias, operações em favelas e periferias fazem vítimas inocentes, colocando a população contra a polícia. As armas apreendidas são substituídas rapidamente. Presos e mortos em operações, também. “Os trabalhadores do mercado ilegal têm melhores vantagens que aqueles do mercado formal, inclusive em salários. Sem compreender isso, não saímos desse ciclo. E a polícia não compreende”, aponta o professor.
Milícias e a simbiose entre Estado e crime
Misse chama de “mercadorias políticas” as trocas ilegais negociadas cotidianamente por agentes públicos com o crime organizado ou com a população. Ela nasce da venda de proteção. Tanto o jogo do bicho, com a “caixinha” e o tráfico, com o “arrego”, mantém uma relação de convivência em uma simbiose que responde a uma necessidade: “Todo mercado ilegal exige um mercado de proteção. Ela pode ser mafiosa, como a das milícias, ou operada por agentes públicos, via propinas. Quando um policial prende um criminoso e cobra para não encaminhá-lo à delegacia ou quando para um motorista sem documentos negocia a sua liberação, as trocas são de mercadorias políticas”, explica o professor. Misse cita o caos instalado na cidade do Rio de Janeiro em 2003, quando ônibus foram queimados e a prefeitura foi metralhada em reação ao aumento do “arrego”.
De tão naturalizada a troca de mercadorias políticas, alguns policiais preferiram, ao invés de cobrar propinas, correndo o risco de serem presos ou expulsos da corporação, organizar seus próprios negócios criminosos, fazendo nascer as milícias. O termo, segundo Michel, já não se aplica mais. “Elas começaram como grupos de autodefesa em 2000. Ofereciam segurança privada, de forma compulsória, com o apoio de associações de moradores. Esses grupos tinham objetivos muito mais lucrativos que os grupos de autodefesa da Colômbia e México, que deram origem aos paramilitares. Milícias estão relacionadas sempre a movimentos rebeldes, de resistência a invasores, guerra civil. Com o tempo, as “milícias” foram ganhando uma outra dimensão, bem próxima do tráfico. Além de continuar com a extorsão, passaram a explorar mercadorias ilícitas, como distribuição de gás, transporte clandestino, até mesmo empreendimentos imobiliários. Deixaram de ser milícias para ganhar uma dimensão de organização altamente lucrativa, baseada na extorsão e oferta de mercadorias, até mesmo articuladas com o tráfico para oferecer drogas”, apontou.
Muitas vezes administradas por agentes públicos, policiais ou ex-policiais, as “milícias” representam perfeitamente a relação entre Poder Público e crime organizado. O monopólio sobre a violência, que deveria ser exclusividade do Estado, é quebrado. “A partir dessa simbiose, já não se sabe onde um termina e o outro começa”, explica o professor.
Estado de joelhos
A polícia, no Rio de Janeiro, é um enclave, tão autônomo quanto possível. As corporações resistem ao controle cidadão, exercido por representantes eleitos e gestores públicos, sem força política suficiente para mudar os paradigmas reforçados ao longo de décadas, deixam as coisas como estão, dando ainda mais força à autonomia. “Isso lembra um outro enclave no Brasil, as Forças Armadas, que também não estão inteiramente ajustadas ao controle republicano. O Estado é quem detém o monopólio legítimo e legal do uso da força. Se essa prerrogativa não está controlada pela soberania popular através de seus eleitos, se há uma autonomia dos funcionários públicos encarregados de andar armados e suar as armas, seja para tratar da segurança pública, seja para tratar da defesa nacional, você tem um problema político que coloca em risco a estabilidade política e democrática do Estado. Vimos isso no dia 8 de janeiro”, aponta Misse.
Segundo o professor, o controle das polícias é falho, abriga corrupção ou tem dificuldade de se impor e obter respeito desses funcionários. Sem o controle do Estado, agentes públicos assumem para si a liberdade de agir acima da lei. Governos, por sua vez, incapazes de fazer valer a lei, também se eximem de responsabilidade. “No caso de Nova Brasília, por exemplo, o Estado Brasileiro foi condenado pela comissão de Direitos Humanos da OEA. Foram determinadas uma série de medidas para o estado do Rio de Janeiro que simplesmente não foram cumpridas. O ministro Edson Fachin determinou, durante a pandemia, que cessassem as operações em comunidades. Não foi cumprido. Como resolver? Está em aberto. Não há resposta para isso. Em qualquer outro lugar você prenderia o governador se não cumprisse uma determinação judicial. Aqui há um certo acordo, compreensão, entendimento, tolerância. Muita tolerância”, finaliza Misse.
Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil