Dez hipóteses para tempos alarmantes

Abaporu (1928), Tarsila do Amaral


Dez hipóteses para tempos alarmantes. Compreender e mudar o Brasil 

“Temos que nos prevenir do futuro em vez prevê-lo”
Ray Bradbury (1920-2012)

Movimento SOS Brasil Soberano
Senge RJ

1 Malgrado todas as especulações de golpe militar e de tentativa de reedição de algo semelhante ao AI-5, não vemos, de imediato, a ameaça de um “putsch” militar, civil-militar, de tipo clássico sul-americano, como já registrado ao longo da nossa História. Considerando, contudo, as inúmeras manifestações puxadas por políticos e movimentos de extrema-direita, incluindo membros da família Bolsonaro, não excluímos a possibilidade de forças policiais e paramilitares escaparem do controle, conforme o novo “modelo boliviano” de golpe que derrubou o governo de Evo Morales (8-10/11/2019). A ação das chamadas “Forças da Ordem” na Bolívia – policiais, guardas de vigilância e paramilitares –, tiveram forte apoio de milícias e civis, sob o olhar impávido dos Militares, com apoio de organismos internacionais, como OEA (exceto o México), União Europeia (exceto Espanha), e intensa participação norte-americana, intervindo as FFAA apenas ao final para “garantir a ordem” e sancionar o afastamento de Morales;


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Na verdade, os Militares que apoiam o bolsonarismo no Brasil já controlam grande parte do governo e expandem seu poder no Estado, ocupando a base física e administrativa da estrutura política do país. Estão situados em ministérios centrais da gestão pública, em proporção inédita na história republicana, inclusive em comparação ao Regime Militar de 1964 (1). Neste sentido, não há oposição no Congresso Nacional capaz de barrar seus atos, e não vemos coragem cívica no STF , no MPF e na AGU, que permita ir além de uma “guerra de notas de repúdio”;


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As Oposições parlamentares são frágeis e, até aqui, têm se mostrado ainda desconectadas das forças sociais. A Sociedade Civil se encontra desarticulada e, em grande medida, desmobilizada. A pandemia que se abate sobre nós roubou-nos as ruas, a única coisa que poderia ameaçar o bloco no Poder. A Mídia não encontrou um tom uníssono antiBolsonaro, apesar dos últimos editoriais de O Estado de S. Paulo, da Folha de S. Paulo e da oposição clara de O Globo. Além disso, a mídia é favorável ao projeto autoritário de Moro, ao ultraliberalismo de Paulo Guedes, e ao entreguismo dos ministros Militares nas pastas das Minas e Energia e da Infraestrutura.

Assim, a derrubada, o impedimento, a renúncia ou a simples declaração de impossibilidade médico-psiquiátrica, por insanidade mental, de Bolsonaro não conta com unanimidade capaz de unir privatistas e liberais a progressistas e nacionalistas, verdadeiros democratas. Continuamos em face de um claro impasse: a Oposição não consegue ir além, no atual momento, do “Fora Bolsonaro”. Quais os caminhos para materializar uma ação de afastamento de um presidente que avança claramente em direção à destruição política, e mesmo física, do Ordenamento Jurídico da Nação?

4 A grande parte das interpretações da conjuntura se baseia em uma ilusão, uma idealização reforçada pela mídia: a existência de três “alas” fantasmáticas, a saber – 1) os “técnicos”, ou seja, os gerentes das privatizações, ditos como “os bons”, incluindo os Militares formados durante a era Lula/Dilma pelos cursos de MBA da FGV dados nos quartéis e pagos pelos contribuintes; 2) a “ala ideológica”, dos “olavetes”, que merece o total desprezo, mas continua influente e merecedora de elogios do presidente, capaz de controlar grande parte da administração pública, como a Educação, as Relações Exteriores e a Cultura; e 3) a “ala militar”, considerada moderada e sensata, tentando controlar Bolsonaro por meio de uma pretensa tutela, que serviria de justificativa para sua presença no governo.

Tal análise, sem qualquer base factual ou política, em grande parte fomentada por jornalistas vinculados aos próprios Militares comensais do Poder, paralisa a ação política. Contamina, inclusive, as análises de segmentos à esquerda, por vezes ainda presos ao “fetiche” da existência de setores “militares nacionalistas e progressistas”. A maior parte é inspirada nas “operações psicológicas”, de contrainformação, alimentadas pelos próprios Militares, visando manter “limpa a barra” e explicar a inexplicável adesão deles a um governo liberticida e, a cada dia, mais próximo de levar o país a uma brutal hecatombe;

5 Os Militares foram a caução da candidatura Bolsonaro ao Poder em 2018, conforme ele próprio reconheceu, de público, no dia de sua posse, no agradecimento ao general Villas Bôas (2). E continuam, hoje, sendo o esteio de seu governo, não só na viabilidade administrativa, mas também política. Uma renúncia massiva dos ministros Militares seria o fim do pesadelo Bolsonaro. No entanto, não só permanecem os denominados “técnicos”, ditos os “bons” ministros Militares, como a chamada “ala militar”, tida como  “moderada”. Todos sob a justificativa de “controlar” o incontrolável. Não porque Bolsonaro precise ser controlado, mas porque, exatamente, necessitam continuar o processo diário de erosão das instituições estatuídas pela Constituição de 1988, como parte do projeto maior de destruição definitiva da Nova República, acalentado pelos próprios Militares;

6 O despropósito de um Golpe Militar hoje se explicita em vários aspectos: (i) na clareza dos Militares em relação ao peso histórico do regime ditatorial civil-militar de 1964/85 e sua ojeriza em arcar com esse fardo histórico mais uma vez; (ii) no fato de que podem agir de maneira eficaz por meio do Capitão e de sua base eleitoral, implantando seus próprios interesses, sejam privados e corporativos – todos eles já atingidos no primeiro ano bolsonarista –, sejam estratégicos.

A “base social” do bolsonarismo não foi, de forma sensível, corroída pelas últimas crises e escândalos políticos, e nem tampouco pela pandemia. O isolamento horizontal e as medidas de controle sanitário e de rigor no combate à doença, que atingiram amplos setores dos chamados “empresários” ou “empreendedores”, eleitores de primeira hora do bolsonarismo e que poderiam criar uma crise, foram logo percebidos e removidos. A demissão do ministro da Saúde fortaleceu o bolsonarismo, em vez de enfraquecê-lo. Pesquisa do Datafolha/UOL mostrou que o apoio ao presidente entre o “empresariado liberal-conservador” – leia-se lojistas, pequenos industriais, detentores de negócios em shoppings e similares – era de 65% no início de abril. Após a demissão do ministro da Saúde (em 16/04/2020), esse apoio sobe para 70% (3). Atendeu-se, assim, por meio da necropolítica, aos interesses do setor negacionista da opinião de extrema-direita, consolidando os interesses do pequeno e médio capital comercial, incapaz de sobreviver ao confinamento;

7 Os Militares jamais tiveram qualquer adesão real, completa e leal à Nova República e à Constituição de 1988. A expressão Nova República foi cunhada a partir de um discurso de Tancredo Neves, em Vitória (ES), em 1984, quando afirmou: “É imperioso criar uma Nova República, forte e soberana, para que nossas Forças Armadas não sejam nunca desviadas de sua destinação constitucional” (4). De uma proposta retórica, talvez defensiva, face a FFAA fortemente antidemocráticas, ergueu-se de fato, sob pressão das ruas, mobilizadas em milhões de pessoas na luta das Diretas Já, dos movimentos de favelas, das greves do ABC, contra a carestia, entre outras, toda uma nova ordem institucional. Tancredo, no entanto, não assistiria ao processo de democratização em seu ápice. Caberia ao vice-presidente, saído da dissidência do partido do Regime Militar, convocar a Constituinte e promulgar a Constituição de 1988. Será ela que dará forma à chamada “Nova República”. Esta se apoiaria, então, num novo “arco constitucional”, superando o jogo partidário do Regime Militar fixado artificialmente entre MDB versus Arena. Como é a prática política na História das Repúblicas Contemporâneas, uma Ordem Jurídica e um Arco Constitucional sustentam um Regime Republicano, como foi o caso na Terceira República Francesa (1871-1940), na República de Weimar (1919-1933), no Regime Norte-Americano atual, na Terceira República Brasileira (1946-1964). A Nova República é expressão de uma nova ordem jurídica e de um arco partidário constitucional que colapsa em 2013-2016, do que o bolsonarismo é resultado.

Os Militares, na verdade, durante os anos de Nova República, souberam se preparar para a eventualidade de uma crise política, quando seriam chamados de volta ao Poder no papel de “salvadores”. Mesmo derrotados em 1985/1988, impuseram à Constituinte institutos de poder militar, como o atual Artigo 142 (sobre a GLO), capazes de tornar seu papel de tutela sobre a República indispensável e mesmo automático. O bolsonarismo foi o veículo para tal aventura;

8 A Nova República não afastou nem puniu de forma exemplar os criminosos de 1964, em especial os de 1968/1969, nem os terroristas de 1979-1981 (5). Acima de tudo, permitiu uma Lei de Anistia como a de 1979, em desacordo com os seus propósitos e os da Constituição de 1988. A oposição não debatemos junto à Sociedade Civil uma Lei da Memória Histórica, nos moldes das leis da Alemanha pós-1945, Grécia pós-ditadura dos Coronéis de 1967-1974, Portugal pós-Salazarismo, Argentina pós-Ditadura e sobretudo da Espanha, com sua Lei da Memória Histórica, de 2007, que levou à retirada, ainda que em 2019, do cadáver de Francisco Franco do Valle de los Caídos. E permitimos o retorno da História. A ausência de um debate sobre a História do Tempo Presente no Brasil e a insistência no “esquecimento” (6) propiciaram a emergência de grupos negacionistas de apologia à Tortura e à Ditadura, e de Negação da História do Passado Recente – e também daquele não tão recente, como da própria Escravidão Negra ou do Genocídio Indígena no país, instrumentalizando as falhas da Educação, o preconceito, a inveja social e o sentimento imaginário de perda, para a preparação do assalto à democracia no Brasil;

9 Tudo isso tornou possível a restauração, na ordem política, do passado não resolvido, que agora necessita urgentemente ser impedido, afastado e superado pela união das forças populares, progressistas e nacionalistas, mediante o impedimento e o afastamento do governo Bolsonaro e dos Militares, com a convocação de nova eleição para presidente da República. Especialmente depois das delações e confissões, recíprocas e públicas, do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública e do atual ocupante da Presidência da República, que admitiram terem se reunido antes das eleições de 2018, sendo de conhecimento de todos que a atuação de Moro à frente da Operação Lava-Jato levou ao indevido afastamento de Luís Inácio Lula da Silva da disputa presidencial. O que, por sua vez, permitiu a eleição de Bolsonaro, com o patrocínio intimidatório dos Militares contra o Supremo Tribunal Federal (7).

10  Esta união de forças progressistas deverá debater e apresentar proposta de uma nova ordem política e institucional, que permita à soberania popular o efetivo controle do país e a distribuição justa das suas riquezas entre todos os brasileiros. Não é mais possível sustentar o modelo de abusos e exploração patrocinado pelos que controlam o Estado e suas instituições civis e militares e os meios de produção, retirando diariamente direitos da população, que já não tem mais nenhuma proteção social para lhe garantir o mínimo de esperança e felicidade. Resta-lhe somente o dever de trabalhar, pagar tributos de forma regressiva, sem segurança nem diante da grave pandemia da Covid-19. Por desrespeito, irresponsabilidade e desumanidade, os brasileiros estão entregues à própria sorte, à mercê da morte e da fome.

Não basta ficar em casa. Temos que lutar em cada casa.
Fora Bolsonaro, pela vida, eleições já!

MOVIMENTO SOS BRASIL SOBERANO

Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro


NOTAS

(1) Levantamento do jornal Folha de S. Paulo, com base na Lei de Acesso à Informação, indica que há ao menos 2.500 Militares em cargos de confiança no governo federal, sem explicitar que todo os cargos ministeriais de confiança no Palácio do Planalto são ocupados por Militares, da Ativa e da Reserva.
Ver em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/militares-governo-bolsonaro-participacao-recorde/. 26/04/2020. Consultado em 24/04/2020.

(2) ‘O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui’, diz Bolsonaro a comandante do Exército. (https://oglobo.globo.com/brasil/o-senhor-um-dos-responsaveis-por-eu-estar-aqui-diz-bolsonaro-comandante-do-exercito-23341238) O GLOBO, 02/01/2019, visitado em 24/04/2020. O apoio do general Villa Bôas parece manter-se mesmo ao longo das agressões de Bolsonaro ao regime democrático e à Constituição de 1988: ‘General Villas Bôas vai às redes sociais a favor de Bolsonaro (https://www.poder360.com.br/coronavirus/general-villas-boas-vai-as-redes-sociais-a-favor-de-bolsonaro/). Em PODER 360, 30/03/2020, consultado em 24/04/2020; Bolsonaro fez visita a general Villas Bôas para pedir seu apoio… Em UOL, 31/03/2020. Consultado em 24/04/2020.

(3) “O Andar de Cima demora a cansar de Bolsonaro”. Folha de S. Paulo, 26/04/2020. Consultado em 26/04/2020.

(4) “Pai de uma República que envelheceu”. Época, 02/04/2017. In: https://epoca.globo.com/politica/noticia/2017/04/o-pai-de-uma-republica-que-envelheceu.html, consultado em 24/04/2020.

(5) O Projeto de Abertura Política nunca foi aceito, unanimemente, pelos Militares, ensejando uma brutal luta política nos quartéis e em seus porões. Essa reação incluiu o Golpe de Estado falhado de 1977 de Silvio Frota, que tinha como ajudante de Gabinete o então capitão Heleno, atual general e ministro-chefe do GSI. O projeto formulado por Geisel-Golbery, mesmo sendo autoritário e limitado, era considerado por setores “linha dura” por demais favorável aos “comunistas”. Para combatê-lo, patrocinou-se uma onda de Terrorismo de Estado por todo o país, em especial entre janeiro e agosto de 1980, tendo como alvos o governador Leonel Brizola, a convenção do PMDB, bancas de jornais em vários estados (para coibir a venda de jornais de Oposição). São atingidas, com vítimas, inclusive letais, as sedes dos jornais “Em Tempo”, “Hora do Povo”, “Tribuna Operária” e “Tribuna da Imprensa”, a “Casa do Jornalista”, em Belo Horizonte, o Teatro Tuca, em São Paulo, no Colégio Social (ferindo cerca de dez estudantes), em Salvador, a OAB, o Riocentro e a Câmara dos Vereadores. Tais práticas terroristas, com funcionários civis e Militares agindo como terroristas contra políticos, intelectuais e a população, jamais foram apuradas ou punidas. Também aí, o Estado anistiou sem averiguar, na contramão de outras experiências pós-ditatoriais, como as da África do Sul pós-Apartheid ou da Argentina e do Chile pós-ditaduras, capitulando perante uma pretensa “conciliação nacional” (ratificada pelo STF em abril de 2010) ou “pacto nacional”, em nome de uma página virada da nossa história.

(6) Destaque-se a crise entre o Ministério da Defesa, em 2004, e o Comando do Exército, provocada pela divergência nas reações à publicação, pelo Correio Braziliense, de fotos de Vladimir Herzog – nu e morto – nas dependências do DOI-Codi. Na ocasião, o Centro de Comunicação Social do Exército, então sob comando do general Antonio Gabriel Ésper, soltou nota elogiando e justificando a ação do Exército e das FFAA no combate “às forças subversivas”. A nota foi desmentida e criticada em outra nota, mas o ministro José Viegas, da Defesa, apresenta sua renúncia — aceita — ao presidente Lula, por não ter conseguido a demissão do comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, responsável pelo texto original a favor da repressão. Francisco Albuquerque não só permanece no Comando do Exército, como, em 2007, é indicado para o Conselho de Administração da Petrobras e da BR Distribuidora. O episódio foi uma chance perdida para uma revisão, in profundis, do pensamento autoritário no âmbito das FFAA e da herança de 1964. De forma equivocada, considerou-se, então, que se tratava de um “fato isolado”. Num notável caso de ausência de visão histórica e política, O Poder Político Civil renunciou – para evitar “ficar reavivando fatos trágicos de um passado”– a se exercer contra um grupo de coronéis, liderados pelo general Ésper. Ele será, em seguida, comandante da Região Militar do Sudeste, com sede em São Paulo, e depois, já na Reserva, organizará cursos de Defesa e Segurança na Fiesp. O governo preferiu sacrificar o seu ministro da Defesa, considerado sem liderança na área militar. Ali a Nova República mostrou seus limites perante a Corporação Militar e a sua ausência de vontade de lidar, e liquidar, com um passado que “insiste em não passar”. Da mesma forma, a reação contra a criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, foi, realmente, uma agravante nas relações entre Militares e a Nova República e nunca a causa do seu rompimento.
[Cobrado por Lula, Exército se retrata de nota. Em Folha de São Paulo. 20/10/2004. In: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2010200406.htm, consultado em 24/04/2020. ]

(7) “Villas Bôas escreveu em rede social que o Exército ‘está atento às suas missões institucionais’”. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/na-vespera-de-julgamento-sobre-lula-comandante-do-exercito-diz-repudiar-impunidade.shtml Acesso em 26 de abril de 2020.

 

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