SOBERANIA EM DEBATE

Quinta-feira, às 16h

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Fraturas sociais e um gole sobre a história da loucura

Casa dos loucos (1815-19), Francisco Goya

Sérgio Muylaert*

Pouco tempo faz, a imprensa noticiou de forma aterrorizante perseguições a categorias de policiais “antifascistas”. Diante do ineditismo houve quem esperasse as mais variadas reações na opinião pública. A revista Piauí, nº 168, apropriadamente, analisou. Momento após momento surgem mazelas de uma sociedade enferma. Arthur José Almeida Diniz, emérito professor da UFMG, desde 1977, referiu uma “sociedade necrófila”. Aqui, estamos, além do impensável, com as 155 mil mortes vitimadas pela pandemia e acima dos 5 milhões de infectados.

A espontaneidade dos comentários se deve aos casos gravíssimos e extremamente sintomáticos, para enfrentar o futuro do estado de saúde geral, conforme, aliás, seguidamente tem recomendado a OMS, por efeito da banalização e da capilaridade flagrante como se comportam as autoridades e a população em geral. As fraturas sociais referem situações, portanto, em cujo convívio social se comprovam desvios de normas públicas e institutos que regulam o Estado de Direito.

Adiante dessa absoluta falta de sobriedade, decoro e recato, para tratamento das questões essenciais, as fraturas sociais lembram os estilhaços de Terra em transe, obra-prima de Glauber Rocha, para nos fazerem tropeçar no Estado catatônico e na carnavalização da vida pública. O ano de 2016 revelou-se como o patamar dos novos acontecimentos para as fraturas sociais, dentro do cenário circense montado no Congresso Nacional, para votação que destituiu do cargo a Presidente da República, quando tomou assento o vice-presidente eleito na mesma chapa. A espetacularização avançou os limites do absurdo para ingressar o campo da intimidação, com elogios dedicados a nomes de representantes da face mais doentia da ditadura de 1964.

Tudo seria episódico e ao final anedótico, conforme servem as fotos e caricaturas das cuecas senatoriais. Mais do que isso, a reedição da página exultante do senhor vice-presidente da República ao êmulo nacional da tortura, símbolo da repressão político-militar no Brasil. Não estamos a discorrer sobre exageros. A Praça dos Três Poderes tem servido de palco para cavalarianos que descem de naves oficiais da FAB sob os aplausos desmedidos e desafiantes de adeptos da piromania. Componentes autoritários têm levado a que a autoridade pública se conduza, com frequência, com métodos voluntaristas, isentos de regramentos módicos, estabelecidos pela lei. Assim, respondem pelas constantes transgressões a enunciados e princípios do Estado Democrático (art. 37, da CF-88), haja vista a ordem pública estar fundamentada na lei para validade efetiva dos atos.

Obviamente, da autoridade pública se exige aptidão para seus atos. Por suposto, as funções públicas são indicativas de obediência aos protocolos e normas de interesse público. Jamais se pode imaginar o mesmo comportamento onde “O alienado atravessou todos os limites da acessibilidade; tudo em seu mundo se tornou estranho aos outros e a si mesmo”. Para introduzir a ideia-força deste tema, consultamos a ciência no intuito de destapar a essência do fio conceitual que evidencie sutilezas sobre o comportamento “alienado” e o insensato.

Assistimos a episódios em que autoridades públicas estariam tomadas por fantasiosas visões. “É um insensato que (diríamos, exemplificativamente) imaginava que o Pai Eterno tinha aparecido na sua frente e lhe dado o poder de pregar a penitência e de reformar o mundo.” A narrativa está no célebre livro História da Loucura, M. Foucault, São Paulo, Perspectiva, 1987, p. 389.

Copiosos relatos expõem casos gravíssimos sobre os quais a ciência, desde trezentos anos passados, divide as criaturas em categorias mentais distintas: os insensatos, os alienados e os celerados. São seres dotados com “espíritos” de desordem, ao ponto de causarem intervenções surpreendentes no meio social. Desde os grandes clássicos, o assunto povoa a literatura e as ciências humanas. Uma e outras lidam com a constância desses fenômenos da mente e abrem espaços para os “irados”, ou seja, aqueles suscetíveis de violento furor.

Consequentemente, cedem espaços múltiplos para variados modelos que se prestam a atuação do estado de polícia. São práticas que exprimem os impulsos das condutas autoritárias, sufocantes das atividades normalmente reservadas a instituições públicas e privadas. Experimentos diversos assinalam características próprias, ao que se reportam os métodos de atuação, tais como: a politia ordinata, Police (France), o sistema Polizei (alemão), o modelo prussiano (gute Ordnung und Polizei) até o grau Generaldirektorium, cuja conduta autoritária bem mais revela a estrutura de equilíbrio do poder central, exercitada repressivamente para desestímulo aos opositores. São em síntese formas de intervencionismo frequentes, quando assimiladas pelas camadas sociais desprovidas de garantias mínimas.

* Sérgio Muylaert é advogado, membro efetivo do IAB Nacional.