Intolerância e Carta aos Brasileiros
Lincoln Penna*
Em meados de 2016, resolvi escrever uma carta ao príncipe João d`Orleans e Bragança. Tinha lido na Coluna do Ancelmo, no Globo, a boa impressão causada ao jornalista Ricardo Kotscho pelo trineto da princesa Isabel, por ocasião da FLIP de Paraty daquele ano. Diante do clima de intolerância existente já à época, pensei em escrever ao Joãozinho, como costuma ser tratado o príncipe herdeiro pelos mais íntimos, sendo eu um bisneto do marechal Floriano Peixoto e ele da dinastia monárquica.
Encaminhei a carta à Coluna para que ela registrasse a missiva endereçada ao príncipe. Ancelmo Gois deu destaque, com chamada na primeira página do Globo, e fez chegar ao endereçado o teor da carta. A receptividade foi imediata e a repercussão provocou uma entrevista à revista Isto É, na qual deixávamos claro que, a despeito de nossas raízes familiares, nada impedia que pudéssemos trocar ideias num clima amistoso, desprovido de ódios e ressentimentos. Longe, portanto, da intolerância então reinante. Seria um chamamento à razão para a ameaça dessa atitude intolerante, antessala da escalada insidiosa ao autoritarismo pleno que antevia.
A força da conjuntura intolerante prevaleceria ao longo daquele ano e dos anos que se seguiram, com o agravante de ter sido fortemente implementado pelo vitorioso das urnas em 2018, o atual presidente Bolsonaro. Sua própria eleição deveu-se, principalmente, à intolerância geradora do ódio aos que deveriam ser apenas adversários, vistos sempre como inimigos do país.
Estamos hoje a assistir a emergência de uma “tempestade perfeita”, para usar um jargão dos economistas, para definir um panorama adverso no qual se juntam todas as tendências capazes de fazer ruir os rumos das atividades econômicas, com as consequências sociais e políticas inevitáveis. Aplicada ao quadro político e institucional do presente, tal situação não irá arruinar apenas o governo, mas atingir mais profundamente os grandes contingentes sociais colocados à margem de benefícios que, historicamente, privilegiaram as classes proprietárias de terras e rendas.
O recurso à carta não possui mais a faculdade de sensibilizar eventuais oponentes no campo das convicções a respeito da melhor maneira de lidar com a independência, a soberania e os projetos para a sociedade brasileira. E isso pelo simples fato de que o terreno se encontra minado de forma mais acentuada e extremada, a ponto de não permitir que eventuais signatários possam, da troca de mensagens, criar ambientes propícios para o debate de ideias. A razão é simples: mesmo no âmbito de campos ideológicos distintos, o diálogo, mesmo impertinente, deveria prevalecer. Atitudes próprias da atividade política mostram-se ausentes. A intolerância tem dominado todos os interlocutores e os brasileiros são atirados à própria sorte.
Digo todos, porque acabamos sendo envolvidos pelos discursos dominantes a pregar sistematicamente uma “paz social” em meio a injustiças sociais infernais. E a atribuir a “vândalos” as atitudes reativas de comunidades e cidadãos a expressarem suas revoltas mais do que justificáveis diante da mais sórdida violência, a da exclusão social e a da negação da exploração dos que vendem sua força de trabalho. Sem falar as que decorrem do racismo recorrente entre nós.
No pequeno livro que escrevi para ser lançado no início de 2020, O Cabo, o Capitão e o Capital, cuja pandemia impediu o lançamento, procuro demonstrar que o fascismo não é só um regime ocorrido no entreguerras, mas sim uma prática política que cultiva métodos, de sorte a levar toda a sociedade ao desespero e a transferir a salvadores da pátria a solução de seus problemas. Estes buscam as razões da crise e do desencanto do povo nos outros, isto é, naqueles que a eles se opõem. Usam a impaciência do povo para suprimir as liberdades democráticas e instaurar o totalitarismo, o mesmo que no passado não tão longínquo apelava para Deus, pátria e família.
No livro, se o cabo Hitler e o capitão Bolsonaro assumem o papel de portadores da insatisfação das classes médias, temerosas de serem arrastadas para o desconforto das classes populares, o dito mercado, protagonista dos interesses do capital já inteiramente internacionalizado, deles se apega para evitar a bancarrota do sistema. E o fazem mesmo tendo que lançar mão de recursos extralegais para manter o modo de produção capitalista em pé, não importam os estragos em sociedades tão desiguais, como a dos países emergentes, dentre eles o Brasil.
A única carta a ser escrita doravante é aquela a ser endereçada às comunidades mais afetadas pelo grau alcançado pela acumulação de capital. A política predatória do governo Bolsonaro – alheio e, por isso, conivente com as ações criminosas no meio ambiente – precisa ter um basta. É preciso que o povo se torne protagonista da resistência da humanidade subjugada por uma etapa mais agressiva e destruidora do sistema opressor do trabalho. A esses povos das periferias dos grandes centros urbanos, do campo e das reservas nativas, constituídas por tribos fieis aos seus antepassados, é que deve chegar a minha singela e esperançosa carta aos brasileiros. Resistam e busquem impedir o desastre desse temporal provocado pela fúria do capital.
*Lincoln de Abreu Penna é graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com mestrado em História pela Université de Toulouse Le Mirail, e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de vários livros, ocupa-se de consultoria política e estudos estratégicos para instituições.