Um programa amplo de soberania alimentar, baseado num tripé envolvendo produção de alimentos, consumo e proteção da natureza, é do que o Brasil precisa para conseguir acabar com a fome, avalia o economista João Pedro Stédile, integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O tema é urgente, porque, segundo o IBGE, a insegurança alimentar vem crescendo nos últimos anos, tendo alcançado em 2020 mais da metade dos brasileiros.
Stédile foi um dos entrevistados da série de debates “Diálogos – Brasil Popular e Soberano”, com transmissão pelo YouTube, realizada no dia 26 de agosto. O tema inaugural foi “Soberania Alimentar e Combate à Fome”, e também contou com a participação da ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma Rousseff, Tereza Campello, e de Marcio Pochmann, presidente do Instituto Lula e professor da Unicamp, e mediação da jornalista Beth Costa, da Fenaj, e do cientista político Jorge Folena. A iniciativa é do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) e do Projeto Brasil Popular, com apoio da Frente Brasil Popular, do MST, da Fundação Perseu Abramo, da Fundação Maurício Grabois e da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge).
“Estamos discutindo há um bom tempo, no âmbito do Projeto Brasil Popular, um projeto de nação”, explica o presidente do Senge RJ, Olímpio Alves dos Santos. “Queremos construir uma nação soberana e democrática, que promova a igualdade. Esse, no fundo é nosso objetivo central. Por isso, vamos fazer esse ciclo longo de debates, para que a gente consiga trazer essa construção para o debate popular, para que as pessoas se apropriem desses termos – o que seria um Estado soberano, dono do seu destino, um país igualitário, sem essa desigualdade chocante, que tivesse no poder, de fato, a população, e não a bancada da bala, do boi. Entendemos que é uma longa construção. Implica que tenhamos como objetivos finais isso: soberania, igualdade e democracia. Talvez as insígnias ordem e progresso não caibam mais nesse país. Não podemos mais pensar na ordem que permite Canudos, invasões e chacinas nas periferias, e num progresso apenas para alguns.” O tema de abertura do ciclo se justifica porque, diz Olímpio, 15% da população já está passando fome.
Para Stédile, soberania alimentar significa assegurar que o povo terá sempre alimentos saudáveis, em abundância, a preços acessíveis, durante o ano inteiro e por toda a vida. “As políticas de segurança alimentar são importantes, para matar a fome, mas são [ações] de emergência. É como entregar o peixe. E o povo precisa aprender a pescar, porque aí nunca mais vai passar fome.” Ou seja, trata-se de fazer uma mudança estrutural, que perpassa diferentes setores da economia e da organização social.
Segundo Stédile, do ponto de vista da produção – um dos pontos do tripé de uma abordagem consistente –, é necessário mudar o modelo que combina latifúndio improdutivo e agronegócio. “Qualquer governo popular tem que defender o modelo da agricultura familiar, que começa com a distribuição justa da terra e avança para a produção de alimentos saudáveis. Não é mais possível produzir com agrotóxicos que geram câncer. E a forma de produção de alimento saudável é a agroecologia.”
Para adotá-la, diz, é necessário um conjunto de políticas. “Não pode ser mais um negócio marginal, de bicho grilo. É possível adotar a agroecologia em qualquer tamanho de terra.” O dirigente citou, inclusive, Paulo Diniz, filho do empresário Abílio Diniz, que transformou um monocultivo de cana na fazenda do pai, de 1.200 hectares, numa área de produção agroecológica de onde se retiram atualmente 36 produtos, desde leite orgânico até laranja orgânica.
Stédile também defende a implantação de uma agroindústria cooperativada. “Em cada município podemos ter uma indústria de laticínios sob a forma de cooperativa, onde os camponeses vão se apropriar do valor agregado e vamos reduzir o preço final.” A proximidade dos consumidores é fundamental: “A produção de alimentos precisa estar o mais perto possível das cidades. É um absurdo o que se dá no Brasil: sai o tomate da Ceagesp [em São Paulo] e vai para Belém. Sai o leite de Rondônia e vem para São Paulo. É uma vergonha”.
O envolvimento do Estado nesse processo é essencial, destaca o dirigente do MST. “Há duas políticas públicas que a experiência dos governos Lula e Dilma nos deixaram como legado positivo: o PAA (Programa de Compra Antecipada de Alimentos) e o PNAE (Progama Nacional de Alimentação Escolar). O PNAE significa alimento para a merenda escolar. Permite que as prefeituras comprem alimentos no seu município para as crianças de lá. Assim a merenda vai ser parecida com o que as crianças já comem em casa, e fortalece a economia local.”
Em relação ao consumo, Stédile aponta a importância da renda da população, seja via programas de transferência, salário ou benefício previdenciário. “Para se alimentar, tem que ter renda. Se tivermos a renda per capita de um salário mínimo por pessoa, cada família poderá comprar os alimentos necessários para uma cesta básica razoável.” Por outro lado, ele destaca a necessidade de reindustrialização do país para gerar emprego qualificado. “O povo precisa de roupa, sapato, casa, comida. E isso não é o Uber que vai fazer. Não é o setor de serviços. É a indústria.” Stédile também lembra a relevância da Previdência Social. “Ela chega ao lar mais necessitado, ao desvalido, ao camponês de 70 anos, com problema de saúde, e R$ 1.200,00 na conta fazem a diferença.”
Stédile destaca ainda a importância da educação para um consumo consciente. “Por ela você forma agrônomos e técnicos agrícolas, mas também educa a população. Tão grave quanto a fome é a obesidade, que atinge os pobres. Rico se cuida, faz ginástica. Obesos são os pobres. Não por descuido, mas porque só têm dinheiro para comprar massa e açúcar e as porcarias que vendem nas periferias.”
Sobre o terceiro tópico do tripé, o da defesa da natureza, o dirigente do MST reconhece que houve uma mudança de qualidade na abordagem dentro da esquerda. “Éramos influenciados por uma visão economicista ortodoxa da esquerda europeia, segundo a qual bastava produzir e fazer crescer o PIB. Agora nos demos conta de que a defesa da natureza é parte da solução, para ter uma vida boa, para não faltar água, para acabar com a seca. Precisamos ter desmatamento zero. Não precisa mais derrubar uma só árvore para produzir comida. Este ano, já vendemos 500 mil toneladas de madeira em tora para os EUA e a Europa. Então devemos falar para os europeus e americanos: parem de importar! Em um governo popular, vamos proibir a exportação de madeira.”
É crucial, insiste, defender a água e o meio ambiente. “Precisamos de um controle rigoroso sobre esses crimes ambientais que a mineração comete. Não se pode admitir o que está acontecendo: 20 mil garimpeiros invadiram as áreas indígenas da Amazônia para tirar ouro e diamantes. Usam mercúrio e armas e levam doenças. São crimes que um projeto de país tem que combater.”
O golpe e a volta da fome
A ex-ministra Tereza Campello afirma ser necessário enfrentar três grandes questões colocadas de maneira equivocada, segundo ela, pela elite e pela imprensa. A primeira é achar normal a fome no país, atribuindo-a à pandemia. “Volta-se à naturalização de que a fome era por causa da seca, ou porque o povo é preguiçoso. Agora é a Covid… Não é verdade, o Brasil já havia voltado ao Mapa da Fome depois do golpe de 2016 por conta de um modelo excludente.”
A ex-ministra exibiu dados do IBGE que mostram a forte piora da situação alimentar no país desde o golpe de 2016. Em 2004, segundo ano do governo Lula, 35,2% dos brasileiros viviam em insegurança alimentar. O índice caiu para 30,4% em 2009 e 22,9% em 2013, já na gestão Dilma. Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome. Porém, quando foi divulgada a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2017-18, já pós-golpe, a insegurança alimentar tinha subido para 36,7%. Em 2020, 55,2% dos brasileiros viviam nessa situação. “Isso foi por conta do aumento da pobreza e do desemprego, do desmonte da legislação trabalhista e das políticas públicas, do aumento da informalidade. O Brasil já tinha voltado ao Mapa da Fome no final de 2017.”
A segunda abordagem equivocada no discurso hegemônico da mídia, diz Tereza, é o apelo à filantropia. “O MST está dando um exemplo fantástico de solidariedade, mas não substitui o Estado. Não é possível combater a fome, a pobreza e a desigualdade sem políticas públicas. Não podemos fazer apelo à filantropia, dando migalhas, tirando a responsabilidade do Estado. Podíamos estar vivendo uma crise grave, mas sem estado de fome. A pandemia traz um desafio enorme, mas a fome não é resultado natural da pandemia, e sim da ausência do Estado.”
Por fim, a ex-ministra cita as contradições do atual modelo econômico. “Às vezes, no mesmo noticiário, você ouve sobre a fome, a pobreza, o desemprego e… o PIB do agro bombando”, critica. “Precisamos explicitar as contradições desse modelo em que o ambiental, o social e o econômico são completamente desgarrados. A gente exporta arroz, aproveita o câmbio e a escassez de arroz no exterior, e ao mesmo tempo falta arroz no país, o preço aqui cresce violentamente. O preço do arroz não é resultado da pandemia, mas da inação do Estado.”
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o país conseguira deixar o Mapa da Fome na gestão petista devido a cinco medidas: a priorização do combate à fome e à pobreza; o crescimento da renda, via geração de empregos formais, aumento do salário mínimo e um conjunto de políticas sociais (como o Bolsa Família); políticas de alimentação fora de casa; fortalecimento da agricultura familiar; e a criação de um sistema nacional de segurança alimentar. “A fome, a pobreza e a desigualdade são problemas complexos, demandam políticas multidimensionais. Como o próprio Lula ressalta, a gente fez menos do que deveria. Em muitas das ações estruturais, como a reforma agrária, talvez devêssemos ter apostado numa ação menos gradual. Mas é possível retomar essa agenda.”
Para Tereza, no entanto, essa retomada não é mais suficiente para resolver a situação da fome. “Estamos com um processo de desmonte gigantesco. Não basta olhar pra 2003 e fazer igual”, afirma. “Estávamos chegando ao limite de executar políticas com o Orçamento, de distribuir renda via gasto público. Era necessário ter avançado numa reforma tributária para garantir não só colocar o pobre no orçamento, mas colocar o rico e o muito rico no IR”, diz. “É preciso não só cobrar de quem é rico, mas usar esses recursos para mudar o atual padrão de desenvolvimento excludente.”
Política e modelo econômico
Marcio Pochmann afirma que o aprofundamento da desigualdade se combina com a asfixia da democracia brasileira e com o quadro geral de queda da atividade econômica do país. “Terminamos o ano passado com a economia cerca de 7% abaixo do que terminamos 2014. Desde 2014 o país não apresenta crescimento da renda per capita, algo inédito na história do capitalismo.”
Para ele, o mau desempenho se relaciona ao que ocorre na infraestrutura econômica. “O Brasil perdeu sua condição de industrializado. Tem indústrias, mas elas representam cada vez menos no PIB. Somos hoje um país muito mais voltado aos serviços e, já há muito tempo, com um dinamismo que é o agrarismo. Muitos falam que os nossos governos surfaram na onda do ciclo de commodities e, tão logo esse ciclo se encerrou, inviabilizou aquele modelo que combinava crescimento, democracia e inclusão social. O que temos visto é que esse ciclo continua oferecendo resultados, o país tem crescido sua presença no mundo e tem sido referência em relação à exportações, à produção agropecuária e mineral”, afirma. “Mas não significa que essa produção esteja voltada para o mercado interno.”
Para Tereza, há um conjunto de medidas que poderiam ser tomadas unindo distribuição de renda, dinamização da economia e um modelo ambientalmente sustentável. “Podemos gerar oportunidades impressionantes, com as próprias alternativas de produção de energia sustentável. Um modelo de desenvolvimento que inclua, que respeite a natureza. Estamos andando pra trás. O que o Brasil produz? Minério e o fazendão. É tudo primário.”
Segundo Pochmann, o problema é político. “Estamos vendo a maior mudança histórica dos últimos 250 anos: o deslocamento do centro dinâmico do Ocidente para o Oriente. Não é um fato qualquer. Há sinais crescentes da decadência dos EUA”, diz. “O Brasil está diante de uma oportunidade histórica. Quando o presidente Lula assumiu em 2003, não havia isso. Existia a força do Norte, dos EUA, e o Brasil de maneira muito inteligente foi construindo pontes para viabilizar a expansão do Sul. Construiu iniciativas que deram protagonismo global ao país, incluindo os Brics. Infelizmente, desde o golpe, saiu da cena internacional.”
Ele vê hoje escolhas a fazer. “O Brasil pode fazer um programa com os EUA, um programa soberano com os países da América Latina, um cabo muito forte com a China, a Índia e a Rússia. Para onde nós vamos? O Brasil, que chegou a ser a sexta economia do mundo, e hoje está na décima-segunda, se aliou com EUA do golpe para cá. Na década de 30, Getúlio Vargas se afastou do padrão libra esterlina e abriu negociação com o dólar e o marco alemão. Imagine hoje um governo abrir mão do dólar e fazer gestões com a moeda chinesa, com a russa, a indiana… Há novas oportunidades”, diz.
Pochmann enxerga também novidades na política. “No ciclo da Nova República, a política foi uma espécie de gestão do capitalismo. Não foi de transformação. Precisamos fazer uma reforma agrária, uma reforma bancária, uma reforma profunda na educação, uma reforma tributária… Rico tem que pagar imposto!” Para ele, isso vai exigir a construção de uma maioria, mas é um cenário alvissareiro para a esquerda. “A direita sabe disso. Por isso ela aposta na tristeza, porque um povo triste não luta por seus direitos.”
Para Stédile, o projeto de soberania alimentar depende justamente de reformas estruturais. “A reforma agrária popular não é mais aquela de dar terra. Agora não basta terra, nem para sair da pobreza nem para combater a fome. Agora é para produzir alimentos, tem que adotar agroecologia, mecanização, agroindústria cooperativada… Mas isso não se viabiliza sozinho. Só vai se viabilizar dentro de um projeto de nação, de um projeto popular para o país.”
> Os debates “Diálogos – Brasil Popular e Soberano” acontecem sempre às últimas quintas-feiras do mês, pelos canais do YouTube do SOS Brasil Soberano, movimento do Senge RJ, e do MST. Vão tratar de pautas centrais para o desenvolvimento de um projeto soberano e com justiça social para o país, a partir dos eixos em estudo pelo Projeto Brasil Popular, que envolve 30 grupos de estudos temáticos, em áreas estratégicas como saúde, educação, economia, ciência e tecnologia, etc.
> Assista aqui, na íntegra, o debate da série Diálogos Brasil Popular e Soberano sobre Soberania Alimentar e Combate à Fome:
https://www.youtube.com/watch?v=b5sgO6oJqkM