Ronaldo Bicalho*
A energia é fundamental para o desenvolvimento econômico e para o bem-estar social. A preocupação com a segurança do abastecimento energético faz parte da agenda estratégica de qualquer país. Garantir o acesso físico e econômico à energia necessária às atividades econômicas e ao conforto dos cidadãos faz parte do rol de obrigações intransferíveis dos Estados nacionais. Independentemente da natureza privada ou pública das empresas presentes no setor, o Estado é o responsável final por essa garantia, fazendo com que a política energética tenha um caráter crucial e esteja presente no coração do conjunto de políticas públicas relacionadas ao exercício da autonomia, da independência e da soberania de um país.
Dentre os desafios de política energética hoje no mundo, a garantia da segurança do abastecimento de energia elétrica é um dos maiores; se não for o maior. Obrigado a abandonar os combustíveis fósseis, em função da necessidade de mitigar os efeitos da mudança climática a partir da redução das emissões de CO2 resultantes da queima desses combustíveis, o setor elétrico no mundo se encontra em um dos momentos mais difíceis da sua história. Momento no qual uma forte restrição da oferta ocorre ao mesmo tempo em que todos os cenários disponíveis apontam para uma forte eletrificação da matriz energética mundial; fruto da crescente digitalização, eletrificação dos transportes e incorporação de parcelas significativas da população dos países emergentes – principalmente na Ásia – ao mercado elétrico.
No Brasil, o esgotamento do modelo tradicional de operação e expansão do setor, baseado na construção e gestão centralizada dos reservatórios, simplesmente travou a evolução do setor elétrico do país; resultado da inadequação crescente das políticas públicas implantadas pelos sucessivos governos desde os anos 1990 à nova realidade objetiva do setor, que foi se configurando ao longo dos últimos vinte anos.
Esse bloqueio atingiu o seu auge nos últimos anos, quando os mecanismos de gestão do risco hidrológico – essenciais para o funcionamento de um setor no qual a hidrologia (chover ou não chover) joga um papel chave – simplesmente caducaram e explodiram. Por um lado, em uma avalanche de ações judiciais em torno de quem fica com os prejuízos advindos de hidrologias desfavoráveis, e, por outro, em um constrangedor e contínuo aumento de tarifas para os consumidores.
Para manter o modelo funcionando, as autoridades setoriais têm adotado como solução para o imbróglio empurrar os prejuízos para os elos mais fracos da cadeia alimentar elétrica: as estatais e os consumidores. Segundo estimativas, com R$ 100 bilhões de prejuízos voando em busca de um pouso inseguro, a manutenção dessa solução é o atestado de óbito da política energética brasileira para o setor elétrico. Uma política que tem como resultado empresas quebradas, por um lado, e explosão tarifária, por outro, não pode almejar continuidade, mas sim a sua substituição imediata.
Para isso alguns princípios estruturantes da nova política devem ser estabelecidos e respeitados.
O primeiro deles é que o Brasil tem um setor elétrico singular. Baseado em hidroeletricidade, reunindo um conjunto integrado de grandes reservatórios espalhados pelos quatro cantos do país, o nosso sistema elétrico aproveita ao máximo escala e diversidade climática. Dessa forma, não só opera como uma única e imensa caixa d’água, mas como uma caixa d’água na qual a entrada de água (chuva) se dá em vários locais e em diferentes momentos do tempo. Essa integralidade é que permite a exploração de economias de escala, escopo e diversidade em níveis muito acima daqueles observados em outros sistemas elétricos ao redor do mundo. Em outras palavras, o sistema elétrico brasileiro foi construído para ser operado como um sistema único e integrado. Esse fato deve ser respeitado pela política energética estabelecida para o setor.
As tentativas de incorporar uma lógica concorrencial fragmentária ao setor simplesmente desestruturaram os mecanismos básicos de funcionamento do setor e não foram capazes de gerar novos mecanismos de coordenação satisfatórios. O mimetismo falsamente criativo de políticas públicas desenhadas para contextos elétricos distintos estão na raiz do atual desastre setorial. Desse modo, a singularidade do setor elétrico exige que sejamos capazes de encontrar soluções distintas. Originalidade que, a propósito, já fomos capazes de exercitar no passado.
O segundo princípio a ser levado em conta na elaboração de uma nova política para o setor elétrico brasileiro é que a nossa transição elétrica se encontra no interior de um processo mais amplo, que é a transição do setor elétrico mundial. Aqui se trata de reconhecer que nós detemos ativos que são cruciais na construção do novo setor elétrico baseado em energias renováveis intermitentes: uma enorme capacidade de estocagem de energia representada pelos nossos reservatórios; uma grande flexibilidade de geração representada pelas nossas hidrelétricas; e uma admirável capacidade de integração de espaços com diversidade climática representada pelo nosso amplo e extenso sistema de transmissão.
Dessa forma, devemos aproveitar ao máximo o fato de sermos um dos países mais preparados para lidar com a intermitência das fontes renováveis. No entanto, é preciso fazer isso respeitando, mais uma vez, a nossa singularidade. Isto implica em configurar uma transição que não seja simplesmente, mais uma vez, um mimetismo de experiências descontextualizadas de transição. Dados os nossos atributos, a nossa transição terá características próprias, tanto em termos de escala/centralização, quanto de coordenação. O que implica operar em níveis de concentração e coordenação mais elevados do que aqueles observados em outros sistemas.
Nesse contexto, para nós, reservatórios, planta de geração hidrelétrica e linhas de transmissão são ativos estratégicos para a transição. Detê-los acarreta gerenciar a transição buscando objetivos de natureza estratégica para o país. Considerando que hoje, o Estado brasileiro, via a Eletrobras, detém praticamente a metade desses ativos, mantê-los nessa condição é um objetivo fundamental de qualquer política energética que almeje garantir a segurança do suprimento elétrico nas próximas décadas.
Manter esses ativos na mão da Eletrobras também quer dizer manter parte significativa da renda hidráulica sob o controle do Estado, de tal forma a manejar esses recursos para reduzir os custos da transição para a sociedade e a economia com um todo; e não permitindo a simples apropriação individual desses excedentes por agentes privados.
Aproveitar a grande diversidade da matriz de recursos energéticos seria o terceiro princípio estruturante para a política elétrica. A diversidade da dotação de recursos naturais do Brasil permite ao país jogar com uma gama de recursos dificilmente encontrada em outros sistemas elétricos. Da energia nuclear à energia solar, passando por biocombustíveis, gás natural, eólica e hidráulica, a matriz elétrica brasileira permite combinações que podem viabilizar elevadas participações das novas energias renováveis.
Singularidade, contemporaneidade e diversidade devem ser as grandes apostas de uma nova política energética para o setor elétrico brasileiro. Isto passa pelo reconhecimento de que a especificidade do nosso sistema elétrico não é uma jabuticaba, mas uma poderosa alavanca para a atualidade. Mais do que buscar a desqualificação do nosso sistema elétrico a partir de uma visão tosca da modernidade, tentando adaptá-lo a ela a marretadas, deve-se identificar os elementos que estão presentes no nosso sistema e que contribuem para a construção de um novo sistema elétrico extremamente contemporâneo.
Para realizar um movimento de tal monta e complexidade é preciso mais coordenação e mais Estado. Enveredar pelo falso caminho da defesa simplória de mais mercado e menos Estado no setor elétrico é simplesmente jogar uma pá de cal em qualquer possibilidade de usar o setor como uma poderosa alavanca de desenvolvimento econômico e bem-estar para a sociedade brasileira.
Em síntese, a energia no Brasil sempre foi uma solução e não um problema. Dessa vez não é diferente. Temos os recursos naturais, a infraestrutura, a capacidade técnica e gerencial. Só depende de nós fazermos aquilo que já demonstramos no passado sermos capazes de fazer. No setor de energia apostar em nós mesmos sempre foi um bom negócio e uma boa solução.
(*) Ronaldo Bicalho é pesquisador do Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor do Instituto Ilumina.