Chico Teixeira*
Quero contar uma história para vocês. Uma história do tempo da Ditadura Civil-Militar no Brasil, essa mesma que alguns dizem que não houve – porque não a viveram ou porque a viveram “do outro lado da barricada” ou, ainda, porque estavam na janela vendo a banda passar… Peço licença, posto ser uma história pessoal, uma memória, quase um depoimento – embora essa palavra – “depoimento” – ainda me cause arrepios.
Procurarei a veracidade, não exatamente a verdade, posto que a maioria dos personagens desta história tenham até hoje suas identidades ocultas, mantidas no anonimato por trás de nomes falsos, capuzes e máscaras. Portanto, será um esforço de Micro-História, quando um fragmento da história – no tempo e no espaço – lança luz sobre um período mais vasto da história. Como eu tive/tenho toda minha história abusivamente varada pela curiosidade de pessoas ocultas que seguiam, vigiavam, perscrutavam, descreviam, etiquetavam e anotavam a vida que eu vivia, creio que posso, também, seguindo o historiador francês Maurice Agulhon, considerar um pequeno exercício de egohistória.
Como bom historiador apresentarei dois indícios documentais, que sirvam de fontes, transpondo o leitor para o mundo em que o documento-base para a egohistória foi escrito. O primeiro é uma página do meu dossiê policial no Departamento de Polícia Politica e Social do Rio de Janeiro (DPPS/RJ). O outro, uma foto. Assim, com alguns “indícios”, pouparei o leitor do conjunto do processo. Como no arranjo metodológico do paradigma indiciário, e com os dados da época, restará o desafio de recompor “…a trajetória de um terrorista, que em clima de Guerra Fria, apoiado por potências estrangeiras, financiado por tais potências, visava implantar o totalitarismo entre nós”. Claro, num “jogo de escalas”, o “ego” e o “micro” devem, necessariamente, revelar os traços fundamentais da Micro-História, confirmando e – importante – negando as hipóteses iniciais aventadas, como a citada acima.
Eis o fazer a História.
Para isso, em termos documentais veremos o que o alcaguete via na época: a “Seção de Buscas” disparava um alarme para me localizar. Já era um velho conhecido “da casa”. Primeira prisão, 1973. Troca burocrática de informações. Moradia. Emprego. Filiação – natural e política. Aí começam os tropeços. Pouco, muito pouco. O esbirro, cão sabujo, lambe botas conseguira muito pouco: professor, Colégio GPI, Turma 52, 19:00 hs – Já passei e repassei essa turma inúmeras vezes em minha mente tentando lembrar quem seria o esbirro, o dedo-duro… Mas para mim eram todos alunos, só alunos normais e amigos!
Só isso? Poxa, poderia dizer que chegava no GPI num ônibus superlotado, em pé, depois de percorrer o Rio dando aulas, sem tempo para uma refeição decente. Tivera uma grave doença pulmonar, tinha 1,83m de altura e pesava 54 quilos. Não, nada disso estava na ficha policial. Creio que o sabujo não considerou relevante. Tinha minha foto no dossiê, roubado da documentação do GPI – fora avisado pelo leal e amigo Pedrinho Amaral, que ficara até tarde no colégio e vira a chegada “dos home”.
O retrato era uma prova cabal numa polícia lombrosiana. Só poderia ser um terrorista, não dá outra. Mas poderia, o esbirro faminto, ter notado que eu citava Sartre e Camus, Dostoievski e Tolstoi, muito mais do Bakhunin, Popov ou Kroptkin! Mas poderia ter anotado lá que eu fazia mestrado na USP e fora ver no Sesc o Antunes Filho montar “Macunaíma”. Esse eterno brasileiro a assombrar os brasileiros. Eu também vira, em 1968, José Celso Martinez criar o seu “Rei da Vela”, no João Caetano, tão docemente pornográfico. Ah, Henriqueta Brieba! Como? Não serve! Já está na ficha… sei… sei… foi da prisão anterior. Talquêi! É que eu acho importante! Bom, deixa eu ver… Em 1978, eu ouvia Caetano cantando “Sampa”, Milton, “Maria, Maria”, e eu queria mesmo era Bob Marley em “Jammin”! Mas, ok, se isso estiver muito chato para sua ficha e houver espaços em branco taca aí Black Sabbath – a “bolacha” não era minha, era emprestada, vivia na minha casa!
Nada disso estava na minha ficha. Apenas um breve registro de que eu era assinante de “Movimento”, um jornalzinho da imprensa nanica. Podia ter comprado na banca. Mas houve aquela campanha para ajudar os companheiros. Burrice. Como não imaginar que era dar nome e endereço para a repressão? Well, de qualquer forma já estava feito. Não tinha “Atestado de Ideologia” – eu não era “ideologicamente” aceitável para o Estado brasileiro. O DOPS não expedia um atestado que atestava que eu era atestadamente “limpo” para trabalhar para o Estado (acho que não deveria lembrar muito isso não para não dar ideia para maluco!). Assim, não poderia trabalhar em nenhum serviço público.
Dava aula então em cursinhos, muitas aulas, 40 aulas por semana, e reforço aos domingos. Rio, todas as quebradas, Nova Iguaçu e Caxias, de noite. Olhando de lado, desviando das sombras mais longas, confiando nos grupos de solidariedade até os terminais de ônibus. Materialidade dos sequestros. Os desaparecidos. Os mortos sem Nome. Sem Rosto. Sem Certidão.
Minha casa foi invadida. Tudo revirado e destruído. Aviso. Qual acusação?
O ouro de Moscou? Ou a divisa do Exército Vermelho? O treinamento na brigada cubana?
A vigilância faz os seus próprios suspeitos.
O sabujo, esbirro, cão de fila treinado para achar o inexistente continuava em sua busca. Havia sempre o método para inventar a culpa. Lá no passado a lembrança: “Como você interpreta a canção ‘Pedro Pedreiro’?” Depois de tudo. O tudo depois. O tudo. O depois. Um jovem militar perguntar a um garoto de 18 anos o que ele achava de uma canção de Chico Buarque de Hollanda? Era mergulhar num quadro de Salvador Dalí, daqueles em que as paredes derretem e o chão corre para o ralo. Minhas pernas doíam, esse era o único traço de realidade naquela sala. Depois perguntou quem eram “meus amigos”. E eu me calei.
Não, nada havia na minha ficha. Branco imaculado, que nenhum sabujo havia sujado com patas e tintas. Poderia ter escrito lá, no canto esquerdo inferior, que eu estivera uma semana inteira imerso no MAM vendo o Festival de Cinema de Oberhausen. Polanski. Antonioni. Fellini. Não, ele não disse. Poderia dizer, sim, isso: que eu fora preso no Cinema Rian durante a exibição de Woodstock, em 1969. Ah, já estava lá… Essa é velha! Sei… Bem, poderia dizer que fui eleito presidente do primeiro D.A. da UFRJ depois do A.I., em 1974. Ah, foi por isso a “conversa”, mui amiga, quando eu tinha 18 anos…
Bom, assim fica difícil. E lá está o sabujo, esbirro, cão de fila, lambe-botas, obrigado a assistir cinco aulas de História. C-I-N-C-O , PORRA, cinco aulas de 50 minutos cada! E o cara não cala a PORRA da boca. Não é como outras disciplinas, que tem exercício no quadro, o cara FALA, FALA e FALA, parece que tem bateria nova, está entusiasmado! Não sei como pode! Falar tanto de História com entusiasmo. Deve ser isso! História é a subversão, deve ser algo criptocomunista, como dizem lá no curso de “Como ser espião em três horas de curso”, ele deve estar passando uma mensagem, como se diz, su-bli-mi-nar! Só não sei qual!
Mas é isso! História é altamente subversiva, mostra para esses Zé ninguéns por que os Zé são ninguéns! Feliz, o esbirro anota na ficha: “o reportado ministra com certa euforia a matéria tanto História Moderna e Contemporânea (sic!)”. Fecha seu caderno despistador com as fichas policiais dentro e vai para o ponto do Triagem-Leme para o descanso necessário e com a consciência de ter desbaratado mais uma ardilosa conspiração comunista. Para mim as consequências foram mais agravantes, recrudescimento das perseguições, perda de empregos e ameaças. Mas, sem dúvida, a democracia saiu fortalecida.
*Francisco Teixeira é professor titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ, coordenador do Movimento SOS Brasil Soberano e escritor. Prêmio Jabuti 2014.