SOBERANIA EM DEBATE

Quinta-feira, às 16h

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Resistências internas no governo


Os primeiros meses do governo Bolsonaro revelaram discrepâncias entre algumas intenções anunciadas pela área econômica e as medidas efetivamente tomadas para implementá-las. Para o professor de Ciência Política William Nozaki, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, a condução política e a gestão do programa baseado nas diretrizes ultraliberais do ministro da Economia, Paulo Guedes, “têm encontrado entraves que não permitem que ele seja levado adiante com a radicalidade que o governo imaginava”. O desencontro mais evidente foi a recente intervenção no reajuste do diesel, que provocou perda de R$ 32,4 bilhões no valor de mercado da Petrobras, mas há outros sinais. Pelo menos cinco ministros, segundo o professor, têm demonstrado internamente resistência a processos de privatização.

O ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, em vez de vender a Empresa Brasileira de Comunicação, preferiu reestruturá-la. O almirante Bento Albuquerque, das Minas Energia, ainda não tem claro se a Eletrobras deve ser vendida ou submetida à capitalização por meio de oferta da ações, nem se é conveniente entregar ao setor privado a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Tarcísio Gomes de Freitas, da Infra-Estrutura, já deu declarações exaltando a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), cujo fechamento chegou a ser cogitado pela equipe de Guedes. Na Agricultura, a ministra Tereza Cristina sinalizou ao governo pressões do agronegócio, contrário à venda da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Na Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, por sua vez, não estaria disposto a privatizar, entre outros órgãos, o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), responsável pela produção de medicamentos e chips para monitoramento de animais, outra área sensível ao agronegócio.

Os ruralistas, em especial, vivem numa dimensão dupla: de um lado, coadunam-se com a política de Paulo Guedes, que favorece a negociação de commodities; de outro, percebem que o fim da intervenção do Estado provoca muitos impasses no setor. Um deles diz respeito ao próprio custo da produção. Durante a Agrishow, em Ribeirão Preto (SP), no dia 29 de abril, Jair Bolsonaro produziu um solavanco nas ações do Banco do Brasil ao dirigir um apelo público ao presidente da estatal, Rubem Novaes, para que baixasse os juros do crédito rural: “eu apenas apelo para o seu coração, para o seu patriotismo, para que esses juros – tendo em vista você parecer um cristão de verdade – caiam um pouquinho mais. Tenho certeza que as nossas orações tocarão o seu coração”, afirmou.

Este intervencionismo metafísico, que agrada simultaneamente à base de eleitores evangélicos e aos produtores rurais, vai na direção oposta dos ideais liberais do ministro da Economia. E apareceu mais uma vez, no mesmo dia, quando Bolsonaro desautorizou o secretário da Receita, Marcos Cintra, que havia sugerido estender às igrejas a cobrança de um novo imposto a ser criado, em substituição à contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento. “Quero dizer que em nosso governo nenhum novo imposto será criado, em especial contra as igrejas”, afirmou o presidente em vídeo nas redes sociais.

William Nozaki – Foto: Reprodução/site Ceert.org

“O programa ultraliberal de Paulo Guedes finaliza o desmonte do arranjo institucional que possibilitou a modernização e a urbanização do Brasil”, diz Nozaki. “O conjunto do governo se alinhava na mesma perspectiva, mas ao lidar com os problemas, as contradições, foi se explicitando a dificuldade de levar adiante esse projeto de cunho ideológico. Mesmo alguns ministros que pareciam convergir mais intensamente, no calor das execuções concretas têm começado a demonstrar resistência.”

Correios e Petrobras
Apesar disso, em entrevista recente à GloboNews, no dia 18 de abril, Paulo Guedes anunciou a expansão do projeto de privatização: “há empresas que vão ser privatizadas que vocês nem suspeitam ainda”, declarou. O mercado cravou os Correios como o alvo do ministro.

Para o professor Nozaki pode estar em curso um processo de ampliação da lista das estatais a serem vendidas, mas em certa medida para agradar o mercado, assustado com o recuo da Petrobras no preço do diesel devido às ameaças de greve dos caminhoneiros. “Depois do enrosco com a política de preços da Petrobras, o ministro intensificou o discurso de venda de empresas públicas, o que pode ter o objetivo de acalmar o mercado e reverter as perdas”, avalia.

Se realizada de fato, a privatização dos Correios teria impacto social violento, alerta o professor. Das estatais que constam da lista de privatizáveis, é uma das empresas que mais empregam. “A venda pode produzir como efeito colateral a ‘uberização’ dos carteiros, ou seja, intensificação da precarização do mercado de trabalho, um impacto muito negativo.”

A cereja do bolo, contudo, é mesmo a Petrobras, ressalta o professor. Ele acredita que o governo vá manter a paridade internacional na política de preços de combustíveis, que significa também a ligação direta entre o mercado financeiro e a bomba do posto, e assegurar as vendas das refinarias. O plano de negócios da Petrobras prevê a venda de oito das 13 refinarias do parque nacional. Anunciada ainda no governo de Michel Temer, essa diretriz, no entanto, ainda não foi concluída.

“A política de preços vai continuar provocando instabilidade periodicamente, aumento no frete, pressões regulares dos caminhoneiros, porque o país está todo organizado sobre o sistema rodoviário”, diz. “Pelo que sinalizou o governo, a reação será aos soluços, sem mudar o elemento estrutural da política de preços, que não pode ser alterada porque veio acompanhada da redução da capacidade de refino no país e a abertura deste mercado às importadoras.”

Neste mês de abril, foi firmado o contrato de venda, por US$ 8,6 bilhões, da Transportadora Associada de Gás, maior ativo do plano de desinvestimento da Petrobras. “Essa operação deve se concretizar de fato, mas, embora anunciada como já encerrada, operacionalmente ainda não o foi. Faltam pareceres do Cade, há processos travados no TCU, etc.” Segundo Nozaki, muita coisa apresentada pelo governo como feita, na realidade está apenas em processo.

Eletrobras e Eletronuclear

Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, Angra dos Reis (RJ) – Foto: site Eletronuclear

O governo também enfrenta dificuldades para acabar com o Sistema Eletrobras, construído de forma integrada, articulando geração, distribuição, interfaces dinâmicas com as hidrelétricas. “Desmontar parte desse complexo envolve atores externos e múltiplos operadores”, observa Nozaki. “Vão deixar o sistema muito mais difícil de ser regulado, fiscalizado, e o resultado pode ser encarecimento, perda de qualidade e de possibilidade de ampliação.”

Dentro do Ministério das Minas e Energia, segundo o professor, não há consenso sobre a organização do modelo de venda da Eletrobras e pairam outras disputas de interesse, relativas à Eletronuclear. “O Paulo Guedes quer vender todo o complexo da Eletrobras, mas o Bento Albuquerque aceitaria a capitalização da empresa, com entrada de outros players, sem perder o controle e sem vender os ativos.” Além disso, diz o professor, “há uma questão política que está posta silenciosamente na mesa – o programa nuclear (e a Eletronuclear) está no centro da agenda do ministro da área, que me parece estar usando o processo da Eletrobras para fazê-lo avançar. A queda de braço com o Paulo Guedes passa pela definição de como vai se dar a política nuclear.”

Reforma da Previdência
Ao lado da privatização, o outro eixo importante da política econômica do governo Bolsonaro é a reforma da Previdência. Para o professor Nozaki, não existe nenhuma experiência histórica concreta que indique relação direta entre a mudança no sistema previdenciário, retomada do investimento e crescimento econômico. “O debate público foi colocado nestes termos, mas do ponto de vista econômico não existe essa relação causal.”

Segundo ele, há uma expectativa de que a reforma proposta pelo Paulo Guedes produza a abertura de um novo e grande mercado para o sistema bancário, de modo que as instituições financeiras possam ampliar os fundos de financiamento, canalizados então para a realização do investimento. “São suposições improváveis de serem concretizadas”, diz Nozaki. “Se a reforma for aprovada tal como está, mesmo com as objeções apontadas já pelos parlamentares, não melhoram as condições de financiamento de longo de prazo, tampouco de investimento. Não está claro de onde viria este investimento. Mesmo no setor produtivo, as empresas têm olhado os balanços mais preocupadas com os ganhos financeiros do que com os operacionais. A prioridade continua sendo a lógica corporativa orientada à majoração do valor acionário.”

Ainda assim, ele não descarta a possibilidade, a médio prazo, com o aprofundamento da crise, de uma fração do capital nacional perceber que a privatização radical pode lhe causar problemas. Principalmente em segmentos ligados ao fornecimento de máquinas e equipamentos das estatais, como a indústria naval ou a construção civil. “Esses setores fizeram uma aposta em torno das reformas estruturais, trabalhista e previdenciária, e estão esperando o desdobramento desse capitulo para reorganizar suas cadeias produtivas.”

Militares e espaço de poder
Há no governo federal uma voracidade no desmonte, sem que exista uma proposta do que colocar no lugar, afirma Nozaki: “A mera abertura do mercado não vai resolver os problemas, desconsiderando setores estratégicos para a infraestrutura e a soberania nacional.”

O professor também adverte que as resistências internas às medidas ultraliberais não significam mudança na diretriz privatista. “Está em curso um processo muito dramático de desmonte. Mas ele não tem acontecido com a fluidez e a celeridade que o governo sinaliza. O conjunto das empresas públicas tem um peso fundamental para o capital privado nacional e internacional. Desmontar isso não é simples.”

Embora a maior parte dos ministros que oferecem alguma resistência à privatização seja de origem militar, não se trata, na opinião de Nozaki, de um indício de nacionalismo. Traduz mais uma atitude corporativista de manutenção do espaço e do poder que os militares foram assumindo no governo. O ministro Marcos Pontes, tenente-coronel da Força Aérea Brasileira, por exemplo, temeria que a venda generalizada das instituições e empresas vinculadas ao MCT esvazie a pasta e, com isso, seu próprio campo de influência.

“Existe uma visão hegemônica nas Forças Armadas que não contempla a antiga lógica de defesa da industrialização e do parque tecnológico nacional”, explica Nozaki. “Uma parte desses militares se formou em cursos de gestão com viés liberal, e eles se veem como bons gestores subutilizados pelo Estado. Têm uma perspectiva neoliberal e o desejo de mostrar eficiência, até para significar o papel das Forças Armadas na relação com o governo. Não passa pelo crivo do nacionalismo.”