A Medida Provisória de Temer que institui uma Agência Brasileira de Museus (Abram) ligada ao Sistema S acaba com a Política Nacional de Museus e privatiza os museus federais, tirando ainda da UFRJ o Museu Nacional e o projeto de sua recuperação. O alerta é de José do Nascimento, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibran) – órgão extinto pela MP. “Daqui a pouco vão vender a coroa de Dom Pedro, as obras de Portinari… É uma apropriação cultural do capital e uma visão colonialista sem precedentes, o privado valendo bem mais que o público”, afirmou ao site da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ). A medida também é ilegal, na avaliação, entre outros, de Guilherme Afif Domingues, presidente do Sebrae – instituição que, pela MP, perderia 6% dos seus recursos para a nova Abram. Ele anunciou que entrará com mandado de segurança e com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal contra a medida.
“Não somos contra a busca de soluções para os problemas dos museus, mas tem que ter mais gente envolvida. Podemos cooperar, mas pagar sozinhos está conta é desvio de finalidade”, explicou Afif, informando que o recurso deve ser apresentado até esta quinta-feira (13) no Supremo. Ele vai buscar apoio de outras entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI).
A historiadora e representante da Anpuh (Associação Nacional dos Professores Universitários de História) no Conselho Nacional de Arquivos, Beatriz Kushnir, destaca o caráter autoritário da medida. “É muito estranho, no mínimo, a 25 dias de uma eleição, o Ministério da Cultura desmontar todo um sistema calcado no Ibram, imputando responsabilidades fiscais para um novo governo, que não sabemos se vai compactuar com a medida.”
Ela observa que a A MP precisa ser levada à Câmara em 120 dias, mas, em função das eleições, o Congresso não poderá votar nada. Depois, se o fizer, não será com os parlamentares que assumirão em 2019, ou seja, deixando a responsabilidade pelo desmonte do setor para o apagar das luzes da legislatura. Na prática, diz a historiadora, a insegurança jurídica gerada pela existência da MP impede que comecem logo os trabalhos de recuperação dos estragos feitos pelo incêndio no Museu Nacional.
“A criação da Abram é para privatizar os museus brasileiros. É entregar os museus para as Organizações Sociais (OS), privatizando a memória, a Cultura, a nossa identidade”, resume José do Nascimento. Para ele, o importante, agora, é mobilizar o setor museológico para resistir e comprometer candidatos a deputados federais, governadores, senadores e o próximo presidente da República a barrar a MP.
A proposta do governo, que tem o apoio do ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, não encontra paralelo em nenhum país do mundo, diz Nascimento. “O Museu do Louvre, na França, jamais seria controlado por uma OS. Os governos investem porque os museus têm papel estratégico na construção do conhecimento, da ciência, da pesquisa. Não há projeto de nação sem a cultura ser estratégica. Você não vê, por exemplo, uma China privatizando seus museus ou patrimônio cultural.”
Beatriz Kushnir também critica a transferência da gestão dos museus para OSs. “Quem vai pautar quais acervos devem ser restaurados não é mais o ente público, mas as instituições privadas. O recurso envolve renúncia fiscal, não é dinheiro novo. É o mercado que vai dizer que patrimônios públicos deverão receber o dinheiro.”
Os bancos, sempre eles
O modelo do governo Temer para os museus não apenas privatiza, mas internacionaliza as bases da cultura e da ciência no país. A Medida Provisória 850/18, que criou a Abram dentro do Sistema S, veio acompanhada de outra, a MP 851/2018, que trata do funcionamento dos Fundos Patrimoniais destinados a gerar recursos para um conjunto amplo de ações, que vão desde museus até programas de educação, ciência, tecnologia, saúde, meio ambiente, desporto, assistência social. Além de uma organização gestora – bancos, por exemplo –, a MP prevê a figura da organização executora – a fundação de um banco, por exemplo –, responsável pela decisão de onde e como aplicar os recursos nas instituições atendidas, como os museus, e que poderá ser inclusive uma entidade estrangeira.
“Os diretores dos museus federais fizeram um concurso, apresentando um programa de trabalho para assumirem por quatro anos, renováveis por mais quatro”, explica a historiadora. “Como essas pessoas e aqueles projetos aprovados vão se encaixar nesse modelo?”
Beatriz Kushnir ressalta, ainda, a tendência de banqueiros e instituições financeiras fazerem de obras de arte um novo tipo de pecúlio. Cita, por exemplo, o caso do Banco Português de Negócios (BNP), falido e nacionalizado em 2008. Os administradores dos ativos do banco tentaram vender sua coleção com 85 obras de Joan Miró para a casa de leilões inglesa Christie’s. É a maior coleção privada de quadros do pintor catalão, avaliada em 54,4 milhões de euros. Uma ação judicial obrigou a revogação do contrato. E os quadros de Miró ficaram em Portugal.
“Não sei se o governo brasileiro teria essa disposição”, pondera a historiadora. “Em que bases uma instituição privada internacional vai querer colocar dinheiro em patrimônio? Vai vender cotas, direitos da peça? Teremos um acervo oco?” Os diretores que respondem pelos museus públicos, destaca, têm um papel transitório, com a missão de fazer com que aquele bem público tenha a melhor sobrevivência possível. Uma finalidade sem conflito de interesse nem visando o lucro, mas com base em uma política pública e nacional de preservação.
As MPs são, contudo, coerentes com o conjunto da agenda do golpe de 2016 que, desde o início investe na desnacionalização do patrimônio. “Se lembrarmos o início do Governo Temer, houve uma tentativa de extinção do próprio Ministério da Cultura, tentando encerrar um poderoso instrumento de preservação da nossa identidade”, afirma José do Nascimento. “Mas graças às forças de mobilização cultural, como o Ocupa MinC, entre outros, isso foi revertido. Daí você tira a relação com a cultura que tem esse governo. Se aproveita do momento do incêndio do Museu Nacional para retomar a prática mercadológica na Cultura, de extinguir instrumentos públicos, como é o Ibram, para [instituir] a gerência privada dos museus brasileiros.”
A aplicação nos fundos, segundo a MP, pode, ainda, servir para atender a obrigações legais de empresas que têm incentivos fiscais mediante contrapartidas em investimentos em ciência e tecnologia, inclusive as de grande porte. De acordo com dados do Sebrae, os 6% remanejados do seu orçamento para a Abram vão cortar 608 mil atendimentos feitos a projetos de pequenos e médios negócios, o equivalente ao destinado ao Norte do país. Os recursos do Sebrae são gerados pelas Contribuições de Domínio Econômico (Cide), que, segundo Afif, não prevê no seu fundamento investimentos em museus.
O governo estima que o remanejamento resulte em um orçamento de R$ 200 milhões para a Abram. Mas só a Folha de Pagamento do Ibram, cujos funcionários serão distribuídos por órgãos federais, é da ordem de R$ 80 milhões, diz Beatriz Kushnir. “É tirar de um lado para cobrir outro. Não é dinheiro novo.”
“Tem uma guerra ainda a ser feita”, convocou José do Nascimento, na entrevista ao Dois dedos de prosa. “É preciso derrubar a Medida Provisória no Parlamento. A MP tem várias inconstitucionalidades. Precisamos nos unir para questionar no STF.”
Para conferir a íntegra das Medidas Provisórias:
Para a entrevista completa com José do Nascimento, ex-presidente do Ibram:
http://sigajandira.com/2-dedos-de-prosa-jose-do-nascimento-e-o-fim-do-ibram/