O que motivou a intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro? Para muitos políticos, parlamentares e entidades da sociedade civil, a medida extrema, apesar de ter o combate à criminalidade como justificativa oficial, possui outras motivações, visando especialmente as eleições presidenciais de 2018, e traz risco à segurança dos cidadãos e à democracia. Tudo indica que o maior beneficiário dela é o próprio Michel Temer e seus aliados; e o maior prejudicado, o pré-candidato à Presidência, na extrema-direita, Jair Bolsonaro.
O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, já se declarou mais de uma vez preocupado com o uso das Forças Armadas na segurança interna. Após o decreto de Temer, ele mandou notificar as tropas por meio de sua comunicação social (à esq.), ressaltando que a atual intervenção significará “sacrifícios”: “O comandante do Exército, em face da gravidade da crise, entende que a solução exigirá comprometimento, sinergia e sacrifício dos poderes constitucionais, das instituições e, eventualmente, da população.”
As várias explicações para a decisão de entregar às Forças Armadas o comando fluminense das polícias civil e militar, do corpo de bombeiros e da Secretaria de Administração Penitenciária incluem desde esvaziar a pré-candidatura de Jair Bolsonaro, levantar uma bandeira que sensibilize a classe média a ser disputada pelo campo de centro/direita – tanto do PMDB quanto do PSDB –, militarizar o processo eleitoral para reprimir atos da oposição, até preparar uma saída honrosa para o projeto de reforma da Previdência, que não obteve até agora votos suficientes para ser aprovado. Sem descartar a mágoa narcísica de Michel Temer, imortalizado pelo desfile da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti, vice-campeã de 2018, como grande vampiro da nação. Para alguns analistas, se conseguir transmitir a ilusão midiática de segurança com a intervenção, poderá ele próprio – ou alguém indicado por ele – colocar-se no campo da disputa presidencial.
Bastaram, contudo, poucas horas para que a intervenção produzisse sua primeira cena de constrangimento público para o governo. O general interventor Walter Souza Braga Netto admitiu a jornalistas que a situação do Estado do Rio não é tão grave: “Muita mídia”, explicou aos repórteres, segundo o jornal O Globo, enquanto se encaminhava ao gabinete de Michel Temer, depois da coletiva sobre o decreto, na última sexta-feira (16).
De fato, os dados do Instituto de Segurança Pública (quadro), órgão do governo do Rio, mostram que o Carnaval de 2018 foi menos violento do que os três últimos anos (veja o quadro), embora a violência tenha sido mais divulgada (pela mídia e pelas redes sociais). E as últimas experiências de apoio das FFAA à polícia não trouxeram melhorias à segurança carioca, – por exemplo, entre abril de 2014 e junho de 2015, quando mais de 3 mil homens das Forças Armadas ocuparam 15 favelas do Complexo da Maré.
A intervenção federal está prevista até o final de dezembro, ou seja, até o fim do processo eleitoral. Temer, no entanto, teria admitido nos bastidores encerrá-la, caso conseguisse os votos para aprovar a reforma da Previdência, um vez que mudanças constitucionais ficam vetadas durante a sua vigência. Neste caso, o governo federal adotaria a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), dispositivo por meio do qual as Forças Armadas apoiam as polícias locais, sem retirar o poder de comando do Estado. A pergunta que muitos se fazem é: se a GLO pode dar conta do cenário do Rio, por que optou-se pela via mais radical?
Para o antropólogo Luis Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança, a intervenção é eminentemente política – voluntarista, em ano eleitoral e sem plano de ação conhecido. Pretende tomar o espaço e o discurso ocupado hoje pelo que chama de “bolsonarismo”, no campo da centro-direita. “Porque ela interpela esse eleitorado e oferece um discurso, uma liderança, um vocabulário”, disse, durante entrevista ao Tutameia, canal jornalístico online.
O político que conseguir capturar esse discurso da “ordem” – expressão usada por Temer no pronunciamento à Nação –, na sua avaliação, concorrerá com chance nas eleições estaduais e poderá, eventualmente, até utilizar essa agenda como trampolim para projetos nacionais. “Essa intervenção será improdutiva, mas, para os conservadores, pode ser uma solução estritamente política: fortalece uma união em torno de um certo discurso”, diz o antropólogo.
A deputada federal Jandira Feghalli (PCdoB/RJ) também considera a intervenção eleitoreira, além de perigosa. Pronta desde janeiro, por que foi efetivada agora?, questionou em vídeo no Facebook. “Porque o carnaval foi a vitrine dessa anomia, dessa insegurança, que jogou para o mundo o que está acontecendo no Rio de Janeiro, e também quando explodiu a rejeição absoluta aos três níveis de governo: Temer, Pezão e Crivella. Aí eles buscam algum grau de sustentação através de ações desse tipo.”
Minstério da Segurança x PF
De acordo com a deputada, a primeira das consequências arriscadas dessa estratégia é o “protagonismo das forças militares no país”. A criação do Ministério da Segurança Pública, diz, também fortaleceria a “bancada da bala” e esvaziaria a Polícia Federal, que a deputada acredita estar redirecionando agora o seu foco para políticos do PMDB e PSDB. Outro efeito poderia ser “arrastar para a direita o processo eleitoral ou até não termos eleição”, advertiu. “Chamo as forças democráticas deste país a ficarem atentas e mobilizadas.”
O deputado Glauber Braga (Psol-RJ), no site da Agência Câmara Notícias, criticou o decreto e pediu eleições como uma das soluções para as mazelas do Rio de Janeiro. “Vender intervenção e ampliação do Estado punitivo como medida estrutural na garantia de segurança é vender uma ilusão para a população”, afirmou. “A solução estrutural para o Rio de Janeiro não é menos democracia. É a ampliação da democracia, e isso se faz com mais capacidade de intervenção popular.”
A falta de preparo das FFAA para atuação interna, na opinão de Jandira, poderá gerar vítimas e violações de direitos dos cidadãos das comunidades. “Quantos civis, a partir de uma truculência, poderão ser assassinados nas favelas, nas comunidades, nas ruas. Tenho muito medo de essas comunidades terem suas casas invadidas.”
Em entrevista ao site da revista Carta Capital, o ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim também teme pelos resultados da intervenção, destacando que o problema da violência é grave e que as Forças Armadas não estão preparadas para atuar por um longo prazo na segurança interna. “É uma distorção de suas funções”, ressalta. Em outros países onde foi tentada, como o México, ele lembra que a medida não reduziu a violência e ainda promoveu a cooptação de efetivos pela criminalidade, dando ao narcotráfico o controle de parte relevante do território. Outra preocupação seria a “politização das Forças Armadas”, mesmo perigo apontado por Jandira.
Para Amorim, “talvez Temer queira mostrar à população que está trabalhando”. E, embora a intervenção possa causar um efeito psicológico inicial positivo, “tem um sabor espetacular” e é um “instrumento extremo”. “Especialmente em ano eleitoral, também é muito perigoso. Além disso, pelo que sei, as Forças Armadas não se sentem confortáveis em uma situação como esta.”
Por outro lado, em artigo publicado na sexta-feira (16), em O Globo, e reproduzido no site do Exército, o general Umberto Andrade, presidente da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, parece fazer uma crítica clara a Bolsonaro, ainda que sem nominar o pré-candidato, capitão e deputado federal que mais de uma vez defendeu abertamente a tortura e o regime militar. No episódio mais recente, Bolsonaro foi aplaudido em evento do Banco BTG Pactual ao propor “metralhar a Rocinha”.
“Realmente, o brasileiro é conservador, mas não é fascista”, escreveu o general. “O brasileiro apoia os atos da Justiça e não aprova a truculência e muito menos a tortura. E os militares, por suas origens e por sua história, são uma amostra fiel da sociedade brasileira. De forma disciplinada, falam por intermédio dos seus comandantes. Como todos os brasileiros, pensam que precisamos aprimorar as bases de nossos sonhos. Para isto, devemos, por instrumentos democráticos, nos libertar da demagogia populista e do falso messianismo, que tanto mal trouxeram ao país.”
Há, ainda, no texto do general, uma menção às igrejas: “A negação da realidade e a corrida para ideologias e religiões que oferecem respostas e consolo para tudo são marcas típicas de tempos do interregnum, como denominou Zygmunt Bauman, capazes de desestruturar a vida cotidiana e produzir crises recorrentes.” Se Bolsonaro criticou enfaticamente a intervenção, Marcelo Crivella, prefeito do Rio e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, continuava até ontem na Europa, para onde foi durante o Carnaval.
Prioridades e trâmite de votação
Segundo fontes militares, os planos de ação dos interventores são confidenciais (“classificados”). A prioridade é criar um comando conjunto, analisar as potencialidades dos setores de inteligência e combater a corrupção dentro das polícias. O decreto da intervenção federal na segurança pública do estado do Rio (nº 9.288/18) será votado no Plenário da Câmara dos Deputados na segunda (19), em sessão marcada para as 19 horas.
Segundo a Agência Câmara, será o único item da pauta do Plenário no dia. E é o primeiro do tipo a ser analisado pela Casa na vigência da Constituição de 1988. Pelo texto constitucional, o presidente da República tem 24 horas para submeter o decreto de intervenção ao Congresso Nacional, que realiza o controle político do ato. Uma vez que ele tenha chegado à Câmara no prazo, cabe à Casa definir o calendário de votação.
A trâmite seguirá o Regimento da Casa: o presidente Rodrigo Maia escolherá, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, um relator para o decreto, que será nomeado no Plenário. O relator dará o parecer, que será discutido, encaminhado (fase em que os líderes colocam a posição dos partidos) e votado.
A Câmara se manifestará sobre o decreto presidencial por meio de um projeto de decreto legislativo (PDC). Para o PDC ser aprovado, será necessário o apoio da maioria simples dos votantes, presentes pelo menos 257 deputados. Uma vez acolhido pelos deputados, o projeto irá para o Senado. Em caso de rejeição, o PDC será arquivado e o decreto de intervenção federal não será submetido ao Senado.
. Confira aqui as notas críticas à intervenção da Justiça Global e da Human Rights Watch Brasil
. Assista ao Soberania em Debate que abordou a presença militar na segurança pública
. A íntegra do decreto de intervenção