O economista cita, além do acerto com o Centrão, a substituição de base social, com o auxílio emergencial, a tentativa de construção de uma agenda econômica e a institucionalização do apoio armado de cerca de 5 milhões de profissionais da área de segurança pública e privada
Quatro alterações estratégicas, promovidas após o início da pandemia de Covid-19, podem ter estendido o fôlego do governo Bolsonaro, que parecia ter acabado nos primeiros meses deste ano, adverte o economista Márcio Pochmann, professor da Unicamp e ex-presidente do Ipea. Além de incorporar o Centrão, o governo tentou estruturar uma agenda econômica de investimentos, anunciada na famigerada reunião ministerial de 23 de abril, e começa a se aproximar de segmentos de baixa renda por meio do auxílio emergencial, embora o programa tenha sido proposto e conquistado pela oposição. Finalmente, recriou o Ministério das Comunicações, para onde transferiu o “gabinete do ódio”, uma ação que, para Pochmann, está relacionada ao fortalecimento dos apoios entre policiais militares, forças de segurança pública e privada e demais grupos sociais com posse de arma, e também ao controle do acesso às bases de dados pessoais dos eleitores.
Além disso, o governo Bolsonaro baixou o tom dos ataques às instituições democráticas, que vinham em escalada violenta, afirmou o economista, durante o Soberania em Debate, realizado no canal do SOS Brasil Soberano, no YouTube, no último dia 10. “Ele [o governo] partiu do pressuposto de que era necessário o fechamento de instituições e teve uma política ousada de enfrentamento ao Parlamento, à imprensa, ao Poder Judiciário — o Supremo Tribunal Federal. Mas parece que o STF se apresentou como uma espécie de barreira, e houve um certo recolhimento do governo Bolsonaro, o que não era comum, porque ele nunca retraiu, sempre avançou. Essas últimas duas semanas, contudo, parecem de um certo recolhimento. Uma estabilização? Não sei se dá para dizer. Mas me parece que tem um governo mais articulado do que tinha anteriormente, antes da pandemia.”
É uma ironia que o governo receba os créditos pelos benefícios sociais excepcionais autorizados durante a pandemia, após tanto esforço das oposições, na contramão da vontade e das diretrizes fiscalistas do ministro Paulo Guedes, da Economia. Mas o fato é que, na ponta, observa Pochmann, trata-se do maior programa de transferência de renda já realizado no país. O que, na avaliação do economista, pode permitir a Bolsonaro substituir a classe média alinhada ao ex-ministro e ex-juiz Sergio Moro, afastada da sua base base social, por camadas mais pobres.
“Era um governo apoiado nas classes médias assalariadas, sobretudo proprietárias, muito lavajatistas, e a saída do Moro abriu um certo afastamento desse segmento, como as pesquisas já demonstravam. Mas, por outro lado, por força da pandemia e da pressão social, o governo Bolsonaro lançou um dos maiores programas de transferência de renda já vistos na história do país.” Pochmann calcula 1,2 milhão de famílias incluídas, para além do estoque já recebedor de benefícios. Além disso, esse conjunto agora com 14,2 milhões de famílias passou a receber três vezes mais o valor do benefício, em comparação a março, porque incorporaram o auxílio emergencial.
A outra inclusão, aponta Pochmann, envolve cerca de 30 milhões de beneficiados, que jamais tinham tido nenhum recurso pago pelo governo: “São tipicamente esses trabalhadores nas ocupações que a Reforma Trabalhista gerou: sem carteira assinada, sem proteção social, numa insegurança enorme. Com a parada econômica, esse contingente ficou praticamente sem nada. Então você tem ali uma amplitude significativa, são 65 milhões de pessoas que recebem esse benefício.”
Finalmente, há, ainda, os mais de 10 milhões de trabalhadores com carteira assinada que passaram a receber o programa de garantia de emprego. Aquela condição em que a pessoa tem suspenso seu contrato de trabalho, em regime de CLT, e recebe o benefício que vem do seguro-desemprego, ou para complementar, se tiver redução da jornada. Lógico que esses números são complicados, há questionamentos sobre quem recebeu… mas o montante equivale a quase quatro quintos (⅘) da força de trabalho recebendo algum benefício. É bastante significativo. E pesquisas preliminares mostram certa aceitação desse público alvo do governo Bolsonaro, que, no caso do auxílio temporário, ofertou apenas R$ 200,00, com desestímulo a esse tipo programa, mas, agora, já entendeu que deve ser prorrogado e gerar uma transformação num programa maior. Aí tem uma mudança do governo em termos da presença da extrema direita junto aos pobres. Essa seria a terceira mudança: afastamento da classe média e aproximação desse conjunto de empobrecidos.”
Um “segundo governo”
As mudanças implementadas pelo governo derivam de pressões provocadas pela pandemia, mas também têm a ver com o reconhecimento do péssimo desempenho da gestão. “O primeiro ano foi pífio em resultados colhidos, muito distante do que se esperava. Em termos econômicos, inclusive, foi pior do que o ano anterior, com Temer, um governo muito mais fraco, praticamente apenas esperando passar o bastão. Um governo eleito, no seu primeiro ano, imaginávamos que teria resultados mais amplos, mais consistentes. Essa avaliação em relação ao seu governo era de que precisava fazer modificações internas, uma espécie de rearticulação, tendo como horizonte a permanência em 2022. Com a chegada da pandemia, ficou claro que o governo Bolsonaro acabou.. um governo que já era fraco em situação bem menos complicada.” Ou pelo menos, era o que parecia.
Com a crise sanitária, Pochmann estima uma contração econômica próxima de 10%, para um cenário de desemprego que, antes da Covid-19, já atingia 25% da força de trabalho, se considerado o desemprego aberto e o desemprego oculto (precarizados, bicos, desalentados.) “A pandemia colocou para ele [Bolsonaro] um desafio enorme, que seria a possibilidade de construir um segundo governo”, avalia o economista.
Nesse sentido, o professor da Unicamp destaca a reunião do dia 23 de abril [aquela, cuja gravação gerou escândalo e a queda do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que propôs no encontro a prisão dos membros do STF], convocada para apresentar a reorientação econômica do governo, diante da insatisfação dos resultados colhidos pelo ministro Paulo Guedes, da Economia.
“O general Braga [Walter Souza Braga Netto, chefe da Casa Civil] fez uma apresentação muito preliminar, pouco sustentável do ponto de vista da sua consistência, mas de qualquer maneira ali era um embrião de que era necessário o governo se organizar de outra maneira, ter algum planejamento, algum horizonte de médio e longo prazo, algum investimento, porque estava claro que a espontaneidade do mercado não revelaria uma economia mais forte. Vimos ali, inclusive, a própria reclamação que faz o Guedes em relação a essa visão de investimento. Chama essas propostas que vêm mais próximas dos militares como se fossem uma espécie de PAC 2, que ‘não tinha dado certo no governo do PT ‘ etc’. Temos aí um eixo orientador que pode ser a marca desse segundo governo, vamos dizer assim.”
Minicom e o “pessoal das armas”
Já a mudança na base social e o fortalecimento dos dispositivos de “força”, os mais explicitamente antidemocráticos do bolsonarismo, se relacionam ambos à saída de Moro do governo. “A quarta mudança, que me parece que ainda está a ser explícita, diz respeito à formalização do partido — como chamar? –, vamos dizer, partido da segurança, que são cerca de 5 milhões de pessoas envolvidas nas atividades de segurança pública e privada, sobretudo privada, que funcionavam com uma espécie de doutrina da segurança, com hierarquia e identidade com a perspectiva do Bolsonaro. Com a articulação das rede sociais, esse público passou a estar conectado”, explica Pochmann, citando, por exemplo, as ações de disseminação de fake news.
Segundo o economista, isso ganhou maior importância com a saída de Moro, “numa tentativa de articulação da Polícia Federal com essa novas organizações, tendo em vista, inclusive, que as Forças Armadas e as Polícias Militares foram relativamente bem atendidas com a Reforma da Previdência”.
É nesse contexto que ele interpreta a recriação do Ministério das Comunicações. Diferentemente dos outros governos da Nova República, Pochmann ressalta que Bolsonaro fala diretamente com os eleitores, sem usar a intermediação das cadeias de rádio, TV e os jornais. “A impressão que eu tenho é que a recriação do Ministério das Comunicações, e aí a transferência do gabinete do ódio para lá, visa trabalhar com um cadastro de interlocução direta”. Ou seja concentrar os meios de controlar informações e meios de acesso ao máximo possível de cidadãos.
Ele lembra que o governo tentou obter a lista telefônica de todos os brasileiros, por meio de uma Medida Provisória, alegando que seria usada para pesquisas do IBGE relacionadas à Covid-19. Depois, tentou capturar o cadastro das carteiras de habilitação de motoristas (CNH), e também esbarrou em restrições. “Parece que está usando o cadastro dos próprios programas sociais para montar seu canal de comunicação”, alerta Pochmann. “Porque o Bolsa Família é um programa compartilhado com prefeituras. Mas, agora, a Caixa tem um cadastro gigantesco, que ela fez. É outro movimento que tenta dar a ele [Bolsonaro] um certo fôlego para um período mais longo.”
Por isso, o economista não compartilha da opinião de que o governo esteja “frágil. Mesmo Paulo Guedes, apesar de desacreditado, avalia, poderá se adaptar a um modelo que contenha um programa de renda ao mesmo tempo em que reduz drasticamente os gastos públicos, inclusive Educação e Saúde. O conjunto de 70 bilhões de benefícios que estão sendo pagos deve contribuir para gerar, segundo Pochmann, um déficit talvez de 10% do PIB, bem maior do que o previsto. “
De qualquer forma, esse manejo econômico não responderá à crise. “[O Brasil] precisaria de um projeto grandioso”, diz Pochmann. “A construção de uma economia pós-pandemia dificilmente será feita do jeito que está o Estado brasileiro, sem capacidade de planejar.” Ele lembra que, nem na excepcionalidade, o governo soube reagir. “Poderia ter convocado a indústria para fabricar insumos, máscaras, luvas; chamado o setor alcooleiro para produzir álcool em gel gratuito, entre outras medidas.”
Uma proposta para as prefeituras
O professor da Unicamp e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) tem sido procurado por candidatos que estão construindo seus programas para as eleições municipais deste ano. A eles tem apresentado um projeto ousado e incomum, “pós-capitalista”, que, conforme defende, resgataria para a economia o valor fundamental do trabalho.
“A prefeitura poderia retornar a um princípio organizador básico da sociedade que é o trabalho, que só é valorizado quando passa para o mercado”, explica Pochmann. Por exemplo, cita as tarefas domésticas, como lavar a louça, feitas sem remuneração em casa, mas pagas, se num restaurante. É o que conceitua como “trabalho socialmente útil”.
“Outra forma de sociabilidade” poderia ser organizado pela prefeitura, por meio da construção de um sistema que defina o que é um trabalho socialmente útil — como cuidar do idoso, do deficiente físico –, reconhecido pela comunidade. As horas trabalhadas dariam então direito a crédito social, que poderia ser trocado num banco comunitário por moeda social e gasta dentro da comunidade. “Cria uma rede de mobilização e vira um meio para as pessoas viverem”, explica o economista. Os pactos com banco e comerciantes, e o lastro da moeda ficaram a cargo da prefeitura.
Segundo Pochmann, já há algumas experiências e 113 bancos comunitários no Brasi. “As prefeituras bem intencionadas poderiam fazer isso. O governo que nós temos trabalha com o caos. A barbárie está colocada.”
> O Soberania em Debate faz parte da agenda do Movimento SOS Brasil Soberano, que é uma realização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Por meio de eventos, debates e produção de conteúdos temáticos, a iniciativa tem o objetivo de recolher subsídios para colaborar na construção de um projeto de desenvolvimento nacional com empregos, soberania e justiça social.