Pobreza e individualismo vão destruir as bases democráticas do país

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A crise brasileira não é só econômica; atinge também os campos político e social, e pode produzir rupturas perigosas para o equilíbrio da sociedade – especialmente, quando a população se der conta do tamanho do empobrecimento e da degradação da qualidade de vida a que está sendo submetida. O alerta é do economista Nilson Maciel de Paula, professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR), durante o “Soberania em Debate”, evento realizado no último dia 13 de julho pelo Sindicato de Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro e do Paraná (Senge-RJ e Senge-PR) e pela Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), em Curitiba (PR). De Paula defende um projeto de desenvolvimento para o país, com inserção global, referendado por uma sociedade democrática e com direitos sociais garantidos. “Com o alto grau de desigualdade que temos, estaremos vivendo em crise permanentemente.”

A trajetória para o desenvolvimento proposta pelo economista inclui investimentos públicos em educação, capacitação técnica,  políticas de inovação, além de uma reforma agrária de fato, que fortaleça a agricultura familiar e modernize as relações de trabalho no campo. “Vivemos diante de uma sociedade esgarçada, indo para o empobrecimento”, diz. “Temos um problema sério na economia, mas, associado a isso, o que ocorre no Brasil é um processo muito claro de destruição das bases democráticas.”

Parte desse processo, ele aponta a investigação de empresas brasileiras com a colaboração do governo norte-americano, na Operação Lava Jato da Polícia Federal, como um atentado à soberania nacional. “Mas as pessoas, inclusive a imprensa, parecem não perceber isso.” Segundo ele, a população está mal informada, sendo levada a acreditar que a economia vai se recuperar por meio de um modelo de austeridade máxima e Estado mínimo. “Quando acordar e perceber os níveis de dificuldade para sua sobrevivência, perdendo renda e a rede de proteção do Estado, pergunto como se vai fazer o diálogo, recuperar o entendimento e evitar a polarização.”

Se a fórmula de recuperação da economia baseada na redução do papel do Estado e promoção dos mercados, defendida pela equipe chefiada pelo ministro Henrique Meirelles, da Fazenda, não for bem sucedida – e o professor da UFPR avalia que dificilmente o será –, ele acredita que se desencadeie, por parte da população excluída, “uma reação totalmente imprevisível”. E esta é uma das suas maiores preocupações em relação ao desdobramento da crise, que, na sua avaliação, “está sendo irrigada por uma visão de mundo preocupante de revalorização do neoliberalismo, da meritocracia, do individualismo, da riqueza como uma visão da conquista pessoal, e da desvalorização do coletivo e do que é público”.

Nilson Maciel de Paula é a favor do resgate do protagonismo do Estado tanto para inserir a economia brasileira no cenário global quanto para recuperar o dinamismo do mercado interno. “É preciso investir na educação pública, construir competências, ter uma política de inovação, de desenvolvimento industrial, que coloque o país na fronteira da competição”, diz. “Não dá para esperar que os trabalhadores sirvam para tornar a indústria competitiva apenas pela redução dos seus salários, pela carga do trabalho. Não vamos desenvolver mercado só com reformas artificiais. O Brasil precisa recuperar uma geopolítica que estabeleça a aproximação dos países com os quais possa manter parcerias rumo ao desenvolvimento, de modo que se forme um arranjo contra-hegemônico.”

Uma orientação oposta à adotada pelo governo Temer, que pediu recentemente o ingresso do país na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), contrariando a política de fomento às relações Sul-Sul dos governos Lula e Dilma. “Se o Brasil se concentrar numa relação com as economias centrais, nossa participação será de submissão a uma agenda já estabelecida, que permeia os organismos multilaterais e referenda a ideia de que o mundo precisa ser aberto aos mercado”, afirma de Paula. “O caso da Organização Mundial do Comércio (OMC) é típico, ao promover o livre comércio. Na realidade, não acontece assim; as nações desenvolvidas são estrategicamente protecionistas.”

E o Brasil deve agir da mesma forma: fazer política externa usando mecanismos próprios de apoio ao desenvolvimento nacional, explica. “Se for preciso proteger, temos que proteger, e não sermos obedientes a uma receita externa. Não estamos na mesma condição de outros países para competir. Os chineses não chegaram aonde chegaram com o livre comércio; dosaram a política cambial para conquistar o mundo, e se protegeram no que foi necessário.”

O economista cita, também, a “geringonça” portuguesa, experiência desenvolvida por uma aliança de partidos progressistas, que rejeita as políticas de austeridade em prol da valorização do Estado social. “Em Portugal, estão conseguindo uma recuperação a olhos vistos, mesmo em uma Europa complicada, dando ao Estado um papel decisivo, com políticas industriais que confirmam nossa crítica ao neoliberalismo.”

Um projeto consistente para o Brasil também precisaria ampliar o conceito de desenvolvimento. “Não recuperaremos essa agenda se ficarmos restritos ao desenvolvimento econômico para resolver nossos problemas”, alerta de Paula. “A ideia do trickle-down (teoria econômica liberal, segundo a qual os benefícios concedidos aos setores mais ricos “escorrem” para baixo, favorecendo as demais classes) leva as políticas a negligenciarem a questão da distribuição de renda.” Na prática, observa o professor, o que se verifica é uma economia mundial problemática e, internamente, reformas que vão fragilizar ainda mais o mercado. “Estamos reduzindo renda, empobrecendo o trabalho para sermos competitivos, e perdendo mercado. Promovendo o mercado, sem ter mercado.”

O sequestro da política

Ao mesmo tempo, ele destaca a invasão crescente da política pelos interesses empresariais, visando a captura do Estado, como movimento estruturante do golpe. “O conservadorismo da elite vem à tona e entra na política de forma aberta. As eleições de 2016 são uma evidência desse movimento: há uma mercantilização da política, com alto custo de campanhas, as pessoas vendendo ‘marcas’.” Cita, nesse sentido, o livro “No Is Not Enough: Resisting Trump’s Shock Politics and Winning the World We Need” (Negar não é suficiente: resistindo à Doutrina do Choque de Trump, e conquistando o mundo de que precisamos, em tradução livre), da jornalista canadense Naomi Klein. “Ela mostra como Trump se projeta através de uma marca que entra no terreno da política, e no qual a mídia passa a ter um papel fundamental. Junto com essa marca, dissemina-se o individualismo e uma visão neoliberal.”

O mesmo discurso insiste na depreciação e condenação das instâncias coletivas – dos sindicatos, do setor público –, tudo em um pacote só, que distancia a política das instituições democráticas. “As forças progressistas viveram de 1988 a 2015 um período de devaneio. Achávamos que tinha havido uma mudança e nos enganamos”, diz o professor. “Embarcamos nessa história do projeto de poder com prevalência sobre o projeto de sociedade. Não nos preocupamos em construir uma sociedade democrática, e a polarização se formou a partir de um terreno muito frágil. Celso Furtado está cada vez mais atual: ele dizia que o Brasil se modernizou apenas na superfície; abriu mão de construir uma sociedade homogênea, para construir uma sociedade de consumo.”

Ou seja, Nilson Maciel de Paula acredita que é urgente retomar a agenda das reformas essenciais, entre elas a reforma agrária, que permitam a democratização efetiva da sociedade, com distribuição real de renda e modernização dos sistemas produtivos. Por trás do emblema ruralista “O agro é pop”, estaria, na verdade, a economia brasileira agarrada a um base injusta, além de muito frágil em termos de densidade tecnológica e poder competitivo.

“A propagação do agronegócio como redenção da economia está assentada na base de uma oligarquia que fez do Brasil uma grande fazenda. São relações que dependem do setor de commodities e nos empobrecem do ponto de vista da competitividade. A Globo acha sensacional que o agronegócio esteja segurando a balança comercial, mas o setor manufatureiro tem déficit, e naqueles de tecnologia mais avançada, o cenário é terrível, não temos ganho nenhum.” Além disso, o professor da UFPR lembra que o setor agrário ainda guarda traços da sociedade de séculos atrás, com resquícios de relações de trabalho com nível de precariedade similar aos da escravidão.

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