Em todas as redes sociais muitas manifestações registraram apoio a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais e assexuais (LGBTQIA), porque o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal de Brasília, autorizou, no último dia 15, a realização de tratamentos para “reorientação sexual”. A decisão é liminar e pode ser revista, mas marca novo cerco aos direitos humanos e às populações homossexuais, visível em iniciativas legislativas, como o PL 174/17 do Senado para regulamentar diversas terapias, ou na censura à exposição do QueerMuseu, em Porto Alegre. Ou ainda no vídeo do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, de mãos erguidas pedindo orações a cristãos para que a economia melhore. Contra gays e não gays, o fato é que o conservadorismo, a repressão, o pensamento obscurantista, não científico e não libertário está no ataque.
A liminar do juiz de Brasília respondeu à Ação Popular movida por Rozângela Alves Justino (e outros autores) contra o Conselho Federal de Psicologia e a Resolução 001/1999 do CFP que proíbe a abordagem patológica da homossexualidade e as terapias que consideram a orientação sexual uma doença a ser curada. Rozângela é psicóloga e recebeu uma censura pública em 2007 (mantida em 2009) por oferecer terapia para que homossexuais se tornassem heterossexuais. Ela também é “missionária”, conforme se declara em seu blog, onde escreveu, por exemplo, em artigo de 2015: “A teoria da criação adotada pelos cristãos admite a existência de somente dois tipos sexuais criados por Deus: macho e fêmea. A estes tipos sexuais encontram-se atreladas somente duas identidades: masculina e feminina, correspondentes ao sexo biológico. Cabe a lembrança de que são os únicos tipos sexuais comprovados cientificamente: XY e XX.”
Ir contra a identidade de gênero e a “escolha objetal”, ou seja, a direção do desejo sexual de cada pessoa, “vai produzir sintomas de infelicidade”, alerta o psicanalista Anchyses Jobim Lopes, presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise. “É uma questão afetiva”, diz o médico, que há 17 anos atua contra tentativas do que define como “regulamentações espúrias” da psicanálise.
PL para regulamentar terapias
A mais recente é o Projeto de Lei do Senado (nº174/17) que pretende regulamentar a profissão de “terapeuta naturista” com normas iguais para práticas tão distintas quanto a leitura de aura, a cura quântica, a astrologia, a cromoterapia, o “coach ou aconselhamento” e a própria psicanálise. Todos os profissionais dessas dezenas de áreas seriam “terapeutas naturistas”, podendo exercer a profissão com formações técnicas não convencionais de nível médio. Inclusive aquelas oferecidas por igrejas de matriz neopentecostal, interessadas em prestar serviços do que chamam de “psicanálise clínica”.
O PL 174/17 é de autoria do senador Telmário Mota (PTB/RR) – que em 2015 tentou regulamentar o ministério religioso – e está aberto para consulta pública no site do Senado (para votar, clique no link: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129523 ). O Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, que reúne 18 associações, representando mais de 40 instituições, recomendou o voto contrário ao projeto. No livro “Ofício do Psicanalista: formação versus regulamentação”, editado em 2009 pela já extinta Casa do Psicólogo, o movimento descreve em vários artigos as muitas especificidades que envolvem a formação psicanalítica e as dificuldades intrínsecas à sua regulamentação.
De um modo geral, os esforços de grupos religiosos ou de parlamentares no Brasil de interferir ou regular a prática terapêutica têm buscado derrubar o paradigama essencial de que a psicanálise é leiga. Nos primeiros anos 2000, as entidades das áreas de psicologia e psicanálise conseguiram impedir dois projetos da Câmara nessa direção, e mais um do Senado, em 2010.
Suicídios
Lopes observa que uma das grandes causas de suicídio em adolescentes é a descoberta da homossexualidade, quando ela é recalcada. Em 2016, o Grupo Gay da Bahia (GGB), que produz um relatório anual sobre violência homofóbica, registrou a ocorrência de 26 suicídios na população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), sendo 21 de gays, três de lésbicas e dois de pessoas transexuais, de acordo com informação da Agência Brasil. O número, contudo, contabiliza apenas casos noticiados por jornais e pela internet, devendo, por isso, estar subdimensionado.
Na Assembleia Geral realizada em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
aprovou a retirada da homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), orientando os profissionais de saúde a trabalharem pelo fim do preconceito e da discriminação. Outra diretriz global, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) com colaboração de psiquiatras, psicólogos e outros especialistas de diferentes lugares do mundo, já não trata a homossexualidade como doença desde 1973.
Segundo reportagem da Carta Capital, o professor e doutor em Direito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Renan Quinalha criticou a liminar do juiz de Brasília em seu perfil no Facebook e afirmou que acionará o Conselho Nacional de Justiça contra o magistrado:“Depois de décadas de luta pela despatologização, ressuscita-se o discurso da cura (…) Vamos denunciar o juiz ao CNJ e divulgar bastante esta notícia absurda. A farra do Judiciário conservador que decide contra a lei precisa acabar.” A advogada Mariana Serrano, mestre em Direito pela PUC/SP e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, qualificou a decisão judicial como “gravíssima” – eleger a ‘manutenção da liberdade de pesquisa’ em detrimento da vedação a práticas de tortura física e psicológica e estigmatização de toda uma parcela populacional importa em violação gravíssima aos direitos humanos.”