Restabelecer a Petrobras no posto de operadora única dos campos do pré-sal, resgatar seus ativos que foram desmembrados ou vendidos desde o golpe de Estado de 2016, e retomar a política de conteúdo local associada a um programa de desenvolvimento tecnológico e social. Assim o geólogo Guilherme Estrella, uma das vozes mais respeitadas da indústria do petróleo numa perspectiva soberana, resume o que espera da gestão Lula-Alckmin a partir de 2023 na estatal. Na sua avaliação, a Petrobras, hoje, não passa de um fundo de investimentos financeiros, atuando a favor de seus sócios privados, principalmente bancos.
Na semana passada, Estrella pediu na Justiça o bloqueio de R$ 32,1 bilhões em dividendos da Petrobras que seriam antecipados pelo governo. O geólogo, que chefiou a equipe responsável pela descoberta das reservas no pré-sal, teme que a distribuição comprometa a capacidade de investimentos e a competitividade da estatal. Para ele, a empresa deve retomar seu papel estratégico, deixando de ser instrumento das instituições financeiras.
“Esse é o grande desafio para esse nosso novo governo do presidente Lula, eleito democraticamente, que vai se iniciar formalmente em primeiro de janeiro”, diz. Uma tarefa complexa, mas que não é nova, observa Estrella. Em 2003, quando assumiu a diretoria da estatal, ele lembra que a primeira gestão petista encontrou a Petrobras também transformada numa espécie de fundo internacional para aplicação financeira no setor de óleo e gás. “Com os governos Lula e Dilma, recuperamos a Petrobras para ser uma empresa de petróleo, fundamentalmente estatal, comprometida com o Brasil, o desenvolvimento e a soberania nacional.”
Agora, mais uma vez, apesar da extensão do desmonte, o ex-diretor de Exploração e Produção garante que é perfeitamente viável restaurar a integridade do sistema, que cobria originalmente “do poço ao poste”. Ele cita o advogado Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política na USP, que tem defendido em artigos e entrevistas a reestatização, argumentando, entre outros pontos, que muitas privatizações foram feitas abaixo do preço de mercado dos ativos e na contramão do interesse nacional.
“Ele está cansado de dizer que temos todas as condições legais de reavermos tudo que foi vendido, pelo bem público nacional e da soberania brasileira”, afirma Estrella. “Temos o direito de reaver tudo, para que o Sistema Petrobras seja recomposto. Aí vamos pensar em investimento.”
No perfil atual, de grupo basicamente financeiro, Estrella ressalta que a Petrobras já distribuiu mais de US$ 25 bilhões, só este ano, enquanto está entre as que menos investiu. “A função desse fundo de investimento no setor de óleo é saquear o Brasil, as nossas riquezas, e remunerar seus investidores: cerca de 30% do governo e a grande maioria para o setor privado. Se eles fizeram isso em seis anos, por meio de um governo ilegítimo, e saqueiam o povo brasileiro enviando recursos para os acionistas privados, grande parte deles no estrangeiro, nós temos que exercer os nossos direitos.”
Atualmente, Estrella destaca que a Petrobras detém participação nos grandes campos petrolíferos do pré-sal, mas não mais como operadora única, e vendeu toda a atividade de produção e exploração dos campos terrestres, as termelétricas, as fábricas de fertilizantes, os gasodutos, parte das refinarias – de Mataripe (Rlam, privatizada para o grupo Mubadala Capital, dos Emirados Árabes Unidos, por metade do seu valor) e de Manaus (Reman, cuja venda já foi autorizada pelo Cade), e, mais recentemente, a planta do xisto (Six, vendida para o fundo Forbes & Manhattan Resources Inc.).
“Essa é a grande realidade perversa em relação à soberania nacional: a Petrobras de hoje não tem nada a ver com a Petróleo Brasileiro S.A. O que existe é um fundo de investimento financeiro no setor de petróleo; pior do que a ‘Petrobrax’ do FHC”, critica. A comparação se refere à tentativa frustrada, no ano 2000, de mudança no nome da estatal, alegadamente para facilitar a sua internacionalização, após o fim do monopólio do setor promovido pelo governo tucano.
Para o geólogo, dessa vez a medida fundamental para o trabalho de desconstrução da Petrobras foi tomada ainda no governo Temer, com o fim do marco regulatório do pré-sal e da exigência de a estatal atuar como operadora única na exploração dessas reservas. “A operação única é uma política de governo, a empresa não tinha direito de trazer para si a decisão de ser ou não operadora. O papel de operadora única é fundamental para todo o sistema integrado da Petróleo Brasileiro S.A., com a exploração e produção, a parte de transporte, gasodutos, refinarias, biocombustíveis, fertilizantes, termelétricas… Era esse sistema integrado que representava a grande ferramenta do Estado brasileiro para promover o desenvolvimento industrial brasileiro autônomo e sob decisão direta do acionista controlador, que era a União. Tudo isso foi destruído – esse é o grande desafio.”
Como resultado, já este ano, a Petrobras foi das que menos investiram, entre as grandes empresas de petróleo, diz Estrella. Para destruir essa estatal potente, as empresas de engenharia e a cadeia de valor que se desenvolveram em torno da sua expansão é que foi criada a Operação Lava Jato, no Ministério Público, observa o geólogo. O outro objetivo, ressalta, foi não permitir que o Lula se candidatasse a presidente em 2018.
“Precisamos recuperar tudo da Petrobras, para que ela seja o grande instrumento de geração de recursos para investimentos nas empresas brasileiras. Empresas de engenharia, do setor metalmecânico… está tudo aí para nós efetivamente começarmos a construção da soberania nacional, com as estatais e as empresas de capital brasileiro”, afirma Estrella. Nesse sentido, ele defende também a retomada da diferenciação legal entre empresas nacionais de capital brasileiro e de capital estrangeiro, distinção que foi abolida no governo FHC. ”
O geólogo acredita que uma das bases para desfazer medidas do atual governo está no artigo 1º da Constituição, ou seja, na soberania da vontade popular, que poderá ser exercida também por meio de plebiscitos e referendos. “É preciso que o Executivo promova uma campanha de conscientização do povo com relação às riquezas que estão sendo saqueadas, do direito que ele tem a elas, da importância da recuperação das empresas de engenharia.”
Para superar o que chama de “intervenção estrangeira” e de “governo colaboracionista” no país, a nova gestão Lula-Alckmin, diz Estrella, deve “aproveitar a força do Executivo eleito e convocar a população brasileira a cumprir a Constituição Federal.” Isso significa, por exemplo, baixar decretos anulando decretos, Medidas Provisórias cancelando legislação ordinária, recuperar a legislação trabalhista e previdenciária, mobilizar a população para pressionar a aprovação de matérias importantes no Congresso. Tomar a Petrobras e outras riquezas nacionais de volta para os brasileiros.
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o geólogo Guilherme Estrella, entrevistado pela jornalista Beth Costa e pelo advogado e cientista político Jorge Folena, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano