A redução drástica de recursos do governo federal, projetada para 2021, deve destruir o sistema de ciência e tecnologia do país, pondo a pique a capacidade nacional de inovação. Ou seja, secando exatamente a fonte de onde poderiam surgir formas de superar a crise. O alerta foi feito por dois economistas do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas (Napp/CT&I) da Fundação Perseu Abramo, Luiz Antonio Elias, ex-secretário-executivo do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (2007-14), e Mariano Laplane, professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Para Elias, “é um desastre”. Para Laplane, “uma tragédia”.
Elias e Laplane participaram do Soberania em Debate, promovido pelo Movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), no dia 16 de outubro. (Clique para assistir)
“Trata-se de destruir um esforço feito pelo país, ao longo de 70 anos, para se tornar soberano científica e tecnologicamente”, diz Laplane. “A sociedade brasileira precisa saber e precisa agir para evitar essa tragédia. O processo em curso é: primeiro, você interrompe; depois dá marcha a ré. Estão comprometendo o futuro de milhares de jovens e do país”.
Segundo Elias, os principais elementos articulados pelo governo federal para o desmonte são a via orçamentária, o ataque às instituições e a regulação. “O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2021 é um desastre, especialmente para a área de C&T. Em comparação a 2020, serão eliminados mais de 30% dos recursos”, estima o economista. “É um alerta para o Congresso Nacional, para que olhem a PLOA de 2021 e a refaçam. Não é possível que deixem isso. Revejam esse processo de desmonte e recoloquem o Brasil soberano para a sociedade brasileira.”
É particularmente grave, diz Elias, a desidratação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), instrumento importante não só para a ciência mas para todo o processo de inovação. O total disponível para financiamentos não reembolsáveis, que chegou a R$ 3,7 bilhões em 2020, cai para R$ 500 milhões no ano que vem.
O FNDCT reúne 14 fundos setoriais, relevantes tanto para setores como agricultura, biotecnologia, infraestrutura, etc., quanto para o fomento da pesquisa aplicada nas universidades. “Esse fundo chegou a ter para arrecadação, em 2021, cerca de R$ 5,3 bilhões. Para o não reembolsável, ou seja, para a pesquisa aplicada, a estruturação e subvenção das redes e a infraestrutura laboratorial das universidades, teremos apenas R$ 500 milhões. O restante está contingenciado.”
O orçamento do CNPq também despenca: de R$ 12 bilhões, a níveis de 2012, 2013, para menos de R$ 1 bilhão; o da Capes, de R$ 7,7 bilhões, para R$ 2,3 bilhões. “É um desastre para a pós-graduação brasileira”, insiste Elias. “Implica a desestruturação de todas as redes de pesquisa que foram construídas numa arquitetura institucional, para montagem e consolidação do que chamamos o Sistema Nacional de C&T.”
O Brasil vai em direção oposta à da maior parte dos países. Os EUA, devido à pandemia, estão destinando US$ 130 bilhões ao National Health Institute, para o desenvolvimento de novas vacinas. Com o mesmo objetivo, a Alemanha está desembolsando 130 milhões de euro, e assim por diante no Canadá, no Reino Unido, na China. Já no Brasil, o edital para desenvolvimento de vacinas foi de R$ 50 milhões. “Nós não conseguiremos emparelhar, sem rever esse modelo trágico, que retira capacidade de Estado e recoloca o Brasil como uma economia privada exportadora”, adverte Elias.
A asfixia financeira vem acompanhada do ataque às próprias instituições, seu estrangulamento político ou físico, no sentido de sua eliminação. O ex-secretário do MCTIC cita, por exemplo, a questão da autonomia das universidades, no que se refere ao seu planejamento e à eleição de reitores pela nomeação do primeiro da lista tríplice, um princípio basilar estabelecido desde o governo do ex-presidente Lula. Atualmente, 14 universidades já não têm reitores eleitos dessa maneira, mas nomeados diretamente pelo presidente da República.
Finalmente, o terceiro elemento da desconstrução científica e tecnológica nacional é a regulação. “São barreiras técnicas em nível de investimento ou a nível da capacidade de inovar e fazer frente à realidade internacional”, explica Elias. “É o caso do Inmetro e do INPI, que estão vivendo a sua pior crise dos últimos tempo.”
Impacto econômico e estratégico
Infelizmente, grande parte da sociedade não percebe o impacto desse desmonte. “Estamos falando de conhecimento que se transforma em bem-estar, em melhores condições de vida”, ressalta Laplane. “Muita gente acredita que basta permitir às empresas agirem como bem entenderem que os produtos e serviços portadores de conhecimento chegarão ao cidadão. Isso não é assim em lugar nenhum do mundo. A pesquisa é cara, demora, e tem uma dimensão de bem público. A sociedade precisa de conhecimento que não interessa às empresas desenvolver, porque não é rentável nem comercialmente interessante.”
Elias observa que as medidas contra a C&T destoam radicalmente do discurso, recorrente no próprio governo, que reconhece a necessidade de o país atuar na fronteira do conhecimento, de se preparar para a tecnologia da indústria 4.0. “Não há capacidade de desenvolvimento nessas áreas sem a presença no Estado, robustez de investimento e determinação para enfrentar essa crise.”
Para um país que tem urgência em voltar a crescer, os números são preocupantes, afirma. Em 2019, a renda per capita caiu a níveis de 2010, um recuo de uma década, e ainda sem os efeitos da pandemia. Este ano, já com as medidas de distanciamento social e o impacto da crise sanitária, um cenário intermediário projeta queda de 6% a 7% no PIB – mesmo patamar per capita de 2007, um retrocesso de 15 anos. “Um componente nocivo dessa crise é a ocorrência simultânea de um choque de oferta, por um lado, com a redução da atividade produtiva, e de um choque de demanda, com os rendimentos do trabalho em queda”, explica Elias. Além disso, ele destaca a baixa taxa de investimento para alavancar algum crescimento.
Na sua avaliação, a Covid-19 apenas aprofundou e acelerou a crise estrutural de um modelo falido, o ultra neoliberalismo, insustentável do ponto de vista econômico, e que não será capaz de resolver o problema social ou de avançar nos aspectos da sustentabilidade, inclusive ambiental. “Nem de radicalizar o processo de avanço da democracia”, diz Elias.
Uma proposta de inflexão no modelo
Para Elias, os brasileiros estão vivendo “uma das piores provações da nossa história recente”. A crise resulta de uma política econômica “equivocada, ultraneoliberal, reducionista do papel do Estado e desarticuladora dos direitos sociais”.
Para sair desse quadro dramático, ele propõe uma forte inflexão no processo de desenvolvimento: voltar a ter um Estado com papel de articular as políticas, definir a agenda, e eliminar o teto dos gastos públicos. O teto dos gastos, embora seja um entrave evidente à economia, não é a causa, mas consequência, na avaliação de Elias. A razão estrutural, diz, é o modelo voltado para o mercado, e não para o bem-estar das pessoas.
Um projeto para tirar o país da crise precisará, na sua avaliação, “fazer e articular as agendas da política industrial e da política de ciência e tecnologia, de modo que possa se espraiar, ter elementos indutores na agricultura, na defesa, na saúde”. Destaca, nessa direção, iniciativas na área da educação, para formação de quadros, quer para pós-graduação, na pesquisa, quer atuação na engenharia nacional.
“A engenharia brasileira está se defasando em relação ao universo da fronteira do conhecimento”, adverte. “Nações desenvolvidas soberanas são aquelas que têm ciência e tecnologia próprias, ou seja, capacidade interna de desenvolvimento, assim como uma aprimorada capacidade de inovação, como um passaporte para a sociedade do conhecimento, como uma forma inteligente de inclusão social.” Basta notar que os países não diminuíram seu orçamentos robustos de investimento frente à crise.
“O Brasil deve ter consciência de que a continuar a situação de penúria financeira, de agressão política, de propaganda contra as universidades, o custo não será das universidades, mas do país”, adverte Laplane. “Não se faz um doutor em um semestre ou dois, são necessários quatro anos. Pelo menos, dois anos para fazer um mestre. Há um investimento tanto do Estado, quanto dos próprios jovens, que, com esforço, completam seus cursos de graduação e pós-graduação. Esse esforço não se pode perder.”
Interromper o desastre “depende de nós”, diz o professor da Unicamp. “É preciso construir o que está sendo destruído e avançar além. Isso requer decisão, coragem, lucidez. Neste momento difícil, a sociedade brasileira talvez não tenha noção clara do que está acontecendo, e a pandemia não ajuda. Mas no momento certo conseguiremos avançar e reconstruir o que está sendo destruído, num país integrado, com bem-estar para todos.”
Elias também acredita que é possível reverter a rota do abismo. “É possível. Não podemos deixar que destruam essa arquitetura institucional”, diz. Citando o economista Celso Furtado, lembra que “o subdesenvolvimento não é um simples processo de transição ao desenvolvimento, mas um fenômeno mais permanente, cuja superação exige dedicação política tenaz e prolongada, determinação. É isso que temos que fazer.”
> O Soberania em Debate é uma realização do movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).
Assista na íntegra o Soberania em Debate com o tema “Tecnologia, inovação e desenvolvimento: O futuro do Brasil”
https://www.youtube.com/watch?v=gYVeHCUVtkI