Procuradores, juízes e policiais se associam em práticas fascistas no país, diz desembargador

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“Afirmo categoricamente que parte da magistratura, do Ministério Público e da polícia, especialmente na Polícia Federal, vem executando uma prática fascista no Brasil”. A denúncia foi feita pelo desembargador catarinense Lédio Rosa de Andrade, na noite da última sexta-feira (27), em apresentação que comoveu o auditório lotado do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da UFRJ. Ele participou do ato unificado por “democracia, soberania e desenvolvimento”, promovido pela Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo e pelo Projeto Brasil Nação, com a presença, entre outros, do embaixador e ex-ministro Celso Amorim, e da liderança da Marcha Mundial das Mulheres, Nalu Faria (leia aqui).

Há 35 anos desembargador, Lédio de Andrade descreveu com detalhes a recente detenção ilegal e tortura do reitor da Universidade Federal de Santa Cataria (UFSC), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, na Operação Ouvidos Moucos, que culminou na sua morte, atirando-se do alto de um shopping center em Florianópolis. “Dizemos em Santa Catarina que ele foi suicidado”, afirmou o desembargador, para quem “esta morte está muito próxima de um assassinato”, “parte de um ritual macabro”.

“Como ato de resistência, como último ato político, Cau [apelido de infância do reitor], como combatente, homem que nunca temeu a morte, quando se viu pego pelo terrorismo de Estado, uma prática fascista que aumenta assustadoramente em nosso país, ele viu que qualquer outro tipo de defesa num Estado Democrático de Direito, no caso do Brasil, era inócuo, e ele já estava destruído.” Essas facções fascistas apontadas pelo desembargador uniram-se, diz ele, para destruir o Estado Democrático de Direito, assim como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – “caladamente, ninguém se dá conta” – vem destruindo os direitos sociais de forma latente, para atender interesses do sistema financeiro. E, embora acredite que ainda há tempo “de pararmos essa gente”, Lédio Andrade faz uma previsão grave: “se eles tomarem o poder, só a guerra, não tem outra solução”.

A atuação conjunta da polícia, do MP e da magistratura ultrapassa, na sua opinião, a violência do macarthismo, com parte de seus quadros “mancomunados e prostituídos”, nas palavras do desembargador. Além de serem instituições que precisariam estar separadas, inclusive exercendo controle uma sobre as outras, seus integrantes têm condições especiais que acabam por proteger o uso abusivo do poder. Contam com garantias constitucionais de não redutibilidade de salário, de inamobilidade e de não perder o emprego. “Com essas garantias, quando se parte para a barbaridade, é muito mais difícil de se combater”, reconhece Lédio. “Porque essas garantias me fazem viver e fazer da minha profissão – que o Estado me deu – o que eu bem entender. Retorno à lei pessoal, substituindo a Lei Geral, como condutora da sociedade.”

Todos os juízes de Santa Catarina que passaram nos concursos dos últimos oito anos foram alunos do desembargador no curso de Ética, dado no Direito da UFSC. E o professor observou, em muitos deles, o que chama de substituição de valores. “O valor democracia já não vale mais nada, se é que um dia valeu. Não é uma aspiração da magistratura”, diz, fazendo as ressalvas de praxe para evitar a generalização. Mas o fato é que, a partir de Pinochet, no Chile, Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos EUA, e da nova forma liberal de gerir a vida no planeta, ele aponta como uma das consequências a politização do Judiciário ou a judicialização da política.

“Esse sistema neoliberal não gosta da política no parlamento; na rua, muito menos. E o Poder Judiciário se apresenta como mais confiável para que as questões políticas sejam resolvidas. Isso vem galopando, crescendo, no Brasil.” Outro aspecto, na avaliação do desembargador, é a exacerbação da cultura do espetáculo. “O desejo de estrelato, o ego incontido, faz com que o poder seja utilizado para se conseguir fama a qualquer custo”, analisa. Somados, diz, esses dois movimentos vêm patrocinando o fascismo no país.

Os dias de infâmia na UFSC

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No caso de Santa Catarina, a Operação Ouvidos Moucos atingiu o reitor e mais seis professores, detidos em condução coercitiva (os professores) e prisão provisória (Cancellier), a pedido da delegada da PF Erika Mialik Marena, e concedidas pela juíza Janaina Cassol Machado, da 1ª Vara Criminal da Justiça Federal de SC, em Florianópolis.Também foram autorizados pedidos de busca e apreensão, e proibido o reitor de ir à universidade.

Cancellier foi acusado de estar obstruindo a Justiça, por ter solicitado acesso (“avocado” no termo jurídico) a um processo administrativo que investiga suspeitas de desvios em gestão anterior à sua, do programa Universidade Aberta do Brasil, que financia formação de professores à distância, com bolsas da Fundação Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). As prisões e as buscas foram realizadas no dia 14 de setembro. No dia 2 de outubro, o reitor se jogou do 6º andar do shopping.

Abaixo, transcrevemos a descrição impressionante feita pelo desembargador Lédio Rosa de Andrade da ação truculenta e de cada um dos seus erros jurídicos.

1. A condução coercitiva dos professores

“Comecemos com a condução coercitiva: o que diz a normal legal, que autoriza um juiz, excepcionalmente, a prender alguém desta forma? Está no Código de Processo Penal: quando o réu, intimado, deixar de comparecer ou dificultar o comparecimento em juízo. O que aconteceu? Havia um processo administrativo dentro da universidade – da qual o Cancellier era reitor – que apurava possível desvio de bolsas de estudos no programa Universidade Aberta, que é de ensino a distância. Só isso.

“Pois bem, a polícia pede a prisão dele (o reitor) e de outros seis professores. Ninguém sabia. Nem ele nem os seis, da existência do processo, portanto não foram intimados. Alguém – não se sabe quem –, num processo de absoluto segredo de Justiça, logo, só o juiz que decretou a prisão provisória e a condução coercitiva sabia –, alguém avisa a imprensa. O reitor e os seis outros professores não sabiam. Réu intimado não comparece. Os professores não sabiam nem que existia processo, nem que havia data para interrogatório… a imprensa sabia de tudo. E às 6h30 da manhã, todos eles ouviram o barulho do lado de fora da casa, foram ver o que era e se depararam com os canos da televisão e das armas.”

2. A prisão do reitor

“A prisão do reitor não foi condução coercitiva; foi prisão provisória. Mais uma vez, o que diz a lei? Há três requisitos no artigo 1º da lei para prender provisoriamente uma pessoa: inciso 1º, do artigo 1º, quando a prisão for imprescindível; incivo 2, quando a pessoa não é conhecida ou dificulta sua identificação (o reitor era conhecido de todo mundo e tinha residência fixa, ao lado da universidade); o inciso 3 dá uma série de crimes em que se autoriza a prisão, todos graves, dos quais o reitor nunca nem de leve passou perto.

“A polícia pede, o MP concorda, a juíza decreta a prisão provisória dele. E ele não sabia nem que tinha um inquérito. Não é acusado de crime nenhum, não é acusado de desviar um centavo. O único crime que se aventa é que ele estaria obstruindo o inquérito administrativo da universidade, da qual era reitor, e poderia avocar o processo, como fez, para esclarecer a CAPES. Avocou [chamou a si, para analísá-lo] o processo porque o corregedor era politicamente contra ele e não o estava deixando saber o que estava acontecendo. Avocou o processo para ter conhecimento dele. E essa avocação do processo o leva ao cárcere.

“Ele fica depondo por quase cinco horas, é algemado nos braços, acorrentado nos pés. A súmula 11, vinculante, do Supremo Tribunal Federal, diz que ninguém pode ser algemado, salvo se opuser resistência e apresentar perigo. Pois algemado, foi levado à penitenciária, quando a lei diz que preso provisório não pode ser envolvido com outros réus. E lhe tiram a roupa e lhe examinam o pênis, o ânus, e lhe põem o uniforme e lhe levam para a penitenciária, no setor de segurança máxima. E ali ele passsa um dia. Depois, troca de juíza e a outra, de bom senso, o solta. Então vejam: para que serve o Parlamento? Isso não é erro, é má-fé, é dolo, é intenção. É isso que está acontencendo no Brasil. Isso é fascismo. Não existe outro nome.”

Para concluir, o desembargador alertou: “nós temos que pará-los. A hora é essa, para que não tenhamos que lutar de novo.”

 

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