A vida no Estado Policial no novo livro de Cid Benjamin


O livro Estado Policial – como sobreviver (Civilização Brasileira), que o jornalista Cid Benjamin lança nesta segunda (23), na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, no Rio, chega depois de mais uma semana de operações brutais da polícia do Rio de Janeiro. Uma dessas ações resultou na morte da menina Agatha Félix, de oito anos, segundo moradores atingida pelas costas por um tiro da PM no Complexo do Alemão. Vídeos feitos por moradores também mostraram aos brasileiros helicópteros disparando sobre uma escola, alunos em pânico e casas depredadas durante as incursões.

“A serpente do fascismo está ativa”, diz o título de um dos três prefácios do livro, assinado pelo bispo emérito da Diocese de Blumenau (SC), dom Angélico Sândalo Bernardino. “Nos dias que correm, a serpente ressurge ativa, semeando ovos de fascismo, discriminação, ódios, prisões arbitrárias, em muitas partes do mundo, inclusive em nosso amado Brasil”, escreve.

A imagem consagrada pelo filme de Ingmar Bergman – O Ovo da Serpente –, que trata da ascensão do nazismo na Alemanha, também é citada em outro prefácio, escrito pelo desembargador João Batista Damasceno, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Ele destaca o fortalecimento das milícias e a lógica opressora que avança no país: “Nos Estados policiais, mesmo a racionalidade que pode existir num regime autoritário é substituída pelo arbítrio. O Estado policial, numa sociedade marcada pela cordialidade, pode resultar na desqualificação das vidas humanas, por meros caprichos ou perversidades.” (…) “A ascensão do Estado policial no presente momento escancara o fracasso das postulações fundadas na racionalidade iluminista que é a referência do Estado Democrático e de Direito.”

É nesta conjuntura política difícil que Cid Benjamin, vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa, decidiu organizar um conjunto de recomendações e dicas práticas de proteção para ativistas do movimento popular e defensores dos Direitos Humanos. O texto traz as principais precauções a serem tomadas pelos militantes nas cidades ou no campo, junto a relatos da experiência do jornalista na ditadura, quando militou para o MR-8 e foi submetido a tortura durante seu período na prisão, em 1970.

O marco histórico do novo contexto policialesco do Estado e da criminalização dos movimentos sociais é a eleição de Jair Bolsonaro, diz Cid ao SOS Brasil Soberano. “O governo Bolsonaro, pela intimidade que tem com milicianos e pela simpatia declarada por eles, abre um período mais perigoso.”, explica o jornalista. “Milícia já era grave; milícia no governo Bolsonaro é gravíssimo”. No livro, ele lembra que o presidente – então deputado federal –, durante discurso na Câmara em 2003, defendeu a vinda de matadores da Bahia para o Rio: “(…)Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será bem-vindo”, discursou.

Durante seu mandato como deputado estadual no Rio, também o filho do presidente, Flávio Bolsonaro, eleito senador pelo PSL em 2018, homenageou publicamente vários chefes da milícia. Em episódios mais recentes, Cid Benjamin cita os esforços feitos pelo governo para evitar a quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro e interferências do Executivo na ação da Polícia Federal, que teria tentado indiciar o assessor do filho do presidente Fabrício Queiroz. “É um período de muito maior gravidade.”

No início de 2019, as milícias já controlavam 26 bairros e 165 favelas cariocas, segundo levantamento citado do livro. Uma área com 2 milhões de habitantes, ou um quarto da população da cidade. E se não se pode generalizar, dizendo que toda a polícia é miliciana, é possível afirmar que os milicianos são ou já foram policiais – o que significa que há entre eles uma similaridade forte de métodos de ação, afirma Cid. Os contratempos e dificuldades encontradas para a apuração do assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL, diz, evidenciam esse quadro de promiscuidade entre órgãos de segurança e milícias, que também provocou vazamento de informações privilegiadas sobre operações do Exército, em maio de 2018, durante a ocupação das Forças Armadas no Estado.

Não é ainda a ditadura escancarada, na expressão de Elio Gaspari, mas o vice-presidente da ABI aponta sinais preocupantes, especialmente no que se refere ao aparato de controle e vigilância da sociedade. “Você não tem hoje um aparelho repressivo atuando tão abertamente como depois do AI-5 e na primeira metade dos anos 70, com pessoas sendo presas, torturadas e assassinadas. Naquela época, a violência era essencialmente do aparelho do Estado. Hoje em dia, isso não acontece de forma aberta, explícita. Mas há uma desconfiança grande de que exista – trato dos indícios disso no livro – um trabalho de vigilância que tenta se aperfeiçoar mais e mais. Isso num quadro em que se desenha um fechamento e se vê um apoio explícito do círculo do poder às milícias, aos grupos de extermínio.”

Essas tentativas de controle estariam evidentes em episódios envolvendo a Receita Federal, ou em investigações imotivadas do Judiciário, como denunciado pelo site The Intercept na série da VazaJato. “Essa troca de mensagens entre o pessoal da Lava Jato mostra que quem confia no Judiciário e no Ministério Público está comendo mosca. Mas será que é só aí [na Lava Jato]? Não há nenhuma imparcialidade. Estão atuando como agentes políticos, antidemocráticos e criminosos, para defender certas posições e prejudicar determinadas pessoas. Não é correto que façam isso, que fiquem vasculhando a vida delas.”

Dicas práticas

A ideia do livro surgiu quando ativistas do movimento popular, que lutam por terra, moradia, em defesa dos Direitos Humanos, contra cortes de verbas em políticas públicas, procuraram Cid Benjamin para conversar sobre a sua experiência de ex-militante na ditadura, preocupados com a criminalização das pautas sociais.

“Não me interessaria só contar minha experiência anterior, coisa que eu faço em algumas partes do livro, mas trazê-la para os dias do hoje – seja do ponto de vista de provocações policiais nas manifestações, métodos usados pela polícia para esvaziar esse movimento, seja do ponto de vista de procurar avançar na reflexão sobre as milícias, que estão sendo usadas para crimes políticos – basta ver o caso da Marielle e os levantamentos sobre outras pessoas, que os assassinos estavam fazendo.”

Entre as medidas concretas sugeridas por Cid Benjamin está a denúncia e exposição de ameaças, sempre que forem feitas, independentemente se serão ou não consumadas. “É direito do cidadão e obrigação do Estado”, escreve. Fazer trajetos inesperados, mudar a rotina, trocar de trens de metrô na mesma plataforma podem ajudar a pessoa a verificar se está sendo seguida. Andar na calçada no sentido inverso ao dos carros dificulta o uso de veículos na vigilância. Decorar telefones de confiança e divulgar agendas públicas também estão entre as muitas medidas de proteção descritas no livro.

Segundo o ator e diretor Wagner Moura, que teve recentemente o lançamento de seu filme sobre o guerrilheiro Carlos Marighella adiado no país, e assina o terceiro prefácio do livro, “são reflexões simples, muito práticas. Vão desde proteger os dados dos nossos celulares, a ter cuidado com o lixo que descartamos, a estar atentos à infiltração policial nas organizações de resistência, a como preservar lideranças e até mesmo a resistir à tortura.”

Mobilização e coragem
Mesmo assim, o jornalista alerta que não há receita para eliminar os riscos. Evitar que ocorram prisões como a da cantora e agente cultural Janice Ferreira da Silva, a Preta Ferreira, ativista de movimento por moradia de São Paulo, detida em junho deste ano, ou do catador de recicláveis Rafael Braga, que levava uma garrafa de desinfetante em meio às manifestações de junho de 2013, depende de a sociedade se mobilizar efetivamente contra o abuso policial. “Tem que se buscar proteção, com advogados, com OAB e suas comissões de Direitos Humanos, mas principalmente precisa ser construído um movimento de massa, uma pressão na sociedade que torne muito caro e pesado politicamente esse tipo de arbitrariedade. Esse é o melhor antídoto, seria o essencial. Ainda não acontece.”

Da mesma forma, o ativismo em tempos duros requer coragem. Nesse sentido, Cid lembra do primeiro ato de massa da campanha da Anistia, na ABI, quando falaria o general Peri Bevilacqua, que tinha apoiado o golpe mas estava a favor da medida. A mãe do jornalista,  Iramaia Queiroz Benjamin, era presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia, criado em 1978, e recebeu, na tarde do evento, ameaça de que havia uma bomba e que, se o ato acontecesse, haveria mortos e feridos. “Foi uma decisão dela com o pessoal do CBA: não se pode deixar de fazer o ato, porque nunca mais se faria ato nenhum, qualquer telefonema iria interrompê-lo. Por outro lado, era preciso avisar as pessoas – vai ter o ato, mas há uma ameaça de bomba; quem quiser, fique à vontade para sair. Foi o melhor caminho. Ninguém saiu e não tinha nenhuma bomba.”

LANÇAMENTO
Estado policial – como sobreviver
Cid Benjamin

Rio de Janeiro 
23 de setembro, 19h
Livraria da Travessa – Shopping Leblon

São Paulo
26 de setembro – 19h
Livraria Cultura Conjunto Nacional

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