Daniel Chaves*
Não é segredo para nenhum observador bem posicionado no debate público nacional – e, desde a Guerra Fria, global – a respeito do aproveitamento dos recursos minerais abundantes na Amazônia, como mais uma das riquezas tidas como intermináveis na Região Norte do Brasil. O que persiste (e tende a persistir!) em decorrência disto é a profunda polêmica sobre a capacidade dos governos, nacionais ou regionais, de administrar a exploração destas riquezas de modo sustentável; ou seja, conciliando a mais-valia da extração com os mínimos impactos ambientais e uma conduta consciente com relação às necessidades sociais urgentes de comunidades cujas condições de vida são absolutamente precárias. Os problemas que Bertha K. Becker, um dos mais brilhantes cérebros brasileiros, descreveu como a ‘floresta urbanizada’ são uma presença infeliz: duvidoso acesso à saúde, educação, segurança, energia elétrica e água potável são alguns dos problemas capilares persistentes para as populações, para além dos grandes núcleos metropolitanos. Adicione-se a isto o problema do histórico desrespeito às comunidades tradicionais remanescentes e originárias, que convivem com os reiterados e renovados despojos de um processo de colonização e espoliação interminável – muitas vezes compreendendo, paradoxalmente, os seus próprios governos como invasores e colonizadores tardios.
Apesar de ser premente o imperativo do desenvolvimento regional pelo estímulo à dinamização de cadeias produtivas de valor agregado, o desmonte da área de aproximadamente 4 milhões de hectares (mais de 2 milhões com potencial de exploração de ouro e metais preciosos como manganês e tântalo) que conhecíamos desde 1984 como Reserva Nacional do Cobre e Associados – a RENCA (à dir.)– é um ato do governo federal que merece nossa atenção e reflexão com vistas aos seus riscos temerários, ambiental e socialmente, para a região do Vale do Jari e Noroeste paraense. Não obstante se tratar de uma área fronteiriça, delicada e porosa, com frágil presença das agências estatais de securitização de um espaço estratégico para a interação da região Norte no linde amazônico-caribenho, a importante presença indígena dos Wãiapi, além do recorte importante em reservas como as FLOTAs Amapá e Paru, entre outras terras indígenas e a Resex Cajari, impõem um desafio (que aparentemente não é assumido pelo governo federal) com relação aos impactos demográficos e à preservação da biodiversidade e dos recursos hídricos.
Isto implica, em um panorama de curto prazo, na inviabilização das políticas indigenistas e no embotamento das necessárias demarcações das terras dos índios – quando não da sua redução -, acentuando drasticamente uma tendência histórica, na febre de um desenvolvimentismo acoplado ao extrativismo como matriz produtiva. O desprovimento estratégico de soberania tradicional, algo evidente, reitera uma vocação aparentemente passada na sociedade brasileira: a da dependência das commodities primárias em detrimento de um projeto técnico sustentável e renovável.
Se o governo federal sustenta o argumento de que os mecanismos de monitoramento e mitigação de riscos serão operacionais, os indícios da gestão Temer apontam para o oposto: por exemplo, a ‘reestruturação’ da Funai, em março deste ano, enfraquecendo sua estrutura gerencial, é evidência deste processo de marginalização da questão indígena e da preocupação com o equilíbrio social nas prioridades de cimeira do governo federal. A percepção sobre isto é quase unânime na sociedade: o governo Temer piora o que já era insuficiente, estrangulando a capacidade de inteligência em políticas públicas absolutamente específicas e minando o planejamento de regiões estratégicas de reserva nacional. Concomitante ao desmonte das agências estatais e iminente concessão ao capital internacional, significa um ataque desproporcional à soberania tradicional popular dos povos amazônicos e ao seu próprio direito ao desenvolvimento. Em um cenário de franca corrida pelo ouro na Amazônia, o resultado da soma de instrumentos de fiscalização esfacelados, de Universidades e Centros de Pesquisa sem recursos e da negociação por votos em balcão, pode significar um dano irreversível para o futuro.
Neste sentido, a desmontagem da RENCA por decreto – sem consulta popular, se de cima para baixo como posta – significa uma intervenção desordenada e glutona, sem planos de manejo ou reordenamento territorial.
Que catástrofes como a de Mariana e tantas outras não se repitam em plena floresta amazônica brasileira e internacional.
* Daniel Chaves é historiador, professor da Universidade Federal do Amapá, onde dirige o Núcleo de Inovação e Transferência de Tecnologia (NITT/Unifap), e leciona nos Mestrados em Desenvolvimento Regional (PPGMDR) e Estudos de Fronteira (PPGEF). Contato: daniel.chaves@unifap.br e daniel.s.chaves@gmail.com