Cientista político Jorge Folena analisa as relações entre militares e política

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Jorge Rubem Folena*

A Constituição brasileira diz que: “As Forças Armadas (FFAA) são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer deles, da lei e da ordem.” (artigo 142)

De acordo com a Constituição, as FFAA têm três missões: 1) a defesa da pátria; 2) a garantia dos poderes constitucionais e 3) a preservação da garantia da lei e da ordem (GLO), de forma excepcional.

A propósito, não se pretende neste trabalho fazer uma análise crítica do dispositivo constitucional acima, tendo em vista a existência de diversas restrições a respeito do papel de garantia de poderes constitucionais e da lei e da ordem por parte das FFAA, a representar uma indevida espécie de poder moderador. Tais atribuições poderiam ser desempenhadas por uma força de terceiro tipo, como a Força Nacional de Segurança ou uma Guarda Nacional, sem expor as FFAA junto à população, em casos de eventuais excessos ou acidentes involuntários com vida. A ideia é apenas debater os objetivos aprovados pelos constituintes em 1988, diante do atual quadro político brasileiro.

I. Defesa da pátria

A defesa da pátria não é a mera defesa institucional; é, sim, a defesa do povo brasileiro, pois este é a origem e a finalidade do Estado, fundado pela vontade geral coletiva, expressa por meio do grande pacto político que é a Constituição.

No Brasil fala-se muito em povo, esquecendo-se, porém, que dele emana todo poder e que seu somatório constitui a soberania popular, base de tudo e que deve ser respeitada pela vontade da maioria, à qual as FFAA devem fidelidade.

A soberania popular, no Brasil, equivocadamente, fica em segundo plano perante a soberania nacional (conceito institucional), porque o comportamento político no país se dá de cima para baixo, sendo imposto por uma elite de formação colonial, que se arroga o direito de tutelar indefinidamente a totalidade dos cidadãos, a exemplo do que ocorreu na Independência e na Proclamação da República.

Historicamente, os militares não saem das fileiras da elite, mas das camadas mais populares, havendo muitos exemplos de oriundos de famílias humildes que lutaram pela defesa e transformação do país.

Porém, quando uma presidenta, eleita pela vontade da maioria do povo brasileiro, foi destituída do poder sem que tivesse praticado qualquer delito, violou-se a soberania popular e colocou-se em risco a defesa da pátria, que tem no povo seu destinatário final.

Pela Constituição, o mais relevante papel político das FFAA é a defesa da soberania popular, expressão do povo brasileiro. Sem esta compreensão, torna-se difícil a defesa da pátria, que se transforma em instrumento de retórica. Por isso, foi bem-vinda a manifestação do comandante do Exército, General Eduardo Villas Boas, quando, em entrevista ao jornal Valor Econômico (de 17/02/2017), afirmou que “hoje morrem cerca de 60 mil pessoas por ano assassinadas, cerca de 20 mil pessoas desaparecem no país por ano, 100 mulheres são estupradas por dia.” Além disso, o General Villas Boas expressou sua preocupação de comandante, ao constatar que as intervenções para Garantia da Lei e da Ordem nas favelas do Rio de Janeiro não produziram resultados concretos de transformação social; pois só a repressão à criminalidade não trará jamais a segurança transformadora, que só pode ser alcançada pela ampla garantia de direitos sociais e pela oportunidade de trabalho com remuneração justa.

Assim, o comandante demonstrou um pensar e agir político em conformidade com a finalidade maior das FFAA, que é a defesa da pátria, uma vez que o povo brasileiro – na sua maioria formada por pobres e negros – não tem sido correspondido nos principais objetivos da formação do Estado, que são assegurar a paz e a harmonia social. Naquela ocasião, o general afirmou que “somos um país que está à deriva”, traduzindo, deste modo, o sentimento geral dos brasileiros, diante de um desgoverno que trabalha sistematicamente contra os interesses do povo.

II. Garantia dos poderes constitucionais

A garantia dos poderes constitucionais é uma atribuição das FFAA, desde que tais poderes (exercidos pelas instituições políticas da República – Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) estejam em correspondência com os mandamentos da vontade da soberania popular.

Mas o que se tem constatado no Brasil, depois de maio de 2016, é que os três Poderes da República se autodissolveram materialmente e funcionam apenas formalmente, na medida em que – sem exceção – têm atuado em desacordo com a vontade soberana do povo; e, em diversos casos, com a prática de atos de escárnio contra o poder popular, de onde se originam.

O mandato concedido pelo povo brasileiro não autoriza os três Poderes a atuarem contra os seus outorgantes. Entretanto, em pouco mais de um ano, retiraram verbas que deveriam ser direcionadas para custear a saúde, a educação das crianças e jovens e a aposentadoria dos anciãos; não satisfeitos, eliminaram direitos dos trabalhadores e retiraram os investimentos em ciência e tecnologia, essenciais para a defesa da soberania; tudo isto para atender aos interesses do mercado financeiro internacional. Tais decisões configuram um gigantesco atentado à dignidade do país e constituem graves delitos de lesa-pátria.
Além disso, observa-se a todo momento o compadrio entre parlamentares e juízes da Suprema Corte e vê-se um presidente em exercício do cargo sob várias acusações e diante de provas contundentes da prática de sérios delitos.

Então, fica a seguinte questão política: como as FFAA podem garantir os poderes constitucionais, que se autodissolveram materialmente? Como respeitar e defender um presidente (chefe das FFAA) acusado e com provas demonstradas aos olhos e ouvidos de todos, que atenta contra a probidade, fato reconhecido até mesmo pelos parlamentares que votaram para que ele permaneça no cargo até o final de seu mandato?

Diante de tão graves fatos, não há como garantir nem justificar a permanência dos atuais ocupantes dos poderes constituídos. Não me refiro aos Poderes em si, mas aos homens e mulheres que se encontram no exercício de suas funções e atuam de forma zombeteira em relação à Pátria e ao povo.

Desta forma, qualquer atuação das FFAA para garantir a permanência dos atuais ocupantes dos cargos dos Poderes Constitucionais reduz as instituições militares ao pobre papel de guarda pretoriana, a defender os que abusam do exercício do poder contra o povo brasileiro.

III. Lei e ordem

O momento não é para Garantia de Lei e Ordem (GLO), manipulada por autoridades que não respeitam o povo e estão descaradamente a serviço do capital financeiro internacional.

Com efeito, se existe um inimigo da Pátria brasileira, é o capital financeiro internacional, cujo intuito é desaparelhar as FFAA e toda a comunidade científica nacional e deixá-las sem recursos, para que não possam defender nossas riquezas humanas, culturais e naturais (como minérios de todo tipo, reservas de água doce, gigantesco território para a agricultura etc.).

O inimigo a ser enfrentado pelo povo brasileiro não é interno (movimentos de trabalhadores, mulheres, negros, índios etc), mas externo, que explora e abusa da nossa juventude e remete grandes quantidades de drogas e armas pelas fronteiras, portos e aeroportos e “lava” elevadas somas de dinheiro.

Nesses locais, sim, deveria ocorrer uma GLO, a fim de evitar a entrada de drogas e armas, dado o fracasso da atuação da Polícia Federal; e da mesma forma, deveria ser feito, por meio de uma ação de inteligência efetiva, o controle das movimentações destas operações financeiras, junto ao sistema bancário. Isto porque o dinheiro deste negócio precisa circular por algum lugar e, sendo assim, pode e deve ser monitorado, pois é ilegal e usado para atentar contra o país.

Fazer GLO para intervir em favelas é abusar das FFAA, que têm por missão defender a Pátria, e não fazer o papel de polícia. Isto é um desrespeito por parte dos homens e mulheres que estão chefiando os poderes constituídos, que têm abusado da nossa inteligência, ao requerer a toda hora a excepcional GLO, como se as forças de segurança (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Força Nacional de Segurança) fossem completamente incapazes.

Da mesma forma que as FFAA não devem ser vistas como inimigas do povo brasileiro, também elas não podem considerar como inimigas as forças progressistas e nacionalistas que lutam por um país mais justo e solidário, como o MST, as Centrais Sindicais, os movimentos dos povos indígenas e outros.

IV. Refundar a República

Com efeito, não interessa à classe dominante a existência de FFAA intelectualmente capazes e materialmente aparelhadas para defender a soberania popular.

É importante recordar que, no governo ultraliberal de Fernando Henrique Cardoso, as FFAA ficaram sem recursos até para a alimentação, a exemplo do que vem fazendo Michel Temer, com o sistemático corte orçamentário para atender aos interesses do mercado financeiro; de forma diametralmente oposta agiram os governos de Lula e Dilma, que trataram as FFAA com respeito e dignidade e retomaram os investimentos necessários ao seu reaparelhamento.

Sem dúvida, o Brasil necessita desenvolver o seu programa nuclear para dissuasão de qualquer ameaça estrangeira; reequipar o Exército com tecnologia cibernética de ponta; investir em tecnologia aeronáutica e de lançamento de mísseis e ter uma Marinha de Guerra com submarinos nucleares. O enfraquecimento do Estado brasileiro, promovido por Michel Temer, caracteriza crime contra a segurança nacional.

Vivemos hoje sob uma ditadura silenciosa, sem armas apontadas diretamente em nossa direção, mas que está destruindo o país e promovendo o reaparecimento da miséria (conforme constatado pela ONU), o retorno do trabalho infantil e a visão do abandono de milhares de pessoas (adultos e crianças), que voltaram a dormir nas ruas das cidades brasileiras. Tudo isto revela o mais completo fracasso do modelo de política econômica adotado a partir do golpe de 2016, um erro que precisa ser corrigido com urgência pela via democrática, pois o país está marcado pela desesperança.

Assim, é preciso refundar a República para que a igualdade e a transparência sejam, de fato, uma realidade, e as instituições, entre elas as FFAA, funcionem em defesa da soberania popular.

* Advogado e cientista político

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