Carlos Fico*
Existe a possibilidade de ruptura institucional após a eleição presidencial deste ano porque o impeachmentde Dilma Rousseff inaugurou fase de suspensão, de quase anomia, que ainda não superamos.
Essa fase frequentemente ocorre após eventos traumáticos como as guerras, os julgamentos dos chefes de Estado ou suas mortes inesperadas (por atentados, por exemplo), eventos que costumam ser contemporâneos ao tumultus, “estado de desordem ou agitação”, e inaugurar períodos de exceção. Não é o caso de discutir, em termos teóricos, esse velho problema histórico, mas o julgamento do “príncipe”, do chefe de Estado, sua morte simbólica, tende a inaugurar esse tipo de fase, salvo se houver fenômeno agregador da sociedade – como foi, por exemplo, o Plano Real, posterior à “morte” (simbólica) de Collor (com o impeachment que não houve, porque ele renunciou). Não tivemos algo parecido após a morte simbólica de Dilma Rousseff – não há nada de agregador em Temer.
Desde o impeachment de Dilma, várias expectativas de parte da sociedade (da classe média em geral, amplamente fomentadas pela mídia conservadora e apreendidas também difusamente pelas camadas mais pobres) foram frustradas, todas de natureza ético-moral, a saber, o combate à corrupção e a superação dos “problemas” (imprecisamente definidos, mas percebidos, como “problemas econômicos”) – que são lidos pelos setores mencionados como rupturas da “economia moral” (desemprego, alguma carestia), não como problemas macroeconômicos. Expectativas, portanto, extremamente fluidas, esgarçadas sob o manto punitivo da “crise moral” – de que falava Rui Barbosa – que desonra apenas o outro, todo aquele que não pareça “cidadão de bem”, conforme o olhar do julgador, que sempre se entende imaculado.
O impeachment impediu que o eleitorado avaliasse a capacidade ou incapacidade de o segundo governo Rousseff superar o “problema”, não obstante tenha ficado patente a contradição entre as promessas eleitorais e o efetivo governo (fenômeno político, de resto, comum no Brasil). Assim, boa parte do imaginário social consolidou a imagem de Dilma Rousseff como injustiçada, até porque nenhuma acusação mais grave lhe foi feita. A imagem de “mulher honesta” se afirmou – algo muito mais forte do que “pedaladas fiscais”. De fato, em muitos setores, construiu-se em torno da ex-presidente aura de perceptível simpatia que oculta os flagrantes erros de seus governos.
Essa percepção de “injustiça” (que se iniciou no dia mesmo do impeachment, com a não suspensão dos direitos políticos sugerida pelo próprio presidente do Senado) e a dramaticidade do ato em si foram os principais detonadores do mencionado quadro de quase anomia. Em conjunto com outros fatores, a percepção de injustiça (em vários graus) explica a atual série de arrependimentos de diversos atores em relação ao impeachment: Tasso Jereissati, ex-presidente nacional do PSDB, disse-o explicitamente. Vários outros personagens, políticos e jornalistas por exemplo, têm sugerido esse arrependimento, seja por meio da pergunta retórica “onde foi que erramos?” (enunciada por suposição de que posições extremistas estariam por ocupar a Presidência da República – o que não é verdade no que diz respeito ao PT – ou porque haveria risco à democracia), seja por meio da percepção pragmática de que, sem o impeachment de Dilma, muito provavelmente a posição do PSDB seria eleitoralmente melhor e a do PT, nem tão destacada.
Além do fato detonador desse quadro de quase anomia (o impeachment), tivemos a transformação de Lula em “troféu” da Operação Lava-Jato. Movimentos inusuais de aceleração do processo judicial não passaram despercebidos nem mesmo ao homem comum, foram sublinhados pela campanha de denúncias promovida pelo PT (que contou com apoio inesperado de respeitadas instâncias e personalidades estrangeiras) e agravou-se muitíssimo com a percepção de tendenciosidade (prevalece a ideia, não inteiramente correta, de que “ninguém” do “outro lado” foi preso). Ademais, para o senso comum, os crimes de Lula seriam pequenos se comparados com a corrupção dos tradicionais “homens ricos”. As evidências dos erros cometidos pelo PT e pelo próprio Lula diluíram-se ante o processo de vitimização do ex-presidente levado a cabo pela própria Operação Lava Jato.
A prisão de Lula, nessas condições, correspondeu à segunda morte simbólica de chefe de Estado em pouco mais de um ano e meio: o julgamento, a condenação e a prisão do líder, do príncipe. A guerra e o julgamento de chefes de Estado são os dois mais espetaculares eventos da História Política. Tivemos dois julgamentos: como não poderíamos ter tumultus e período de exceção, de quase anomia?
Assim, o “arrependimento” também se ancora na percepção de que a Operação Lava Jato não operou a contento, ou foi longe demais, ou excedeu-se em erros, ou incorreu em moralismo – não importa a razão, a Operação Lava Jato, com a transformação de Lula em troféu, transformou-o em vítima e, ao PT, em alvo privilegiado, revertendo a trajetória negativa que ambos experimentavam, possibilitando-lhes um renascimento.
Os dois principais personagens detonadores do atual quadro de quase anomia (Aécio Neves e Michel Temer) frustraram muitíssimo não só os que os apoiavam claramente, mas também aqueles que os viam com expectativas esperançosas ou pragmáticas. Aécio Neves viu ruir sua imagem de bom moço ante acusações inelutáveis de grossa corrupção. Michel Temer não conseguiu sanear a economia – não obstante alguns analistas, que justificaram e/ou apoiaram o impeachment, digam agora, sem bases empíricas, que sem ele (ou com Dilma) seria pior. Mas isso não conta para o eleitorado: conta a frustração. Temer (também acusado de corrupção) e Aécio são “pretendentes às cadeias” – como diria Afonso Arinos de Melo Franco.
Quando Aécio Neves, traindo o passado pessedista do avô Tancredo, contestou o resultado da eleição de Dilma (como sempre fez a antiga UDN), associou-se à tradição golpista civil e brasileira de longa tradição. Tolamente, pensou ser possível “cavalgar o tigre” – para citar a expressão sempre usada por Roberto Campos. O PT lançou consigna segundo a qual o impeachment seria golpe. Como sempre fez a velha UDN, os conservadores da atualidade responderam com a Constituição, com a lei e com os tribunais. Os dois lados deixaram de perceber a gravidade da situação: impeachment, em bases tão frágeis (espécie de recall presidencial simulando parlamentarismo inexistente), abriria período de “vale-tudo”, de exceção, de quase anomia.
De fato, tal período se iniciou logo após o impeachment. Além da imagem negativa de Temer como vice-presidente que conspirou contra a presidente eleita, o presidente da República sucumbiu ante acusações inéditas de corrupção. O Poder Executivo usou várias vezes o mecanismo legal, mas excepcional, de “garantia da lei e da ordem” – que, no caso do Rio de Janeiro, foi usado sob clara arguição de inconstitucionalidade. No mesmo período, o Poder Judiciário brasileiro tomou posições controvertidas (tanto quanto a Procuradoria Geral da República) e erráticas, excedeu-se em intervenções na política e abusou de decisões monocráticas. Os militares – que no Brasil ainda se entendem como “Poder Moderador”, haja vista o grotesco artigo 142 da Constituição – passaram a fazer pronunciamentos, “alertando” a população sobre isso ou aquilo – típica atitude intervencionista (no sentido de tutelar a sociedade). Esse melancólico renascimento dos militares como atores políticos capazes de tutelar a sociedade é o mais grave prejuízo deixado pelo impeachment de Dilma.
Diante do fracasso de Michel Temer, da exposição da atividade obscura de Aécio Neves (comprometendo o PSDB), da ausência de qualquer mea-culpa (da parte dos que fomentaram todo o imbróglio) ou da inexistência de tentativa de negociação entre as partes, restou apenas a percepção difusa do fracasso, da frustração. Agora, pouco valem as manifestações tardias de FHC (sua carta aberta de 20 de setembro) ou do Estadão (o editorial do dia 25). Aliás, no momento em que escrevo, os três principais jornais brasileiros (Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo) não contam com posição editorial clara, dando apenas sinais de estupefação. O mesmo pode ser dito da maior rede de televisão, cujo principal telejornal perdeu-se em entrevistas persecutórias dos candidatos.
Nesse contexto, muitos eleitores de centro se viram perdidos, frustrados ante o apoio do PSDB ao fracassado (e exposto como corrupto) governo Temer; ante as acusações contra Aécio; e diante do fato de que, supostamente, “todos são iguais”. Muitos se envergonharam do voto em Aécio: vergonha e frustração. A reação é naturalmente violenta.
Portanto, a opção desse eleitorado por candidato militarista que conta com apoiadores golpistas não chega a surpreender: se insere no contexto histórico de desarranjo institucional inaugurado pelo impeachment.
Cabe aqui reiterar a ausência de mea-culpa: aqueles que, em posições de relevo, genuinamente apoiaram o impeachment – convictos sobre as “pedaladas fiscais” como crime de responsabilidade – talvez possam refletir sobre o alcance das palavras dos “formadores de opinião”, hoje mais relevantes do que os discursos parlamentares (como diria Villas-Bôas Corrêa, lembrando a publicação nos jornais, na íntegra, daquilo que se enunciava na tribuna do Palácio Tiradentes), embora não decisivas como as redes sociais.
Tudo isso para dizer que, na hipótese da eleição do candidato militarista apoiado por golpistas, é possível que tenhamos crise institucional porque tal personagem dificilmente conseguirá conviver com padrões aceitáveis de constitucionalidade democrática – para dizer o mínimo. Caso tenhamos a vitória do candidato petista, a eleição poderá ser contestada pelo candidato militarista (como ele vem anunciando). Resta saber se haverá “udenistas” que o apoiem e/ou “marchas da família, com deus, pela liberdade” que clamem pelo golpe. O fato de haver oficiais-generais e ministros do STF garantindo que o eleito tomará posse é apenas mais um sinal preocupante – pois nada precisaria ser dito se não houvesse risco.
* Carlos Fico é historiador formado pela UFRJ, professor titular de História do Brasil na mesma universidade e pesquisador de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Com doutorado pela USP, é especialista em História do Brasil República e Teoria da História, com ênfase em temas como ditadura civil-militar (Brasil e Argentina), historiografia brasileira, memória, violência. Em 2008 recebeu o Prêmio Sergio Buarque de Holanda de Ensaio Social da Biblioteca Nacional. Foi o coordenador da Área de História junto à CAPES entre 2011 e 2018, presidindo as avaliações dos programas de pós-graduação em História. Em suas pesquisas atuais, aborda os aparatos repressivos durante a ditadura civil-militar, perpassando temas como a censura, informação e "segurança". Desenvolve também estudos comparados com outros países latino-americanos, como a Argentina, analisando a influência estadunidense nas ditaduras no Cone Sul. Recentemente vem articulando essas pesquisas à discussão acerca da ideia de "Utopia Autoritária".