O cronograma definido pelo governo para os leilões de áreas de exploração de petróleo, com quatro rodadas previstas para este ano, das quais duas na camada pré-sal, tem o objetivo de inviabilizar a participação da Petrobras nas disputas, de acordo com alerta feito pelo ex-presidente da estatal, José Sérgio Gabrielli. O Ministério das Minas e Energia anunciou no último dia 3, em Houston, nos EUA, que os dois leilões de áreas no pré-sal estão marcados para o mesmo dia: 27 de outubro.
Segundo Gabrielli, a intenção é que o pequeno intervalo entre as rodadas não dê tempo à empresa de recuperar o folêgo de sua capacidade de investimento. “Não há necessidade real de acelerar os leilões; o objetivo da pressa é abrir o mercado a outros players”, diz. “É preciso desacelerar. Se continuarem nesse ritmo, teremos uma situação de terra arrasada.”
Além de anunciar a data dos leilões, o governo publicou no D.O. do dia 4 de maio o decreto nº 9.041/2017, que regulamenta o novo papel destinado à Petrobras na política do setor. A empresa deve exercer agora um direito de preferência em até 30 dias a partir da data da especificação técnia da licitação, se quiser atuar como operadora na exploração de blocos de petróleo na camada pré-sal. De acordo com o decreto, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) será responsável por estabelecer o percentual da participação da Petrobras nas licitações, respeitando o limite mínimo de 30%. Caso a empresa não exerça o direito de preferência, uma licitação será aberta para cada bloco e a sua participação será nas mesmas condições das demais concorrentes.
O prazo para a estatal se manifestar começou a contar a 27 de abril, data em que o CNPE publicou a resolução autorizando a 3ª Rodada de Licitações sob o Regime de Partilha de Produção no Pré-Sal, com a oferta de quatro áreas: Pau Brasil, Peroba e Alto de Cabo Frio-Oeste, na Bacia de Santos, e a área de Alto de Cabo Frio-Central, nas Bacias de Santos e Campos.
Para 27 de setembro está programada a 14ª Rodada de Licitações de blocos sob o regime de concessão. A expectativa é de uma arrecadação de R$ 8,5 bilhões, a partir dos leilões previstos para este ano, de acordo com informação publicada pelo jornal Valor, considerando apenas os bônus de assinatura. Juntos, os leilões de 2017 e 2018 devem atrair investimentos de R$ 200 bilhões nos próximos dez anos.
A estratégia do atual governo Temer, de maximizar a exploração do petróleo de forma rápida, além de forçar o caixa da Petrobras – fragilizando-a frente à concorrência, pode levar à produção predatória das empresas que vierem atuar no país, adverte Gabrielli. O pouco tempo entre as rodadas dos leilões propicia a participação de competidores com menor domínio tecnológico, o que significaria, entre outros problemas, maior custo de produção – a ser pago pela União e, consequentemente, pelo país.
Na sua opinião, a Petrobras deveria buscar o alongamento da sua dívida, ainda que isso implique custos, de modo a assegurar uma “ponte” para a retomada dos investimentos. “A empresa não pode colocar a meta de rentabilidade de curto prazo como oposta ao crescimento da produção no longo prazo”, critica. Ele acredita que o equacionamento financeiro – num processo mais longo de aumento das receitas operacionais e consequente queda do endividamento – permitirá à estatal obter novas formas de financiamento e aumento das margens.
Como recuperar o terreno perdido
Um programa de recuperação do setor, diz Gabrielli, precisaria reduzir o velocidade dos leilões a um ritmo compatível com a capacidade de investimentos da empresa, abrindo novas áreas em fronteira exploratória, e retomar o papel do conteúdo local. Este resgate do papel da indústria nacional incluiria definição de prazo e regras de transição,estímulo aos incentivos – sem acabar com as multas por descumprimento –, e à formação de cluster, com políticas refinadas em termos setoriais por tipo de equipamento.
O retorno do controle do Estado sobre as reservas, com a Petrobras novamente no posto de operadora exclusiva dos projetos, seria fundamental em uma nova política no setor. Uma política, diz Gabrielli, que interrompa pelo menos em parte as perdas desencadeadas pelo atual governo com o desmonte do sistema integrado – “do poço ao poste” –, que era a base da atuação da Petrobras em toda a cadeia de óleo e gás. “O foco apenas na exploração e produção no pré-sal torna a empresa mais dependente dos fluxos e preços internacionais, mais vulnerável aos ciclos de commodities, perdendo as vantagens dos distintos ciclos, que permitem ganhos tantos nos momentos em que os preços do petróleo caem (downstream), como quando sobem (upstream).”
O sistema integrado previa auto-suficiência, fomento da indústria e da tecnologia no país, destinação dos recursos obtidos com o petróleo para projetos estratégicos ao desenvolvimento, inclusive nas áreas social e de educação. O primeiro passo da sua desarticulação foi o fim da exclusividade da Petrobras para atuar como operadora nos campos, explica o economista, que participou do II Simpósio SOS Brasil Soberano, a 27 de abril, em Salvador (BA). “Nos próximos leilões, vários operadores vão concorrer, cada um com sua estrutura tecnológica, sua cadeia de fornecedores”, explica Gabrielli. “Não há mais política de apoio ao conteúdo nacional. E o sistema, fragmentado, não terá escala, com custos mais elevados do que os da competição internacional.”
A desintegração do sistema
Na política em vigor desde 2003, a curva de produção planejada envolvia a autossuficiência, a expansão da capacidade de produção de derivados e a ampliação da indústria de fornecedores brasileiros, preparando-os para atender à produção de petróleo. “O Brasil tem chance de passar de 15º para o posto de sexta ou sétima maior reserva de petróleo do mundo”, ressalta o ex-presidente da Petrobras. “E este volume de petróleo abre uma enorme possibilidade para o país, se houver uma política para aproveitá-lo.”
O modelo atual, entre outras deficiências, já não abrange a atividade de refino. A Petrobras atingiu a produção de 2,6 milhões de barris por dia no Brasil, sendo 2,3 milhões consumidos no parque próprio de refinarias, para uma demanda no país entre 2,4 milhões e 2,5 milhões de barris/dia. “Ou seja, uma situação que estava equilibrando refino e produção”, afirma o economista.
Atualmente, a política de refino visa manter os preços de derivados associados, mas criando condições para que a estatal diminua sua responsabilidade no mercado e abra espaço para importações. “Os contratos eram 100% da demanda dos distribuiores, mas, hoje, a empresa não se compromete mais com o atendimento total”, diz. “Esse quadro permite que, mais adiante, os investimentos ocorram em modelo semelhante ao da Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), que atua no Rio Grande do Sul em parceria com a Repsol (de origem espanhola).”
Finalmente, o desmembramento do sistema trouxe o esvaziamento da política de conteúdo nacional, que previa um percentual mínimo de aquisições de itens e subitens de fornecedores no país. “Houve uma drástica redução desse conteúdo para os novos leilões. Abre-se o mercado e mata-se qualquer oportunidade da politica de conteúdo nacional”, afirma Gabrielli. “A Petrobras é reconhecida mundialmente pela sua experiência em exploração em águas profundas, tendo construído uma relação intensa com fornecedores de produtos e serviços, e com um mercado interno crescente. Criamos uma situação quase única, que está se perdendo.”
A regulação, elaborada em 2010, visava transformar de forma ampla o país, a partir dos ganhos na área de óleo e gás, especialmente a partir do grande potencial das reservas do pré-sal descobertas em 2006. Para isso, a política foi contruída sobre pilares estratégicos: ampliou-se a parte da renda do setor a ser apropriada pelo Estado; criou-se um fundo social, para destinar parte da renda petroleira a demandas nacionais, e também à inovação tecnológica. Em 2015, a estatal recebeu o prêmio da Offshore Technology Conference (OTC) – Distinguished Achievement Award for Companies, Organizations, and Institution –, o principal do setor petroleiro, em reconhecimento às tecnologias de ponta desenvolvidas para a produção da camada pré-sal.
A exclusividade da Petrobras como operadora única, derrubada no governo Temer, era o elemento chave para escolha da tecnologia e para acumulação de conhecimento científico e tecnológico, bem como para a integração da empresa e a política de conteúdo nacional. A estimativa é que o complexo integrado fosse responsável por 10% a 12% de toda a geração de renda e por cerca de 20% da formação bruta de capital fixo no país, com um 1,8% de taxa de crescimento do PIB a cada ano. “Tudo isso está hoje desmontado”, lamenta.