Para combater o avanço da fome no Brasil, segundo o teólogo e escritor Frei Betto, assessor da FAO, agência da das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, é preciso que as prefeituras respeitem a política de aquisição de merenda escolar junto a produtores da agricultura familiar, que o governo federal recomponha os estoques reguladores de alimento, que seja assegurada uma renda mínima à população e que se imponham limites ao agronegócio. Ele defende, ainda, o trabalho de base para esclarecer a população sobre as raízes políticas da crise e assegurar votos conscientes nas eleições de 2022. “Precisamos voltar à pedagogia libertadora”, diz o dominicano, que coordenou a mobilização social do programa Fome Zero, antecessor do Bolsa Família, extinto recentemente pelo atual governo.
Frei Betto saudou a volta de Lula à disputa eleitoral – “temos um Luís no fim do túnel” –, mas destacou que isso não é suficiente para resgatar o país. “Não podemos pensar só na reeleição do Lula, temos que pensar em vários aspectos. Não podemos centrar nossa mobilização apenas em torno do nome do candidato. Precisamos ter um projeto de Brasil e levar em conta o conjunto da obra: renovar as Assembleias Legislativas, a Câmara dos Deputados, o Senado, e os governos estaduais. Precisamos prestar muita atenção na escolha dos candidatos a ocupar esses cargos. E sobretudo começar desde agora o nosso trabalho de volta às bases. Nós, da esquerda, abandonamos as bases nas últimas décadas. E essas bases foram ocupadas pelo fundamentalismo religioso, pelo narcotráfico e pelas milícias. É hora de voltarmos à base, intensificando o trabalho de educação popular, e mobilizando nas pessoas a consciência crítica.”
Frei Betto lembra que o programa Fome Zero, criado no primeiro governo Lula, previa “um trabalho de educação política”, mas que teria sido deixado de lado com a transformação da ação em Bolsa Família. “Infelizmente, com todos os avanços e méritos dos 13 anos do governo do PT, não se investiu maciçamente como se poderia e deveria fazer na educação política do povo. Com isso, deixamos de criar uma nação de protagonistas políticos, de pessoas conscientes, que, sendo beneficiadas pelo Bolsa Família, ao mesmo tempo seriam capacitadas para participar de movimentos populares, sindicatos, ONGS, cooperativas.”
Mesmo a formação da Rede de Educação Cidadã (Recid), lamenta Frei Betto, teria sido “um pingo d’água no oceano”. Se a rede tivesse conseguido maior alcance, diz, “o perfil do país, hoje, seria outro”. O assessor da FAO cita, nesse sentido, o ensinamento de Paulo Freire, segundo o qual a leitura, o texto, deve ser precedida da leitura do contexto. “Ou seja, antes do letramento, temos que fazer a leitura do mundo. E a leitura do mundo seria as pessoas entenderem por que há fome, por que há diferença social, por que o agronegócio ocupa tantas áreas, destruindo as nossas florestas, qual a importância da agricultura familiar.”
Segurança alimentar
O retorno da fome ao país, na sua avaliação, “foi possível pelo absoluto descaso do governo ‘bolsonero'”, acusa, numa referência ao imperador romano que mandou incendiar a cidade e tocava lira nas arcadas do palácio, enquanto Roma pegava fogo.
“Na medida em que o golpe liderado por Temer derrubou a presidenta Dilma e introduziu uma série de medidas de retrocesso no país, como a Reforma Trabalhista, fez com que o aumento da exclusão, da miséria, das pessoas em situação de rua, viessem com toda a força”, explica. “O que nós temos hoje é essa população, mais da metade do Brasil, em situação de vulnerabilidade, agravada pela inflação, pelo aumento dos preços dos combustíveis refletindo no aumento dos produtos da cesta básica, pelo desemprego, que chega a 15 milhões de pessoas, e pela falta de perspectiva desse governo. Um governo absolutamente indiferente aos dramas da população brasileira, e que só é sensível à elite brasileira, uma parcela mínima da população, mas que controla 48% da riqueza nacional. Basta ver o descaso do governo, fazendo galhofa, piadas, com o genocído, a morte de mais de 615 mil pessoas em função da Covid”.
Diferentemente, segurança alimentar, explica o dominicano, é garantir a possibilidade de qualquer cidadão enfrentar o drama da fome. “Isso exige um conjunto de medidas que foram adotadas durante o governo do PT. Por exemplo, manter estoques reguladores, que este governo não fez. Segundo, valorizar a agricultura familiar. Se existe algo revolucionário no Brasil é que a merenda escolar venha da agricultura familiar. Mas nem sempre, neste governo golpista, os prefeitos respeitaram essa medida, que já foi oficialmente aprovada. Por outro lado, o governo atual favorece o agronegócio – que é uma pequena parcela da população brasileira e que se beneficia das exportações, estendendo algo que afeta drasticamente as nossas florestas – a monocultura, principal responsável pelo desmatamento na Amazônia e no Cerrado, e pelo aquecimento global.”
Um dos fatores apontados pelo dominicano para essa distorção é que o alimento deixou de ter valor de uso, como acontece nas comunidades indígenas e primitivas, e passou a ter valor de troca. “Não pensem que feijão e milho sobem de preço porque os supermercados, os comerciantes, decidiram fazê-lo. De jeito nenhum. O preço dos alimentos no mundo é monitorado pela Bolsa de Valores de Chicago. Quando a bolsa aumenta o preço do milho, os latifundiários, esse pessoal do agronegócio, passa a produzir milho, nada interessado na saúde e na sobrevivência da população brasileira. Estão interessados nos seus lucros, na acumulação de suas riquezas, a maior parte dela em paraísos fiscais. Então é todo um desacerto sistêmico, estrutural, que exige que a gente se rebele, esclareça as pessoas em relação a isso, para construir um país diferente, um país de justiça.”
Ele observa que o planeta tem 7,3 bilhões de habitantes, e alimentos suficientes para 11 bilhões. “O problema então não é a falta de alimento, é a falta de justiça, de políticas distributivas”, diz. “Quando ainda não tinha sido atingido o número de 1 milhão de mortos pela covid-19, houve uma grande mobilização mundial e investimento de capital em busca da vacina. Há muitas décadas uma vacina não era elaborada em tempo tão curto quanto as que combatem a covid. No entanto, 8 milhões de pessoas morrem de fome por ano, muito mais do que qualquer pandemia. E por que não há igual mobilização/? Por uma razão terrível, cínica: porque a fome, ao contrário da covid, faz distinção de classe. Ela só atinge os mais pobres.”
Medida eleitoreira
Nesse contexto, não surpreende que o novo programa de auxílio proposto pelo governo seja, na avaliação de Frei Betto, “uma política meramente eleitoreira”. O assessor da FAO ressalta que a medida é muito inferior ao auxílio emergencial pago durante a pandemia e, fora os já cadastrados no Bolsa Família, exclui mais de 30 milhões de pessoas que precisam dessa renda. “Além de ter uma data fixa para terminar (dezembro de 2022), exatamente quando termina o primeiro mandato do ‘Bolsonero’”, alerta. “É como se ele[Bolsonaro] dissesse: se me elegerem, eu vou prolongá-lo; se não me reelegerem, vou cancelá-lo. Espero que as pessoas tenham consciência do passado, quando o governo do PT adotou medidas muito mais favoráveis à sobrevivência da população, erradicando a fome e reduzindo a desigualdade social. Quando o PT estava no governo, a pessoa ia na feira livre com R$ 20,00 e voltava com a sacola cheia; hoje não consegue nem comprar os três ou quatro primeiros produtos da feira, porque estão todos encarecidos.”
Além de eleitoreira, a medida guarda “várias tramoias”, ressalta o dominicano, como o calote dos precatórios (dívidas que o governo federal está obrigado pela Justiça a pagar) e a manobra para furar o teto de gatos. “Não podemos aceitar isso. O Brasil tem jeito e sabe disso, porque viveu 13 anos de relativa cordialidade entre as pessoas, em que não havia esse clima de ódio, insanidade, de ofensa. E podemos resgatar esse passado recente que hoje muitos querem encobrir, e acabar com esse fanatismo dessa direita virulenta que quer cada vez mais agredir nossa consciência, nossa cidadania, inclusive a ciência. Porque são negacionistas. Negam os avanços e as constatações da ciência.”
Os representantes dessa direita também recusam, por divergência ideológica, a colaboração de um dos mais importantes produtores de alimentos do país, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). “Pouca gente sabe que o MST é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, sem insumos como adubo químico e agrotóxico”, informa Frei Betto.
Segundo o dominicano, o MST espera colher no Rio Grande do Sul, para a safra de 2022, 300 mil sacas de arroz. No início deste ano, a entidade colheu 248 mil sacas, no valor de R$ 20 milhões. Mas 130 mil sacas, dessa produção total, continuam em estoque. “A grande dificuldade que o MST encontra é escoar a produção, porque o principal comprador é o governo e a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Em se tratando de produtos do MST, você sabe como é.”
Frei Betto é grande divulgador do MST e lembra que os alimentos estão disponíveis em vários armazéns e pontos de venda, produzidos na agricultura familiar, nos assentamentos. “Além disso, a Conab não tem aberto leilões para adquirir produtos da agricultura familiar, nem o governo tem interesse em manter estoques reguladores. Então o MST é muito afetado por esse desinteresse e sobretudo pela pecha que recebeu da grande mídia de um movimento violento, de invasão de terra.” Na verdade, o MST nunca invadiu uma terra, ressalta o dominicano. Ele explica que as ocupações são feitas após estudos e análises, em terras devolutas, de grileiros ou em condições irregulares junto ao Estado.
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> Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)
> Assista na íntegra ao Soberania em Debate com Frei Betto, assessor da FAO, entrevistado pelo cientista político Jorge Folena e pela jornalista Beth Costa, coordenadores do SOS Brasil Soberano