Francisco Carlos Teixeira da Silva e Jorge Rubem Folena de Oliveira*
Há uma divisão filosófica na visão de mundo hoje: todos concordam que o mundo não será o mesmo amanhã, no day after. Para retomar Umberto Eco, os apocalípticos dizem que iremos para um mundo sem direitos, com batalhões de desempregados, com um Estado Policial intervindo na vida privada de todos – essa é a distopia do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Por outro lado, há os que afirmam que a pandemia poderá acabar com o liberalismo, quiçá o capitalismo, e gerar um mundo mais solidário e ecológico – é o que diz Slavoj Zizek.
No Brasil, contudo, e para variar, estamos com dose dupla. Não conseguimos saber a extensão da doença, não vemos o “pico” e não temos mais uma projeção de quando “achatar” a curva. Uns falam em dois meses, quatro, seis… Como calcular o day after?
De qualquer forma, estamos numa situação única na periferia do mundo: vivendo no dia a dia, sem planejamento, sob um governo fascistizado, negacionista, ultraliberal, e com as instituições da sociedade civil destroçadas e a oposição política desunida e sem um projeto, frente a um inimigo popular e fortemente implantado nas Instituições.
As propostas de luta e resistência (que deveriam apontar para projetos coletivos, amplos e organizativos, para evitar a luta meramente de retaguarda corporativa) ainda se perdem, entre outras razões, por supostas intrigas palacianas entre militares “do bem” e — todos sabem — os outros!
As propostas de luta e resistência (que deveriam apontar para projetos coletivos, amplos e organizativos, para evitar a luta meramente de retaguarda corporativa) ainda se perdem, entre outras razões, pela preocupação, inclusive entre as esquerdas, com as supostas intrigas palacianas entre militares “do bem” e – todos sabem – os outros, supondo a existência de uma “ala militar” capaz de controlar (tutelar?!!!) o pior ( ainda existiria algo pior por vir?) do presidente! Assim, em vez de formularmos uma política própria, autônoma, popular e democrática, nós nos deixamos enredar pela mística salvacionista de uma pretensa “ala militar” legalista, cada vez mais responsável pela existência e continuidade do governo Bolsonaro.
Passamos tanto tempo fazendo política, e ciências políticas, com um olho no Boletim do Alto Comando do Exército et caterva, que nos viciamos em esperar daí soluções. Morremos todos da doença nesta espera. A pobreza da história não justifica a pobreza da análise histórica.
Entre os grupos de resistência fascista, a diferença histórica, em 1922 e 1933, foi a incapacidade de falar para o conjunto da sociedade, com a maioria fincando pé nas diferenças menores e esquecendo as imensas contradições com o fascismo necrófilo.
Hoje, ou no day after, falar será um ato político, talvez até seja um suicídio, e não falar será aceitar a morte: não haverá limites mitológicos para a narrativa da doença.
As esquerdas, os pecadores, os inimigos internos, “os negros que não sabem o seu lugar”, os gays, as mulheres que “abandonaram” as famílias, todos – todos! – responderão nos cultos, nas homilias, no Twitter, nas listas de zaps, nas falas apostrofadas e pontuadas por mímicas penianas de armas, pela “culpa” da doença. Fracos, desorganizados e mudos seremos os envenenadores de poços e fontes da Idade Média, os leprosos e os judeus de sempre.
Enquanto isto, os banqueiros e seus prepostos no governo e na presidência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal vão colocando em prática a grande apropriação dos recursos públicos arrecadados da população, ampliando o grave estado de exploração da sociedade, aproveitando-se mesmo do período especial da crise sanitária da Covid-19. Esse oportunismo inclui até devassar a intimidade das pessoas por meio da captura de dados pessoais dos cidadãos junto às operadoras de telefonia fixa e celular, como ocorre em regimes de exceção.
O total desrespeito à população, durante o estado de calamidade declarado no Brasil, tornou-se visível desde o domingo – 22 de março de 2020 -, quando o presidente da República atendeu ao pleito de banqueiros e empresários para suspender os contratos de trabalho por até quatro meses, sem pagamento de salários, em troca de uma ajuda de custo, conforme previsto na redação do artigo 18 da Medida Provisória 927.
Com efeito, estes fatos deixam evidente o aprofundamento das contradições do regime capitalista na atualidade, em especial no Brasil, onde há o apoio incondicional do estamento militar ao massacre promovido contra os trabalhadores, jogados à própria sorte e cada vez mais sem direitos sociais.
Nesse conjunto de ações desumanas contra a população, que precisa sobreviver em meio a uma brutal pandemia que está contagiando e matando milhões de pessoas pelo mundo, estão unidas todas as forças representantes do atraso do país: o governo de Bolsonaro, Paulo Guedes, Sérgio Moro e os militares; os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, banqueiros gananciosos e empresários inescrupulosos.
Nessa união diabólica, procuram garantir aos banqueiros tudo o que podem para que eles não tenham qualquer perda. Assim, a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional do denominado orçamento de guerra para o combate à Covid-19, aprovada pelo Senado Federal e que retornou à Câmara dos Deputados, visa assegurar aos bancos o recebimento irrestrito dos juros e encargos da dívida pública, conforme redação do artigo 115, § 6º (“Durante a vigência da calamidade pública de que trata o caput deste artigo, os recursos decorrentes de operações de crédito realizadas para o refinanciamento da dívida mobiliária poderão ser utilizados também para o pagamento de seus juros e encargos.”).
De um lado, o governo cria todas as dificuldades para pagar míseros R$ 600,00 mensais para mais de 42 milhões de brasileiros e cobra juros dos pequenos e médios empresários que cobrirem até o equivalente a 2 salários mínimos do pagamento dos seus empregados e, de forma inconstitucional, impõe o controle dos dados pessoais dos cidadãos junto às operadoras (nos termos da Medida Provisória 954/2020), De outro, os banqueiros apropriam-se de cerca de R$ 1 trilhão de reais (De R$ 1,3 trilhão que o país tem em caixa, 70% disso, ou R$ 917 bilhões, foram destinados aos serviços da dívida interna no Orçamento Anual da União para 2020: http://sosbrasilsoberano.org.br/covid-19-pela-s,uspensao-do-pagamento-da-divida-publica/ e https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/01/20/sancionada-lei-do-orcamento-da-uniao-para-2020). Esses recursos poderiam ser aplicados em saúde e no seguro social, para garantir que trabalhadores e pequenos e médios empresários fiquem em casa, de forma a reduzir a exposição de todos aos males da Covid-19.
Porém, não é só isto. Neste grande conluio, está prevista também a possibilidade de o Banco Central comprar e vender para os bancos os títulos do Tesouro Nacional e os créditos não recuperados pelas instituições financeiras (em relação aos quais já se beneficiaram com deduções do imposto de renda). A tentativa de permitir ao BC comprar os chamados títulos podres do mercado ganhou restrições durante a votação da PEC nº10/2020 (PEC do Orçamento de Guerra) no Senado: o Banco Central fica autorizado a comprar e vender títulos do Tesouro Nacional e ativos privados, mas só nos chamados mercados secundários e de baixo risco, (classificados na categoria “BB-” ou superior).
O Tesouro (artigo 115, § 9º, da PEC 10/2020) pretendia trocar seus títulos por créditos podres, de titularidade dos bancos, aumentando a dívida pública brasileira , sem sujeitar os dirigentes do Banco Central a qualquer responsabilidade e sem expor o patrimônio dos bancos, como está assegurado na Medida Provisória 930/2020, em seu artigo 3º (“Ressalvadas as hipóteses de dolo ou fraude, os integrantes da diretoria colegiada e servidores do Banco Central não serão passíveis de responsabilização por atos praticados no exercício de suas atribuições, exceto pelos respectivos órgãos correcionais ou disciplinares.”).
Além disso, a PEC do Orçamento de Guerra dá poderes especiais ao comitê gestor da crise, como num Estado de exceção, para deliberar emergências decorrentes do estado de calamidade pública. Preside o comitê a Presidência da República, cujo ocupante ameaça a todo tempo as instituições democráticas, e que transformou o país num verdadeiro circo de horrores, desviando, assim, a atenção do público da destruição e do saque em curso no país, em mais uma manobra diversionista, que ajuda a manter a divisão das forças políticas e sociais.
Ressalte-se que, diante de tamanha contradição, que revela toda a exploração imposta por um governo injusto, apoiado firmemente por militares descompromissados com o seu povo, é urgente a construção da união antifascista, por parte das forças progressistas e nacionalistas no Brasil, a fim de fazer frente à destruição que está em curso e evitar a apropriação definitiva do orçamento público.
Não é só ficar em casa!
É preciso lutar em cada casa!
* Francisco Teixeira é historiador e cientista político. Autor de diversos livros sobre conflitos e mudanças sociais. Prêmio Jabuti, 2014. Coordenador do Movimento SOS Brasil Soberano.
* Jorge Folena é advogado e cientista político. Integra a equipe de coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano.