Jorge Folena*
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), presidido pelo ministro do Meio Ambiente, revogou suas Resoluções números 284/2001 (que dispõe sobre licenciamento para empreendimentos de irrigação); 302/2002 (que dispõe sobre parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais) e 303/2002 (que dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente).
A alegação do Ministério do Meio Ambiente é a de que estas normas, em particular as mencionadas Resoluções 302 e 303, seriam incompatíveis com o atual Código Florestal, aprovado pela Lei Federal 12.651/2012, que regulamenta o tema.
É fato notório que o atual governo trabalha sistematicamente contra a proteção do meio ambiente, conforme pode ser sintetizado pela manifestação do ministro do Meio Ambiente na reunião governamental de 24 de abril de 2020. Foi quando sugeriu “passar a boiada” para revogar toda a legislação ambiental, aproveitando-se do período da crise sanitária da Covid-19, conforme vídeo levado ao conhecimento público por força da decisão do ministro Celso de Mello, no Inquérito 4.831, em curso no STF.
A Floresta Amazônica e o Pantanal Mato-Grossense são patrimônio nacional, por previsão constitucional (artigo 225, §4º), porém estão queimando, sem que haja qualquer ação eficaz do governo para evitar a tragédia ambiental em curso. Por outro lado, o governo incentiva a exploração mineral em terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, afrontando o texto constitucional (artigo 231 e seus parágrafos).
A postura governamental, tanto ativa quanto passiva, constitui ofensa grave ao meio ambiente, que foi elevado ao “status de valor central da nação” pela Constituição de 1988, conforme interpretou o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC 42/DF, relator ministro Luiz Fux.
Isto porque o caput do artigo 225 da Constituição estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”.
Com efeito, não se vê no atual governo qualquer disposição em defender o meio ambiente para as presentes e futuras gerações; ao contrário, o responsável pela pasta ministerial e presidente do Conama é exatamente aquele que, de forma comprovada (nos autos do Inquérito 4.831, em curso no STF), orientou a “passar a boiada” para revogar a legislação ambiental.
Neste ponto específico, a nação, cujo meio ambiente foi elevado ao “status de valor central”, está diante de um evidente retrocesso ambiental, em razão do contundente desvio de finalidade dos objetivos constitucionais de proteção ao meio ambiente, que está sendo imposto pelo governo.
É certo que o Poder Público tem o dever de assegurar a efetividade do meio ambiente sadio e equilibrado, e que não pode se omitir nem deixar passar tudo (até mesmo a “boiada”), agindo para enfraquecer o equilíbrio que deveria defender, entre a tutela ambiental de proteção aos Direitos Humanos e os interesses essencialmente econômicos, na medida em que o que está em jogo, ao final, é a vida das pessoas, direito natural por excelência.
Nesse ponto, é importante resgatar José Afonso da Silva[1], que assim se manifestou sobre essas normas:
“As normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem, é o que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Compreendeu que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de quaisquer considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as de iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela de qualidade do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um valor maior: a qualidade de vida humana.”
Por tal razão, é surpreendente que o Conama, sob a presidência do ministro do Meio Ambiente, revogue suas normas de proteção ambiental, sem incluir outras para ampliar a fiscalização, deixando a sociedade entregue à insegurança jurídica, apenas sob o argumento de que o atual Código Florestal já teria regulamentado o tema das Áreas de Proteção Permanente (APP).
Ao agir deste modo, renuncia à sua atribuição legal (artigo 6º, II, da Lei 6.938/81), pois, no Sistema Nacional do Meio Ambiente, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) é o “órgão consultivo e deliberativo (…) com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida”.
Com efeito, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 127, em que se questionava a competência do Conama para editar as Resoluções 302 e 303, de 2002, diante do antigo Código Florestal (Lei 4.771/65), o ministro Teori Zavaski, relator do processo, expressou que:
“… a legislação ordinária constituiu o Conama como instância federal responsável por deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida (artigo 6º, II, da Lei 6.938/81, com redação dada pela Lei 8.020/90), atribuição normativa cuja autoridade se estende por todo o território nacional (artigo 6º, § 2º, da Lei 6.938/81) e compreende, entre outras, as competências especificadas no art. 8º da Lei 6.938/81, tais como a de estabelecer, mediante proposta do Ibama, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras (art. 8º, I) e de definir, via resoluções, os parâmetros e regime de uso das áreas de preservação permanente criadas no entorno de reservas artificiais, como dispunha o art. 4º, § 6º, da Lei 4.771/65.
(…)
A incompetência das definições legais proclamadas, para além de concorrer para uma potencial instabilidade jurídica quanto ao alcance da salvaguarda ambiental em questão, compromete a finalidade protetiva dos dispositivos legais em questão, o que levou o Conama a proceder, por meio de ato próprio, à delimitação das áreas situadas em restingas e em dunas que seriam objeto de proteção …”
A questão com que nos deparamos agora é que o Conama revogou essas resoluções e deixou o tema exclusivamente para a regulamentação do Código Florestal (Lei 12.651/2012), renunciando à sua atribuição normativa secundária, pondo em xeque o dever do Poder Público de proteger e assegurar a efetividade do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como previsto no artigo 225, caput e §1º da Constituição.
A propósito, conforme os termos do §1º do artigo 225 da Constituição, decorre do dever de proteção ambiental, imposto ao Poder Público, assegurar a efetividade do direito ambiental, elevado à categoria máxima de “direito humano ao meio ambiente de qualidade” (Pleno do STF, ADC 42/DF, relator min. Luiz Fux).
Ou seja, ao renunciar ao seu dever normativo sem estabelecer “outras regras que garantam o mesmo patamar de proteção”, o Conama desviou-se da sua finalidade, do seu dever de “deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida”, conforme determinado pelo Constituição (art. 225, caput) e pela Lei 6.938/81 (artigo 6º, II).
Desse modo, retirou a efetividade do direito ambiental, quando é dever incumbido ao Poder Público assegurá-lo a toda a coletividade (nos termos do artigo 225, §1º, da Constituição). Com seu ato, o Conama sinalizou, de forma negativa para a sociedade, que tudo é possível, inclusive naturalizar a devastação ambiental.
A decisão do Conama de revogar as suas Resoluções 284/2001, 302 e 303, de 2002, representou grave desvio da sua função institucional de proteger e assegurar o meio ambiente saudável para as presentes e futuras gerações, estando em desacordo com a norma do artigo 225 da Constituição.
Por isso, é necessário que se restabeleçam as normas revogadas, de modo a garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que constitui manifestação do direito à vida, bem máximo a ser tutelado por todos.
Pois o direito ao lucro desmedido não pode se sobrepor ao direito à vida, uma vez que “o foco no crescimento econômico sem a devida preocupação ecológica consiste em ameaça presente e futura para o progresso sustentável das nações e até mesmo para a sobrevivência da espécie humana”, como já se posicionou o Plenário do STF, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) número 42-DF, relator min. Luiz Fux.
* Jorge Folena é advogado e cientista político, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Integra a equipe de coordenação do SOS Brasil Soberano
[1] José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros: São Paulo, 2016, p. 866.