Nesta reta final, a poucos dias das eleições marcadas para 2 de outubro, o historiador Francisco Teixeira adverte: “É fundamental estar na campanha”. Segundo ele, a atuação das forças progressistas e populares será crucial para assegurar a vitória de Lula, e, num segundo momento, o próprio exercício democrático do poder, que deverá demandar políticas públicas e investimentos urgentes na área da cultura para combater a disseminação do pensamento fascista.
“Não há jogo jogado em política e no movimento social”, afirma. “É bem provável que Lula ganhe, mas, se ganhar, será por causa do empurrão que os movimentos sociais possam dar à campanha nos próximos dias.” E mesmo que o candidato da frente democrática seja eleito, o trabalho de combate à extrema direita, ao bolsonarismo, não para. “É preciso continuar junto, para que haja a diplomação, e posse, a possibilidade de governo”, diz Francisco. “Vai ser uma luta constante, não vai ser fácil.”
Nesse enfrentamento, o historiador destaca o papel estratégico que caberá ao Ministério da Cultura, na sua avaliação, talvez a pasta mais relevante da próxima gestão. “Precisamos oferecer respostas e nos voltar para a população que se sente tão abandonada”, diz, referindo-se aos grupos sociais que tiveram seu ressentimento e sua frustração social capturados por forças fascistizantes.
Francisco observa que muitos dos eleitores que ainda defendem o atual governo são trabalhadores e pessoas de baixa renda, explorada, que deverão ser levadas em conta pelo campo democrático. “São pessoas de quem foi retirada a voz e a possibilidade de viver dignamente. Não são inimigos e vamos ter que trabalhar com elas.”
Em comunidades pobres do Rio ou na periferia de cidades como Recife, por exemplo, o historiador ressalta que, nos domingos, muitas vezes, a única forma encontrada pelos jovens para socializar é a igreja, principalmente, as igrejas pentecostais. “Isso mostra uma ausência de projetos de cultura para os jovens. Temos que investir muito fortemente na cultura, e nos jovens, com música, teatro, dança. Vamos abrir espaços, multiplicar companhias populares de dança, música, trazer os jovens para dentro da cultura participativa.”
A ação na direção da cultura popular atua contra duas bases muito fortes do fascismo: o ressentimento e o individualismo. “O jovem fascista tem um sentimento grande de abandono, principalmente depois do império do neoliberalismo no Brasil. O outro sentimento é a ideia de que você vence e está no mundo por causa do seu esforço particular e a fé em Deus. Ele não consegue transformar sua existência numa questão social – não vê os sindicatos, os partidos políticos, as políticas públicas. Essa atomização do indivíduo na sociedade, também chamada anomia, é o outro elemento fundamental do fascismo.”
Francisco considera um acerto, nesse sentido, a segunda fase da campanha eleitoral da frente democrática, em que o discurso progressista ganhou contundência nas críticas ao atual governo, sem deixar de combater a intolerância. “A percepção do tamanho do risco se deu agora nos últimos dias”, afirmou. “Do debate eleitoral até o sete de setembro há um divisor de águas em relação ao caráter da campanha: primeiro, a clareza de que não é uma eleição normal, não se trata de eleger um presidente, mas de deter o avanço fascista sobre as instituições. Essa é a questão central.”
De acordo com o historiador, a campanha lulista, que, até então, lembrava as de 2002, com slogans de amor e paz, “percebeu agora que precisa atacar firmemente a figura de Bolsonaro e partir para um processo de desconstrução, expô-lo em toda a sua fragilidade, como uma figura criminosa em relação a direitos humanos, como no caso das populações indígenas e ribeirinhas, criminosa do ponto de vista civil, pela forma como administrou a pandemia, e criminoso político, pela forma como está subvertendo a República.”
A subversão fascista
O ressurgimento de movimentos ou partidos autoritários acontece em várias partes do mundo. “Na Europa, onde o fenômeno tem sido mais evidente”, diz Francisco, “buscou-se criar, em torno desses partidos fascistas – como o Alternative für Deutschland, na Alemanha, o Vox, na Espanha, ou o Front National, na França –, um cordão sanitário: não fazer aliança, não aceitar participação, não aceitar convites. Isolar fascistas, não considerá-los uma alternativa válida de poder.”
É o contrário do que acontece no Brasil, onde as várias correntes de direita, sem condição de se manter no regime de profunda desigualdade criado no país, optaram por se aliarem ao fascismo, explica o historiador. “Essa aliança é o caso inédito. Aqui os partidos do campo da direita endossaram o fascismo e deram ao fascismo a liderança do campo. E o núcleo duro dessa direita capturada pelo fascismo, que se deixa liderar pelo fascismo, é quase um terço do eleitorado brasilerio. A que se deve isso?”
Francisco Teixeira lembra que, desde os anos 30, quando foi criada a Ação Integralista Brasileira (AIB), o Brasil é o país que teve o maior partido em movimento de massa fascista fora da Europa – o integralismo de Plínio Salgado e Gustavo Barroso. E também ficaram rescaldos nas instituições brasileiras deixados pela longa transição da ditadura para a democracia, que começa em 1977 e só acaba em 1988, com a nova Constituição, a mais longa transição democrática do mundo. “Isso mostra que o lixo, o entulho autoritário, não foi superado de imediato. Diferentemente das ditaduras na Grécia, em Portugal, na Argentina, que caíram por colapso e deixaram surgir uma nova forma de regime político, no Brasil, ou na Espanha, há uma transição pactuada com as forças democráticas, na qual as forças da ditadura continuam mantendo uma larga hegemonia no processo.”
Do ponto de vista estrutural, Francisco Teixeira aponta, ainda, que as instituições nacionais da República – a política, a Justiça – foram preparadas historicamente para reprimir a subversão vinda sempre de forças populares ou à esquerda. “Mas estamos vendo que não só a subversão não vem de baixo, mas vem de cima para baixo, e da direita, contra a República. E não temos as ferramentas adequadas para lidar. Um exemplo é a paralisação na Procuradoria-Geral da República (PGR) ou na mão da Presidência do Senado das medidas em defesa da democracia. Blindou-se o presidente, porque se imaginava uma possibilidade de subversão vindo de baixo para cima. E o que se vê, agora, é uma subversão de cima para baixo, de dentro pra fora, da direita para a esquerda.”
Mesmo o artigo 142 da Constituição, que prevê o acioamento excepcional das Forças Armadas, guarda, no entendimento do historiador, uma contradição insolúvel na sua aplicação. Precisaria ser acionado pelo Poder Executivo, o que não dá conta de enfrentar a insubordinação à ordem quando proveniente do próprio governo.
Na avaliação de Francisco, o clima atual no Brasil assemelha-se ao da Itália, em 1922, quando Mussolini fez a Marcha sobre Roma, uma insurreição para tomar o poder, ou em 1933, na Alemanha que viu Hitler dar um golpe no parlamento, com o apoio dos conservadores. “Vemos o mesmo clima de agitação de agora: assassinatos políticos, espancamento de membros da oposição, tentativa de calar partidos e jornais de oposição. E, ao mesmo tempo, um discurso moralizante contra a corrupção do regime.”
Outro aspecto da atualidade, comum ao fascismo, é o que Francisco chama de “negação da alteridade”, ou seja, a não aceitação da diversidade, do outro, do diferente. “Esse pensamento trabalha com a ideia de homogeneidade: pátria homogênea, família homogênea, religião homogênea. Religão é só a minha, porque todas as outras são demoníacas. Esse é um traço marcante do fascismo.” Caráter desse governo, que, diz o historiador, “foi exposto com clareza no 7 de setembro.”
Francisco acredita que as manifestações do Dia da Independência, de natureza fascistizante, tiveram como objetivo produzir conteúdo para alimentar, num ponto futuro, a crise que o bolsonarismo pode tentar criar em torno do resultado eleitoral. “Foi feito um cenário, em Copacabana e na Avenida Paulista, para uma peça que ainda vai se desenrolar. Estamos no intervalo do segundo para o terceiro ato. Colocaram milhares de pessoas na rua para, no terceiro ato, fazerem o questionamento dos resultados eleitorais pelo autal presidente e contrapor à derrota cenas de apoio popular.”
> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Confira o Soberania em Debate com o historiador Francisco Teixeira, entrevistado pela jornalista Beth Costa e pelo advogado e cientista político Jorge Folena, ambos da coordenação do SOS Brasil Soberano