Francisco Carlos Teixeira da Silva*
Certa feita, por volta dos anos de 1960, foi dito que as eleições nos EUA eram tão importantes que o Mundo inteiro deveria votar! Pena, posto que, nos EUA, então, poucos votassem! Mesmo agora, com os recordes de votação popular, e de candidato, foram necessários um verdadeiro choque, trauma, lutas que sacudiram cidades e uma clara ameaça autoritária, quiçá fascista, para a mobilização do país. Contudo, a América moveu-se. Numa comparação – mesmo com padrões diferenciados – com o Brasil, a mobilização foi intensa.
Enquanto Lula obteve 58,3 milhões – o maior patamar de votos da nossa História –, em 2006 , e Bolsonaro recebeu em 2018 cerca de 57,7 milhões de votos (lembrando que o Brasil tem cerca de 147 milhões de eleitores, com voto obrigatório, enquanto os Estados Unidos, 240 milhões, com voto opcional), neste momento, Joe Biden já é o homem mais votado de toda a História dos EUA, com mais de 71 milhões de votos, ou 50.5% de preferência de todo o eleitorado popular do país.
Nos Estados Unidos, o dia das eleições não é feriado, não há dispensa, houve, na verdade medidas contrárias ao voto por parte da Extrema-Direita, campanha de robôs via telefone, e até comboios obstruindo estradas e acessos a locais de votação. Assim, a mobilização do eleitorado – pró-Biden, em especial via postal, no dia das eleições, como também pró-Trump –, explicitou uma América atenta, firme, mobilizada, dividida e polarizada, em torno de plataformas políticas por vezes imaginárias e radicalizadas.
Há nestes dados materialidade, em especial em face dos inúmeros elementos oligárquicos e antidemocráticos vigentes no sistema eleitoral e partidário norte-americano, de uma inequívoca vontade de participação da maioria do povo americano, longe de estereótipos de alienação e de um “sistema” paralisante e emburrecedor. Pelo menos, tanto quanto as mentiras e falácias da última eleição presidencial brasileira.
Da mesma forma, as inúmeras organizações da cidadania do tipo “Protect the Vote” ou “Count Every Vote” – mais de 190 espalhadas por todos o país – e que saíram às ruas, muitas enfrentando fisicamente reações brutais nas ruas de Nova York e Portland, entre tantas outras cidades, mostram uma sociedade disposta a lutar pela participação, pelo aperfeiçoamento de suas instituições e por valores democráticos. E mais do que isso, a organização da sociedade civil de forma externa aos partidos políticos, uma vivacidade que não vemos aqui no Brasil, depois de quase oito meses de pandemia/quarentena, praticamente sucumbidos num mundo de “lives” e sem uma forma clara de organização contra o bolsonarismo. As formas de organização de apoio ao voto, e sua validação, são a grande novidade no processo eleitoral norte-americano.
Algumas manifestações, ao meu ver bastante equivocadas – talvez tocadas por um viés nacionalista, mesmo bairrista, desconhecedor das complexidades da sociedade americana, reduzindo Democratas e Republicanos a um mesmo caldo –, não ajudam a avaliar o futuro dos Estados Unidos, e, ainda pior, das nossas relações com a América e um eventual novo governo. O que, neste momento é apenas uma hipótese, dada a insegurança institucional e jurídica causada pelas acusações de fraude, sem provas, lançadas por Donald Trump. Trata-se, aqui, tragicamente, do destino de um Governo tão subalterno como nosso nos próximos quatro anos. De forma dramática, nunca, uma eleição americana foi tão decisiva para os destinos do Brasil. Não olhamos as eleições de forma ingênua, ou simplista, de forma a transferir o centro da luta pela Soberania Nacional, das lutas populares no Brasil, para os escritórios de apuração de votos nos EUA. Isso é primário demais. Trata-se de voltar a entender a própria dinâmica do Imperialismo, suas contradições e sua relação com o arranjo de poder vigente no Brasil hoje – o bolsonarismo.
O atual governo brasileiro – um arranjo de frações de classe, bloco de agrário-exportadores, grande capital financeiro, burguesia compradora-exportadora, ancorada em largas classes médias favorecidas no “boom” exportador da virada do século – concertou um acordo de dependência total com o bloco no poder nos EUA, este também um “momento” de intensos choques e lutas sociais. O bloco no poder no Brasil está disposto, para se eternizar, a entregar tudo que for necessário – toda a construção da Nação desde cerca de 100 anos – , já que o fluxo de mercadorias continua gerando rendas para o setor hegemônico do bloco agrário exportador, malgrado a imensa classe média reinante seja cada vez mais proletarizada, empobrecida, lumpenizada. Mas, manipulando a cultura, as ideias, a religião, a comunicação de massas, os setores hegemônicos pretendem esticar ao máximo sua capacidade de explorar, destruir, sugar, as forças vivas da Nação. Ao final, não terão nenhum compromisso e poderão gozar de suas riquezas em qualquer parte do planeta, de preferência na Flórida, à qual as camadas médias, que os sustentaram, não terão mais acesso.
Claro, os destinos do Brasil são, devem ser, decididos aqui; e a luta se trava aqui. Mas, mesmo a definição de conceitos como “Globalização”, “Dependência”, “Interdependência”, “Trocas Desiguais”, “Neocolonialismo” e, muito especialmente, “Imperialismo”, implicam a análise dos dois polos que se colocam vis-à-vis. Sem entender os arranjos dos grupos e frações de classe, seus choques, crises, nos países hegemônicos, nossa capacidade de agir em tais contradições seria anulada, dispensável.
A Guerra no Vietnã, entre 1964-1975, e a capacidade de “Tio Ho” de se transformar em uma figura popular nos campi universitários norte-americanos, ao lado das imensas marchas pela paz nas cidades americanas, foram um elemento central na vitória do povo vietnamita. Podemos bater em vários pontos da muralha do inimigo ao mesmo tempo, buscando suas brechas mais fracas.
Assim, as eleições norte-americanas são, de fato, um importante elemento na luta contra o fascismo no Brasil. Talvez um elemento central nessa luta.
O grau de alienação de grande parte das classes médias, das camadas populares brasileiras fixadas numa “cultura popular” americanizada, massificada via televisão, cinema de baixa qualidade, idealizada em viagens de baixo custo, inclusive como “presentes de aniversário” – “quero ir à Disney” –, como mote típico das classes médias e sinal de êxito social e verdadeiro rito de ascensão social, marcam os EUA como paradigma. O Brasil e suas classes médias, exemplificado e mediatizado na própria família do Presidente da República – o “intercambio” sem estudos, o “fritar” hamburger, a Disney, o boné político, os valores consumistas e a vida na cozinha de fast food –, interiorizaram uma “América” sem os valores básicos da própria fundação da América, que serviu por bom tempo para emular os ideais de Democracia. Não sabem sequer falar inglês, trocam Nova York pelos “bays” de compra de Orlando e Miami, veem a viagem como uma oportunidade de re-infatilização para o universo de bonecos gigantes, nada sabem da rica história de San Francisco, Detroit ou Filadélfia. De qualquer forma, todo esse imaginário – seja, dos “`Pais Fundadores”, seja do paraíso de compras –, parece entrar em colapso. Mas há uma “terceira América’. A América das pessoas que lutam pelo seu direito ao voto, que lutam para que “Todo voto valha”, que lutam pela memória de George Floyd, pela direitos dos negros, dos latinos, dos pobres, pelos direitos ambientais… Ou seja, há uma intensa luta social rugindo hoje na América, e nomes como Bernie Sanders ou Alexandria Ocasio-Cortez, nomes institucionais, são apenas uns poucos de tantos outros. A América é hamburger, um boné e as compras, para a maioria da classe média brasileira. Um rito de passagem e de prestígio para um imenso grupo social que aumentou seus proventos durante um ciclo de commodities favorável no país e encontrou seus intérpretes na “teologia do sucesso”.
Nada fizemos, também, para garantir uma escola “iluminista”, esclarecedora, combativa: na maioria das vezes, e em nome da governabilidade, abandonamos os professores, em especial os de História, Geografia, Biologia, à ira dos fundamentalistas. Na França pode ser pior. Um deles foi degolado por uma fundamentalista do ISIS. Professores são a linha de frente do embate cultural em curso.
Entre nós, o combate cultural não foi travado. Os grandes projetos de valorização dos nossos museus, galerias de artes, de colocar nossos alunos e estudantes nas ruas, visitando e criticando monumentos e sítios históricos, a maioria dedicada aos escravizadores e matadores de índios – como vemos em quaisquer cidades do mundo onde a educação “bancária” (dos alunos sentadinhos em bancos escolares, como dizia Paulo Freire ) tenha sido superada – bom, isso entre nós não ocorreu! Mantivemos uma educação rotineira, livresca. Não usamos a televisão para educar, que foi mantida como monopólio. E as redes foram usadas, minoritariamente, com enorme esforço, pelas iniciativas próprias dos professores e grupos sindicais.
Neste contexto, a eleição americana é importante, não há como negar, muito menos ignorar. Há ainda tempo para participar dessa briga, muito além de um certo desdém ou altivez nacionalista, no aprofundamento interno dos seus desdobramentos, trazendo o debate para o combate ao bolsonarismo. E temos motivos para isso.
Vejamos.
1. Bolsonaro amarrou seu cachorro, e com isso a Soberania do Brasil, em Trump – não só no Governo Americano. Não há precedente histórico de tamanha subalternidade entre chefes de Estado. A derrota de Trump é uma derrota do projeto Bolsonaro de transformar o Brasil em uma província dos Estados Unidos de Trump, desmoraliza o bolsonarismo e o deixa sem discurso;
2. A Questão Ambiental volta a ser central para todos nós brasileiros – além de ser mais uma derrota para o bolsonarismo –, e é de suma importância, posto que:
2.1 os povos indígena e ribeirinhos estão sendo massacrados e esse processo deve ser parado imediatamente, são vidas, são testemunhos, são culturas que estão em jogo;
2.2 a destruição da floresta é criminosa em si mesma, não apenas enquanto um trunfo na luta contra Bolsonaro;
2.3 há um modelo de exploração predatória dos recursos naturais que mostrou seu atrelamento aos preços internacionais de commodities e que deixa apenas destruição no seu rastro – todo o modelo deve ser repensado;
3. Os projetos Biden de ação sanitária/anti-Covid-19 e de vacinação são exatamente o contrário do que o bolsonarismo defende, e terão impacto direto no avanço mundial em favor da superação das condições da Pandemia e na luta para salvar vidas no Brasil;
4. Os projetos Biden/Kamala Harris de intervenção social/saúde e reconstrução urbana terão impacto, como os anteriores, na dívida pública americana e nos investimentos. Isso resultará no retorno, rápido e em massa, de dólares para os EUA, impactando o programa de privatizações e investimentos no Brasil e desmontando, ainda mais, a política de Guedes;
5. Por fim, a busca do Ministro da Economia de novos parceiros para investimentos no Brasil, em face da “marca suja” e das repetidas associações com Trump, e do retorno de capitais aos EUA, bem como para União Europeia em face da “segunda onda” de Covid-19 na Europa, será imensamente dificultada e ficará sem interlocutores, por um bom tempo, em Washington, trazendo forte impacto sobre a economia brasileira.
Nestas condições, numa situação mundial complexa, profundamente fluída, insisto que tratar as eleições americanas com desdém ou afirmar que podemos dispensar uma análise séria do chamado “Imperialismo” – ao qual, afinal, Lênin, Rosa Luxemburgo, Karl Kautsky e tantos outros dedicaram tantas análises –, em favor de um foco único no Brasil, é desconhecer a dinâmica e múltipla “margem” global do Mundo e, acima de tudo, os milhões de homens e mulheres, companheiros, que lutam contra o “sistema” nos Estados Unidos.
* Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor titular de História Contemporânea na UFRJ e coordenador do Movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)