Soberania: como eu aprendi

""Francisco Carlos Teixeira da Silva*

[dropcap]O[/dropcap]conceito de soberania entra de forma definitiva na história com os estudos de Jean Bodin (1530-1596) e a emergência das monarquias absolutas modernas, muitas delas já com contornos de um Estado Nacional, à época do Renascimento. Meus primeiros estudos do tema foram no IFCS sob a ditadura. Eram leituras eruditas, bastante clássicas, numa ilha de democracia nas manhãs do IFCS dominado pelo obscurantismo de Eremildo Vianna, proporcionadas por um professor digno e competente. Isso por volta do segundo semestre de 1974. O Professor – com letra maiúscula mesmo – era Fernando Sgarbi Lima, que ministrava o curso de História Moderna, com uma bibliografia atual, então, e com uma relação aberta e democrática com os alunos, tão diferente da maioria dos comandados por Eremildo Vianna, que tornar-se-ia personagem de cômico de Elio Gaspari. Estudávamos, então, a relação entre Maquiavel, Bodin, e depois Hobbes, com a construção do Estado Moderno. Era estimulante e rico.

As aulas de Fernando Sgarbi me acompanharam por toda a vida, incluindo, no futuro, as aulas que ministraria, em Ciência Política, Sociologia Politica e Relações Internacionais.

No entanto, um pouco mais tarde, tive a “vivência”, intensa, da noção de soberania, para além do seu debate. Enquanto apreendi – e para sempre usei e ensinei, e continuo a ensinar -, a relação do conceito de soberania com a construção do Estado Moderno (representado pela figura do Príncipe ou da Vontade do Povo) autônomo e que não reconhece instância superior no interior de suas fronteiras ), frequentei, em 1976, um amplo seminário realizado no então Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrário (no Horto Florestal), com notáveis cientistas sociais brasileiros. Lá estavam todos os “deslocados”, “retornados”, e expulsos” das grandes universidades. Isso me colocava face a face com outros entendimentos da noção de soberania. Naquele dezembro quente e úmido, na Floresta da Tijuca, Octavio Ianni, Maria Yedda Linhares, Marcelo Tractenberg, Alice Cannabrava, Eulália Lobo, Nelson Delgado, Francisco Falcon, Bárbara Levy, e outros tantos, discutiam a limitação da soberania, e, portanto o seu contrário, a sujeição e a dominação, pela ampliação de uma realidade conceitual e material nova: o neo-colonialismo.

No pós-Segunda Guerra Mundial e, principalmente no/e durante o período de Descolonização (entre 1950 e 1975) criava-se uma nova situação histórica: as velhas potências coloniais, atingidas pela guerra, decadentes e divididas internamente, tinham sido (e estavam sendo) obrigadas a aceitar a libertação dos povos coloniais. Uns de forma mais ou menos pacífica, como a Índia, outros em terríveis guerras coloniais, como o Vietnã e a Argélia. Desse processo, dito “de Descolonização” surgiriam mais de cem novas nações no mundo. Todas dotadas, aparentemente, de “soberania” própria. Contudo, as antigas potências coloniais, não viam desta forma. Através de mecanismos comerciais, financeiros, uso de empresas controladoras de recursos naturais e mecanismos monopolistas de comercialização de distribuição do comércio exterior, mantinham as novas nações aparentemente “livres”, numa condição “neocolonial”, limitando e controlando a soberania dos povos que emergiam de séculos de dominação colonial. No âmbito global, as velhas potências recebiam apoio e ajuda, como no Vietnã e Angola, pelo “Imperium” maior.

O “Imperium” não reconhecia as fronteiras das demais soberanias.

Embora surgissem nações politicamente “soberanas”, o poder econômico e financeiro das antigas (e novas) metrópoles se impunha ao ponto de limitar e, mesmo, suprimir a soberania pela qual seus povos tanto lutaram. Os exemplos históricos se sucediam: no Irã em 1953; Guatemala, 1954; no Congo, em 1965 entre tantos outros tantos… Assim, a soberania, que havia sido a regra desde o debate originado em Bodin em “Os Seis Livros da República”, de 1576, e aceitos internacionalmente nos Tratados de Paz de Vestfália de 1648, não valiam para as novas nações emergentes na segunda metade do século XX, que sucumbiam em face do poder econômico e financeiro das grandes potencias.

O Imperialismo e o neocolonialismo limitavam a soberania e impunham sobre os demais Estados o seu “Imperium”. Emergia, assim, um novo conceito de “Império” – não era necessário o caro apara

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to de dominação direta e ocupação física de uma nação, bastava o controle financeiro e econômico.

Mais tarde, em 1991, quando comecei a trabalhar diretamente com Darcy Ribeiro (e, claro, com Maria Yedda Linhares) no segundo governo Leonel Brizola, em 1991, estendia-me várias vezes em conversas – na verdade em bons monólogos com Darcy – no quais este advertia em borbotões de exemplos: a soberania só se dá com a vivência da cultura de um povo. Outras vezes, quase sempre nas sextas-feiras, ao fim da tarde, o Engenheiro Leonel de Moura Brizola, nos chamava no Anexo do Palácio Guanabara, e travava longos debates sobre os “termos desiguais das trocas mundiais”, sobre a imposição da “cultura medíocre e enlatada pelo monopólio de comunicação” e nos incentivava a trabalhar na direção das tradições populares, no incentivo das manifestações populares, da cultura popular, das raízes negras e indígenas, e a dar chance aos jovens em manifestarem suas capacidades e talentos artísticos.

Darcy, por sua vez, insistia sempre na cultura como mescla, um mix, que seria o suporte da soberania. Sempre perguntava quais os dez livros mais importantes para a língua portuguesa; quais as dez canções mais representativas ou quais os maiores artistas plásticos do Brasil. Amava Portinari, Djanira, Graciliano Ramos, a arte plumária indígena, Mestre Vitalino e o samba no pé das mulatas. Ah, as mulatas de Di Cavalcanti! Destacava a mescla étnica e cultural e acreditava no Brasil moreno, mulato, negro, branco, antropofágico e pregava que sem uma cultura que fale a voz do povo nenhuma nação seria soberana.

<blockquote>Ou seja, a soberania reside na expressão cultural espontânea do povo."</blockquote>

Isso eu apreendi com Darcy, com Yedda Linhares e Brizola!

*Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, professor  Emérito da ECEME, professor do CPDA/UFRRJ. Coordena o Simpósio SOS Brasil Soberano.

[Artigo publicado no site da Associação Nacional de História – Seção Rio de Janeiro (Anpuh-RJ)]

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