Se a Previdência não tem déficit, como revelou o relatório da CPI do Senado que analisou as contas da Seguridade Social, por que é tão importante para o governo, para o mercado financeiro e para as entidades empresariais que a reforma aconteça? Entre outras razões, porque as instituições que vendem previdência privada querem abrir novas frentes de mercado e rentabilizar suas operações. Por exemplo, reaquecer a linha de planos privados corporativos, aqueles co-financiados por empregadores e seus funcionários, um segmento estagnado e que enfrenta o aumento do pagamento de benefícios devido ao envelhecimento crescente da população, sem conseguir captar novos contribuintes.
“No âmbito das empresas e trabalhadores do setor privado, o último plano patrocinado foi instituído em 2005”, escreve Paulo César dos Santos, subsecretário do Regime de Previdência Complementar da Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda. “A partir daí, ou seja, há mais de uma década, não se percebe o interesse das empresas em patrocinar planos, nem tampouco o interesse dos seus colaboradores em negociar tal benefício em seus acordos.”
A avaliação consta de artigo na Revista Previdência Complementar (Ano III, nº 3), de outubro de 2017, publicada pelo Ministério da Previdência. Segundo o autor, que também preside a Câmara de Recursos da Previdência Complementar (CRPC) e a Comissão Permanente de Fundos e Planos de Pensão da Organização Iberoamerica da Seguridade Social (OISS), “o segmento operado pelas entidades fechadas está estagnado e em processo de desacumulação. Hoje, os planos mais antigos, na modalidade Benefício Definido (BD), já se encontram num estágio de maturidade, pagando mais benefícios do que recebem de contribuições e passando a realizar ativos [ou seja, a resgatar os recursos aplicados em ações, títulos públicos, etc.] para honrar seus compromissos. Essa situação vai determinar, em 2017, a realização de ativos da ordem de R$ 30 bilhões. Tais planos representam cerca de 30% do total de planos e um patrimônio aproximado de 67,6% do patrimônio total dos 1.092 planos em operação.”
Ou seja, a dinâmica da pirâmide etária brasileira não comprometeu a sustentabilidade da Seguridade pública, que foi idealizada na Constituição de 88 ancorada em diferentes fontes de receita, como a Cofins, o PIS, as receitas de loterias, além da contribuição dos trabalhadores e dos empregados. Mas poderá ser um problema real para os fundos privados. As instituições precisam acelerar o ritmo de novas adesões e achar formas de compensar o pagamento das aposentadorias baseadas em benefício pré-definido (BD), que começam a vencer agora em grande número, sem ingresso equivalente de receitas. Para contornar esse problema, a oferta das instituições tem migrado para planos com valor de benefício variável (planos de Contribuição Definida e de Contribuição Variável), que condicionam a aposentadoria futura à evolução das contribuições e aplicações feitas pela institução financeira, com menor risco mas com uma gestão cada vez mais complexa quanto mais caírem os juros.
O volume de resgates por desligamento dos planos já somava, em maio de 2017, mais de R$ 620 milhões contra R$ 740 milhões em todo o ano de 2016, informa o artigo de Paulo César dos Santos, um profissional do mercado, que, como o próprio Secretário da Previdência, Marcelo Caetano, ocupa ao mesmo tempo um posto no governo e outro no conselho da Brasilprev. “Esse desembolso, aliado a realização dos ativos para pagamento de compromisso, tem levado, em especial as EFPC [Entidades Fechadas de Previdência Complementar] com planos BD, a ter um perfil de curto prazo nos seus investimentos, contrapondo-se às características dos investidores institucionais e pondo em discussão os incentivos tributários concedidos ao segmento e o caráter de instrumento de acumulação e formação de poupança privada”, escreve.
A tabulação das informações fornecidas pelas entidades indica, diz o artigo, um deslocamento dos participantes das faixas com idade mais baixa para as de idade mais elevada nos planos das entidades fechadas. "Este movimento nos revela o envelhecimento da atual massa de participantes sem que novos participantes entrem no Regime. Como consequência, teremos, à medida que as pessoas se aposentam e vão recebendo os benefícios contratados, a realização de ativos para pagamento de benefícios sem que haja a entrada de novos recursos, em volume suficiente, para manter ou elevar a poupança previdenciária privada que justifica, em última análise, a oferta de tratamento tributário diferenciado aos participantes e entidades fechadas.”
Em 2010, o total de contribuições recebidas dos fundos privados atingiu R$ 13 bilhões enquanto que o de benefícios pagos foi de R$ 27,2 bi, o que resulta numa razão entre o valor de benefícios pagos e o valor arrecadado de contribuições da ordem de 2,09; já em 2016, essa mesma razão caiu para 1,93, informa o subsecretário: “Tal comportamento ilustra um desequilíbrio evidente entre entradas e saídas de recursos dos planos de benefícios, visto que o pagamento de benefícios supera em praticamente o dobro o total de ingresso de recursos oriundos das contribuições, influenciado, principalmente, pela dinâmica financeira dos planos BD.”
Servidores públicos na bandeja
Além disso, para se expandir de forma significativa, o mercado de previdências privadas, principalmente daquelas oferecidas pelos bancos ao cliente individual, vai precisar driblar o envelhecimento da população, paralelo a mudanças de cultura nos novos clientes potenciais, os nativos digitais, menos dados à fidelização, seduzidos pelas Fintechs (bancos totalmente digitais) e por outras alternativas de investimento.
“Essas futuras gerações têm expectativas e interesses diferentes daqueles trabalhadores que, há 40 anos, ingressaram no regime de previdência complementar, cujos planos eram praticamente clones dos planos ofertados pelo regime público existente (administrado pelo antigo INPS), mas que sofriam o efeito da capitalização exigida para o regime complementar”, escreve o Paulo César dos Santos. “Flexibilidade, diversificação, liberdade de escolha e rapidez são características que marcam essa geração em tudo o que fazem e atuam. Não gostam que lhes indiquem o caminho, eles querem, por si só [sic], decidir o que é importante para eles, e não hesitam em quebrar paradigmas. São individualistas e seu contato com os meios eletrônicos de comunicação e trabalho são fundamentais para o seu dia a dia. Não há dúvidas que sua forma de lidar com os riscos e as incertezas do futuro, suas expectativas com relação ao trabalho e realização são muito diferentes das gerações que hoje estão aposentadas, ou prestes a aposentar nas entidades fechadas.”
A reforma, nesse sentido, poderia dar um empurrãozinho no esforço do setor e ressuscitar os planos de previdência complementar fechados, modelados com novos produtos já em estudo. O filão dos servidores dos muitos Estados e municípios que ainda não criaram sistemas complementares parece ser um dos nichos ambicionados pelo mercado, incentivado pela equiparação do teto para trabalhadores privados e públicos, medida prevista na Reforma, que desconsidera as diferenças estruturais dos dois regimes de contratação – servidores, entre outras diferenças, não contam com FGTS nem têm data-base para reajuste salarial.
No artigo publicado no site do Ministério da Previdência, o autor reconhece que as regras propostas pela Reforma da Previdência trarão perdas aos aposentados, e que mais gente acabará tendo que se aposentar pelo valor mínimo: ”As regras propostas na PEC 287 e seu substitutivo significam a revisão das regras de concessão, alongamento de prazos de carência e de permanência no Regime como contribuinte para o gozo de benefício. A convergência de regras entre os regimes públicos e obrigatórios, o cálculo racional e técnico dos benefícios dando maior peso a quem contribui por mais tempo e as regras de atualização dos benefícios criarão uma demanda por renda adicional para aqueles que optarem por receber os benefícios pelas regras mínimas.”
E a saída para aqueles que tentarão escapar da pobreza na velhice será, naturalmente, ter que contribuir em duplicidade, contratando um plano privado. “Assim, trabalhadores e os futuros pensionistas buscarão no mercado de previdência privada a solução mais adequada às suas necessidades. As novas gerações de trabalhadores tenderão a buscar veículos de poupança e investimento que lhes proporcione renda adicional, proporcionando um futuro mais confortável e seguro, em substituição aos níveis de benefícios antes oferecidos pelos regimes públicos e obrigatórios.”
O presidente da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), João Francisco Borges da Costa, declarou-se “otimista” em relação a 2018, em entrevista à Revista Fator Brasil. Entre outras razões, celebrava a perspectiva da Reforma da Previdência que, conforme admite, “cria um mercado maior para a previdência privada no Brasil.” Em pesquisa da DataFolha (reportagem de 10 de maio de 2017), apenas 10% dos entrevistados afirmaram ter um plano de previdência privada.
Oposição
A oposição ao governo e parlamentares que representam direitos sociais, contudo, estão obstruindo todas as matérias no Congresso Nacional, em um esforço concentrado para impedir a votação da reforma. O governo chegou a enviar os nomes dos parlamentares indecisos às federações e confederações do segmento empresarial interessado na reforma, mas, até o momento, não tinha conseguido os votos necessários para aprovar as mudanças. O movimento social também está mobilizado. A CUT está convocando os trabalhadores em todo o país para uma greve geral no dia 19, data prevista da votação da Reforma da Previdência em Brasília.