Pracinhas e ex-combatentes se encontram. Getúlio censurou ação soviética na Guerra, diz historiador

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Nesta quarta-feira (9), às 10h, acontece encontro inédito entre o “Regimento Imortal”, combatentes russos da II Guerra Mundial, e pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O evento comemorativo da Vitória sobre o nazifascismo é organizado pelo Consulado-Geral da Rússia e pela Associação Nacional de Veteranos da FEB, com apoio do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge). De lá, haverá uma caminhada até a sede da FEB.

A União Soviética (URSS) impôs o maior número de baixas aos exércitos do Eixo, mas a maioria da população brasileira não tem a dimensão da importância do país no conflito. A desinformação é resultado da censura do Estado Novo aos sucessos comunistas no front, segundo dissertação de mestrado apresentada em 2016 na UFRJ pelo pesquisador e historiador João Claudio Platenik Pitillo, do Núcleo de Estudos das Américas, da UERJ. “Os brasileiros não ficaram sabendo de nada, devido à censura do Estado Novo.” O trabalho do historiador, atualizado com novos documentos, sai em livro no segundo semestre, com o título “O Exército Vermelho no prelo do DIP durante a Segunda Guerra Mundial”.

A URSS, destaca o pesquisador, destruiu mais de 75% das forças do Eixo. “Os EUA combateram em três países principais, França, Itália, Alemanha, e um pouco na Holanda; a URSS libertou 13 países, mais de 40 milhões de pessoas, entre população civil e militar. É um número estarrecedor. A URSS teve uma missão libertadora, presente nos países dos Balcãs, na Iugoslávia, Áustria, Polônia, China, Mongólia, até na Noruega. Lutaram em dois fronts: no Extremo Oriente e na Frente Leste, e foi responsável pela destruição do maior grupamento da história militar, do Exército Alemão.”

Pitillo pesquisou os principais jornais brasileiros de 1941 a 1945 – Correio da Manhã, Diário Carioca, Jornal do Brasil –, comparando-os a veículos internacionais, como o The New York Times, para analisar o destaque e a abordagem dada à ação soviética na Guerra, incluindo a cobertura de grandes batalhas como as de Leningrado, Stalingrado e Kursk, entre outras. Também investigou no Arquivo Histórico do Estado do Rio de Janeiro os documentos do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão do governo Getúlio Vargas responsável pelo controle da imprensa. Encontrou orientações explícitas aos jornais para não destacarem ou, na maior parte das vezes, simplesmente suprimirem as informações positivas relativas aos comunistas.

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“Encontrei no DIP ordens deliberadas do governo brasileiro para não permitir que matérias nem fotografias sobre a URSS, sobre o Exército Vermelho, o avanço das tropas fossem publicadas”, explica. “Não era permitido nada elogioso à URSS. Foi vetado, por exemplo, o discurso de Stálin, em 1942, para o 25º aniversário da vitória da Revolução. Nunca saiu foto da vitória na batalha de Moscou, a primeira derrota dos nazistas, que estavam invictos desde 1938.”

Porque imprimiu uma foto 3×4 do marechal Jukov [comandante-em-chefe das Forças Armadas soviéticas], o Correio da Manhã ficou 24 horas sem poder circular. “Como reconhecimento”, lembra o historiaor, “Jukov, depois de comandar o contra-ataque soviético que chegaria até Berlim e levaria o regime nazista à derrota, foi escolhido pelos Aliados para receber dos alemães o instrumento de sua rendição na guerra.”

Na dissertação, Pitillo conta que o Correio da Manhã do dia 01 de outubro de 1941 destacou as ações na região de Leningrado, com títulos de impacto – “Incessante a pressão russa na Frente Central”; “Em encarniçados combates os russos recapturam no setor de Leningrado, uma cidade e muitas aldeias e povoações”. Mas a manchete da primeira página sobre o Exército Vermelho foi acompanhada da fotografia de Churchill, primeiro ministro inglês, e do embaixador soviético Ivan Maisky trocando brindes durante um banquete em Londres, sob o título “Um Discurso de Churchill”. “Sobre as ações soviéticas que também foram destaques na primeira página, nenhuma fotografia ou mapa para ilustrar a reportagem”, escreve na dissertação. “Essa rotina de ausência de fotografias, mapas, gráficos e ilustrações referentes ao Exército Vermelho e seus líderes foi uma constante durante toda a Guerra nos jornais brasileiros. Entretanto, as forças do Eixo e dos Aliados ocidentais receberam amplas coberturas, fazendo com que os brasileiros se familiarizassem com as lideranças desses dois blocos, de tanto que foram retratados em nosso país.”

Na imprensa internacional, a partir de 22 de junho de 1941, com a invasão alemã do território da URSS, a aproximação dos EUA e da Inglaterra se manifestou na redução da propaganda anti-soviética nestes países. No Brasil, contudo, diz Pitillo, durou ainda mais três anos, repercussão do Levante Comunista de 1935, conduzido por militares inspirados nas ideias tenentistas anti-oligárquicas e antiditatoriais, episódio chamado pelo Estado Novo de Intentona Comunista. “O levante de 35 assombrava os governantes”, explica o pesquisador.

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A censura continuou até o segundo semestre 1943, quando incia-se, afinal, uma distenção tácita, com a liberação gradual da divulgação de notícias sobre os avanços soviéticos. Mas “a conjuntura política, que submetia a imprensa nacional e pautava a sociedade brasileira ao anticomunismo”, como se lê na dissertação, havia se cristalizado no país. Estendeu-se à Guerra Fria e derivou na história contemporânea em um grande preconceito antissoviético e uma enorme ignorância sobre os fatos e o desenrolar da Segunda Guerra. “A censura deixou uma herança antissoviética na cultura, no ensino da Históría. Ainda se acredita que a guerra foi ganha pelo Desembarque da Normandia, que, no entanto, só foi possível pelas vitórias da URSS no teatro de operações oriental”, afirma o historiador.

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