O principal efeito da disputa jurídica travada no último domingo (8) para manter preso o ex-presidente Lula a qualquer custo foi o descrédito e a desmoralização pública do Judiciário brasileiro, de acordo com as reportagens publicadas pela imprensa internacional sobre o caso. The New York Times, El País, Le Monde, entre outros, destacam a desordem legal e a instabilidade gerada pelas ordens e contra-ordens com relação ao cumprimento do alvará de soltura expedido pelo desembargador Rogério Favreto para Lula. A intervenção do juiz de primeira instância Sérgio Moro, de férias, para impedir o cumprimento da determinação foi considerada “vingança” em artigo do historiador Rui Tavares, no jornal português Público, que também dedicou editorial ao episódio. Para o El País o juiz Moro é o “inimigo número 1” de Lula. O argentino El Clarín foi direto: o comportamento do Judiciário desestabiliza a democracia brasileira.
O El País consultou especialistas que concluíram, por unanimidade, que o desembargador Rogerio Favreto tinha plenos poderes para libertar o ex-presidente. “Três especialistas entrevistados pelo El País opinaram que o juiz de plantão tinha poder para levar adiante a decisão de soltar Lula. Tudo indica que este novo episódio vai reacender a batalha jurídica que se trava no Brasil desde o início da investigação judicial da Lava Jato, em 2014.”
Para o Le Monde, ficou evidente a relevância de Lula no cenário eleitoral brasileiro e o descrédito do Judiciário: “Três meses antes da votação, uma coisa é certa: Lula permanece no centro do jogo político”, escreveu o jornal, para o qual o domingo ofereceu um “espetáculo de uma justiça desorientada e cada vez mais desacreditada”. Registrou, ainda, que, de um lado, a “mídia brasileira foi rápida em apontar a proximidade do Favreto juiz com o partido PT, ao qual foi filiado quase 20 anos antes de abrir seu escritório”, e, de outro, “parte da opinião pública acredita que o juiz Moro está perdendo a cabeça a ponto de desobedecer um superior”.
O jornal francês entrevistou, entre outros, o advogado Augusto Botelho, e o professor de Ciências Políticas da FGV Marco Antonio Carvalho Teixeira: "A justiça está à deriva", diz Augusto Botelho, advogado de São Paulo, que uma vez defendeu os réus de Lava Jato. A aplicação do habeas corpus foi falha. Mas a reação de Moro é completamente ilegal. "O episódio revela mais uma vez os conflitos na justiça brasileira e seu grau de politização. É terrível para o país ", diz Marco Antonio Carvalho Teixeira, professor de ciências políticas da Fundação Getulio-Vargas.”
O The New York Times destacou no título a desordem legal desencadeada a partir da decisão de Favreto: Juiz manda Brasil soltar ex-presidente Lula, iniciando uma confusão jurídica” (‘Judge Orders Brazil to Release Ex-President Lula, Setting Off Legal Uproar”). “A ordem foi a última reviravolta na tumultuada preparação para a eleição presidencial do Brasil em outubro. Mesmo da prisão, o Sr. da Silva tem a liderança nas pesquisas.”
“Encarniçamento vingativo”
O confronto jurídico pela libertação de Lula também foi notícia no chinês Global Times, no L’Obs (antigo Le Nouvel Observateur), no Liberation, no La Vanguardia, de Barcelona, no Financial Times. O Público, de Portugal, além de noticiar o caso ("Libertação de Lula da Silva suspensa em braço-de-ferro entre juízes"), tratou dele em em dois artigos de opinião. Para o historiador Rui Tavares, há um “encarniçamento vingativo” contra Lula. Ele aponta uma “caótica revolução descontitucionalista” no país e avisa que, “se o braço-de-ferro judiciário persiste, nenhuma má notícia é de excluir para a já martirizada sociedade brasileira.”
Escreve ainda Tavares que “(…)o facto de se negar a liberdade a Lula com um processo ainda não transitado em julgado, com uma ordem de um juiz superior, e acima de tudo não podendo ele ser candidato, sugere apenas uma atitude de encarniçamento vingativo contra a pessoa do ex-presidente.” (…) “Precisamente porque mesmo solto Lula continuaria a não ser legalmente candidato, fica assim patente que há quem deseje manter Lula preso a todo o custo, mesmo que isso signifique desobedecer a instâncias superiores e acicatar ainda mais a polarização do país. Ora, quem admitiu que aqui há uns meses o Supremo Tribunal não pudesse ir contra a sua jurisprudência para soltar Lula não pode aceitar que um juiz de primeira instância possa ir contra uma ordem superior para manter Lula preso.”
O historiador insiste na preocupação com a insubordinação do juiz Sérgio Moro:
“Se o sistema jurídico do Brasil for de alguma forma consistente com o de Portugal, Sérgio Moro pode perguntar a qualquer colega português se não é suposto um juiz de primeira instância obedecer às ordens de um juiz superior. Acresce a isto que a libertação de Lula nada tem a ver com a possibilidade de ele ser candidato ou não: o habeas corpus, sendo concedido, servirá para libertar o ex-Presidente, mas não para lhe restituir os direitos políticos, que continuam a aguardar a sequência do processo.”
Em editorial (“O caos contagia a Justiça”), o jornalista Manuel Carvalho, diretor do Público, critica o desembargador que concedeu o habeas corpus, mas reafirma as suspeições que pairam sobre o o processo contra Lula e acredita que o país corre o risco de avançar sobre um “precipício”:
“Depois da tormenta política, o Brasil experimenta agora os sintomas de anarquia no seu sistema judicial. As suspeita de um golpe para afastar o PT eleito em 2015 persiste, a figura mais popular do regime, Lula da Silva, está na prisão, as sondagens indicam a possibilidade de um candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro, chegar ao poder e, soube-se agora, o sistema judicial entrou num devaneio que trava todas as noções de responsabilidade, hierarquia e jurisprudência. Manter viva uma democracia com o poder político carente de legitimidade é um drama; juntar a esse drama um poder judicial contaminado pela suspeita de sectarismo torna o cenário do Brasil muito mais preocupante e sombrio.” (…) “Cada dia que passa, o Brasil parece dar novos passos para o precipício. A sua sociedade é incapaz de estabelecer os consensos mínimos da democracia. O seu sistema institucional dá sinais de se afundar no sectarismo que esquece a lei, o bom senso e o sentido de Estado. Já se sabia que a prisão de Lula e o seu afastamento das presidenciais levaria o país para a beira de um ataque de nervos. Não se esperava no entanto que a máquina institucional mostrasse brechas assim.”
Para o argentino Clarín, o Judiciário dificilmente se recupera da crise, que desestabiliza a própria democracia no país. “As conclusões, para os juristas, são devastadoras: o episódio, que girou em torno da liberdade do ex-presidente, ‘traz insegurança jurídica e desestabiliza a democracia’", afirma artigo assinado por Eleonora Gosman.